Entrevistas

Entrevista: ‘A política, pensam, é conduzida por valores atrelados à religião’

O cientista político Leonardo Avritzer analisa o apelo religioso que liga Bolsonaro à sua base de apoio

Jair Bolsonaro é recebido pelo Pastor Edir Macedo durante visita ao Templo de Salomão. (Foto: Alan Santos/PR)
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Entender o bolsonarismo tornou-se uma fixação dos cientistas políticos. Desde a chegada do ex-capitão à Presidência da República em 2018, contra todos os prognósticos, dezenas de acadêmicos vivem noites maldormidas e passam horas em debates online em busca de uma resposta para o fenômeno.

Não faltam livros no mercado a respeito, mas raros acrescentam à discussão interpretações tão aguçadas quanto Governo Bolsonaro: Retrocesso Democrático e a Degradação Política, lançado pela Editora Autêntica. Organizado por Leonardo Avritzer, Fabio Kerche e Marjorie Marona, a obra reúne 30 artigos de antropólogos, sociólogos e economistas dedicados ao tema.

Na entrevista a CartaCapital, Avritzer resume os dois anos de mandato de um presidente errático, antidemocrático e instável. Ainda assim, apoiado por cerca de um terço da população, que entende a política como uma atividade com “valores atrelados à religião”. 

CartaCapital: Qual é a força do bolsonarismo?

Leonardo Avritzer: Não fosse uma série de intervenções entre 2016 e 2018, o bolsonarismo seguiria como movimento apenas. Pontuo o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão do ex-presidente Lula e a greve dos caminhoneiros como fatos que inflaram a força política desse movimento e levaram Jair Bolsonaro à Presidência da República. O bolsonarismo como movimento é instável, promove as violências simbólica e efetiva contra “inimigos” e tem total desprezo pelas instituições políticas. Quando o movimento vira governo, ele transfere essa dinâmica para o próprio exercício do poder.

 

CC: Vivemos em um país em que ao menos 24% da população confia no presidente. Como Bolsonaro conseguiu chegar até onde chegou, se vemos tantos movimentos para desmenti-lo e se os fatos apontam o contrário?

LA: Temos duas possíveis linhas explicativas. A primeira é que o Brasil tem um monopólio midiático que gera enorme desconfiança. Temos uma pesquisa na Universidade Federal de Minas Gerais que aponta o seguinte: 51% dos entrevistados não confiam na Globo. Com a deterioração das estruturas de confiança no Brasil, entre elas os partidos, pois mero 1,5% da população confia neles, governar com a pós-verdade como faz Bolsonaro funciona. As estruturas que poderiam desmenti-lo não conseguem. Sabemos de ações de fake news que alcançaram 40 milhões de eleitores. Por isso, Bolsonaro age para erodir a confiança no sistema político e midiático.

 

CC: Desde a crise que culminou na saída dos três comandantes das Forças Armadas e do ministro da Defesa, como fica a relação entre Bolsonaro e os militares?

LA: Precisamos pensar a trajetória do Exército. As Forças Armadas funcionam em turmas, a de Bolsonaro, nos idos de 1977 na Academia Militar das Agulhas Negras, formou-se muito ligada ao ex-general Silvio Frota, que tentou um golpe contra Ernesto Geisel para impedir a reabertura “lenta e gradual”. Também é uma turma com um perfil mais ligado a aparatos de repressão. É justamente essa geração que fez uma forte incursão na área de segurança pública com intervenções urbanas, como a missão no Haiti, sob o comando do general Braga Netto, hoje ministro da Defesa, e a intervenção no Rio de Janeiro, com o general Augusto Heleno. Por outro lado, lideranças militares garantiram recentemente o respeito às instituições. O resumo é que temos essa tensão nas forças. O que Bolsonaro fez foi trazer para a porta da frente do governo federal aqueles que pensam como ele.

 

CC: O que nos levou ao retrocesso democrático entre 2014 e 2020?

LA: O retrocesso democrático começa no momento em que Aécio Neves não aceita o resultado das eleições de 2014. Se tínhamos, entre 1946 e 1964, tendência de questionamentos eleitorais, o que foi superado entre 1989 e 2010, Aécio reaviva essa questão. Usa, inclusive, um discurso da UDN do pós-Guerra. O segundo fato que contribuiu para esse retrocesso foi o impeachment de Dilma, que abriu uma porta para a remoção de presidentes sem base legal e criou uma instabilidade política enorme. Depois temos, em 2018, o tuíte do general Villas Bôas e a greve dos caminhoneiros, quando experimentamos um aumento agressivo de pedidos de intervenção militar. Sem esses fatos Bolsonaro não existiria como presidente da República. Ele seguiria sendo o deputado que, quando tentou presidir a Câmara, teve apenas quatro votos. Ele tornou-se viável por causa da conjuntura. 

 

CC: Qual é o papel da Lava Jato?

LA: A Lava Jato contribuiu para esse ambiente contrário ao sistema político brasileiro que culminou na eleição de Bolsonaro. A operação reforçou o punitivismo, no qual os investigados não têm direito de defesa. Bolsonaro elegeu-se com o discurso da antipolítica, totalmente crítico ao presidencialismo de coalizão e contra acertos com o Centrão. Mas agora, de olho nas eleições de 2022 e para evitar o impeachment, mudou de posição. O presidencialismo de coalizão abriu espaço para atos de corrupção, mas o Brasil é quase ingovernável sem esse arranjo, por conta da fragmentação político-partidária. No início do governo, Bolsonaro recorreu ao sistema judiciário e aos militares. No primeiro ano, ele governou à base de decretos. A situação mudou ao longo do tempo, até o ponto em que estamos.

CC: O que é o bolsonarismo?

LA: É um movimento claramente antidemocrático que defende uma agenda econômica regressiva em relação a direitos sociais e não se importa com o isolamento internacional provocado pelo modo de agir do governo. A política, pensam, é conduzida por valores atrelados à religião. Boa parte dos apoiadores integra uma classe média de ascensão recente. Quanto ao empresariado que o apoia, basta ver quem estava no jantar oferecido a ele em São Paulo. Não havia industriais. O anfitrião atua na área de segurança privada, setor conhecido por cometer violações contra direitos humanos e que se articula com alguns banqueiros que querem grandes negociatas via privatizações, principal promessa do ministro da Economia, Paulo Guedes.

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