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A morte rende votos

Bolsonaro atiça a barbárie policial na certeza de que irá colher dividendos eleitorais. A esquerda, por sua vez, não sabe como lidar com o fenômeno

Parado por uma corriqueira infração de trânsito, Genivaldo de Jesus Santos foi arrastado para uma câmara de gás improvisada no camburão da viatura. Parou de se debater após dois minutos, já sem vida - Imagem: Reprodução TV e André Borges/AFP
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Moradores escrachados, casas metralhadas durante a madrugada, com as famílias ainda dormindo, sangue vertendo pelas escadarias, cadáveres retalhados por tiros e facadas. A violenta operação policial na Vila Cruzeiro, Zona Norte do Rio de Janeiro, resultou na morte de 23 “suspeitos”, nenhum deles julgado pela Justiça. Quando os disparos de fuzis silenciaram, familiares das próprias vítimas tiveram de carregar os corpos para o Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, que precisou montar uma força-tarefa para atender à inesperada demanda. Com as geladeiras do necrotério lotadas, os sacos pretos foram acomodados no chão.

Na mesma semana, as cenas do brutal assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, asfixiado até a morte em uma câmara de gás improvisada em uma viatura da Polícia Rodoviária Federal, correram o mundo. Por conta de uma prosaica infração de trânsito – conduzir uma moto sem capacete, algo que um certo capitão não se cansa de fazer –, o motociclista de 38 anos foi parado pelos agentes em Umbaúba, litoral de Sergipe, e resistiu à autuação. Foi o que bastou para ser agredido, algemado, arrastado e atirado à força no camburão.

De nada adiantaram as súplicas de conhecidos, que alertaram os policiais que o homem possuía transtornos mentais e tomava medicamentos controlados. Enquanto um agente da PRF espremia as pernas do preso com a tampa traseira da viatura Chevrolet Trailblazer, o outro arremessou uma bomba de gás lacrimogêneo para dentro do carro. Após dois minutos de suplício, a vítima parou de se debater. A morte de Genivaldo ocorreu exatamente dois anos após o assassinato de George Floyd por um policial branco de Minneapolis, nos EUA, observou o britânico The ­Guardian. É provável que as últimas palavras também tenham sido as mesmas: “Não consigo respirar”, implorou Floyd, com o joelho do oficial a esmagar o seu pescoço.

O EX-CAPITÃO SAIU EM DEFESA DA PRF E CHAMOU GENIVALDO DE “MARGINAL“. SÓ DEPOIS LAMENTOU A MORTE E PROMETEU JUSTIÇA

A barbárie policial, tanto no Rio quanto em Sergipe, escandalizou o mundo. Mas nem todos se comoveram no Brasil. Bolsonaro e seus devotos, certamente não. Ao contrário, o ex-capitão incorporou a chacina na Vila Cruzeiro ao seu espólio eleitoral. “A esquerda não quer que você se dê conta da realidade do narcotráfico no Brasil”, escreveu no Twitter, após uma série de publicações elogiando os “guerreiros” do Bope e da Polícia Militar, que “neutralizaram pelo menos 20 marginais”. As postagens serviram como uma espécie de chamamento à milícia digital. Toda a thread – a sequência de mensagens – somou 200,7 mil likes.

A todo momento, aliados de Bolsonaro tentam arrastar Lula e perfis ligados à esquerda para o centro do debate, uma forma de engajar a militância e as redes do próprio ex-presidente em suas narrativas. O amigo e ex-ministro Ricardo Salles foi além, comparou eleitores de Lula a criminosos. “A diferença entre Ibope e Bope: o primeiro faz crescer a quantidade de eleitores do Barba. O segundo, reduz”, escreveu o pré-candidato ao Senado, que na eleição passada pediu votos no número “.30-06”, em alusão a uma conhecida munição de fuzil, para surfar na onda armamentista.

A Polícia Militar disse ter apreendido 13 fuzis, 12 granadas e 4 pistolas na operação na Vila Cruzeiro. Para o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, o feito parece compensar as 23 mortes. “Com essa apreensão, quantos tiros deixarão de ser dados em direção a cidadãos de bem do Rio, contra policiais, contra quem quer levar uma vida em paz?”, postou. O tuíte rendeu-lhe a segunda maior interação de sua rede neste ano, com mais de 4,5 mil curtidas e 679 repostagens. Com a narrativa, Castro enfiou-se de vez no cluster bolsonarista das redes sociais, o que aponta um alinhamento automático do discurso, segundo dados coletados pela Consultoria Arquimedes. O recorde neste ano foi um post em que ele atacava Marcelo Freixo, deputado federal e candidato do PSB ao governo fluminense, no período da tragédia em Petrópolis. A postagem rendeu-lhe 8,5 mil curtidas e 1,3 compartilhamentos no Twitter. Na última pesquisa Quaest, Castro estava com 25% das intenções de voto e Freixo, com 18%.

O que aconteceria se a polícia atuasse da mesma forma em Ipanema ou no Leblon? – Imagem: Luca Meola e Alan Santos/PR

Castro tem seguido a linha de seu antecessor Wilson Witzel, que chegou a pousar de helicóptero na Ponte Rio-Niterói para celebrar a morte de um sequestrador abatido por um sniper e dizia abertamente que sua política de segurança consistia em dar carta-branca para a polícia abater criminosos. “Vai mirar na cabecinha e… fogo!”, comentou certa vez. Castro superou, porém, o mestre e protagonizou as duas maiores chacinas policiais da história do Rio: Jacarezinho, com 28 vítimas em 2021, e Vila Cruzeiro, neste ano. Segundo levantamento do Instituto Fogo Cruzado em 2019, ainda no governo Witzel, foram 63 chacinas e 234 mortos. Desde que assumiu, em maio de 2021, Castro acumula 62 chacinas e 280 mortos.

Em meio ao banho de sangue, Bolsonaro e seus aliados estão de olho nos votos dos 686 mil profissionais de segurança pública na ativa, segundo o IBGE e o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021. Existem ainda cerca de 1 milhão de vigilantes, sendo 51% deles inativos. Trata-se de um apoio eleitoral nem um pouco desprezível, ainda mais se considerarmos o voto potencial de familiares e amigos mais próximos.

Além disso, o ex-capitão sabe que uma parcela expressiva da sociedade acredita piamente que o problema da violência se resolve na bala, como nos faroestes hollywoodianos ou como pregam os programas policialescos na tevê aberta. Em outubro de 2018, 17% dos eleitores ouvidos pelo Datafolha votavam em Bolsonaro por causa de suas propostas para a segurança pública. Outros 13% por sua imagem e pelos seus valores pessoais. Naquela eleição, houve recorde de candidaturas ligadas às forças de segurança, elevando de 19 para 42 os deputados federais da Bancada da Bala no Congresso. O mesmo efeito foi registrado nas eleições municipais de 2020, quando houve aumento de 21% nas candidaturas vinculadas à segurança pública, somando 8.296 candidatos, segundo o Instituto Sou da Paz (quadro na próxima página). Para 2022, inserções partidárias na rádio e na tevê marcam essa tendência. “Um movimento que percebemos muito nos últimos anos foi uma mudança na candidatura desses postulantes, que passaram a crescer mais na esfera executiva”, diz Felippe Angeli, do Sou da Paz, que pesquisa o fenômeno do “policialismo” na política.

CLÁUDIO CASTRO E BOLSONARO APLAUDIRAM A OPERAÇÃO NA VILA CRUZEIRO, QUE RESULTOU EM 23 MORTES

Até maio deste ano, CartaCapital contabilizou ao menos dez pré-candidaturas a governos estaduais e ao Senado de policiais civis, militares ou ligados às Forças Armadas. No Ceará, por exemplo, o bolsonarista Capitão Wagner, do União Brasil, lidera a disputa com 46,5% das intenções de voto, contra 24,2% da atual governadora, ­Izolda Cela (PDT), e 3,2% de Adelita Monteiro (PSOL), segundo levantamento da Paraná Pesquisas. No Rio Grande do Sul, o vice-presidente Hamilton Mourão, recém-filiado ao Republicanos, vai disputar uma vaga ao Senado pelo estado gaúcho.

A relação de Bolsonaro com os profissionais da segurança não é, porém, um mar de rosas. O governo enfrentou sucessivas crises com a categoria, especialmente no período da reforma da Previdência. Apesar de agradar aos policiais militares e aos bombeiros com um generoso plano de reestruturação de carreiras, que melhorou os salários de quem está na ativa, os policiais civis e federais se sentiram desprestigiados. Há ainda desgastes devido ao não cumprimento de promessas de reajustes, às interferências na Polícia Federal e PRF e à entrega de grandes nacos do Estado ao Centrão.

Segundo uma estimativa da Federação Nacional dos Policiais Federais, divulgada por CartaCapital em 2021, Bolsonaro contava com respaldo de 80% da categoria no início da gestão, mas hoje esse ­porcentual gira em torno de 40%. Além disso, revela uma pesquisa PoderData de maio, 18% dos eleitores arrependidos do capitão estão dispostos a votar em Lula.

Para estancar a sangria, Bolsonaro editou ao menos 35 medidas para agradar aos setores da segurança pública, elevou em 200% o número de militares indicados para cargos de confiança e inaugurou uma nova era na PRF. Hipermilitarizados, eles passaram a circular no Rio em blindados apelidados de “caveirinhos”, em referência ao caveirão do Bope. Uma portaria da PRF publicada no início de maio excluiu a disciplina de Diretos Humanos da grade de cursos de formação de policiais rodoviários e acabou com as comissões de direitos humanos que existiam na corporação e tinham por objetivo monitorar processos disciplinares e orientar os agentes.

Outra forma de puxar a hierarquia da instituição para a base eleitoral de Bolsonaro foi eliminar intermediários. Em vez de se reportarem ao Ministério da Justiça, os diretores das corporações policiais passaram a ter acesso direto ao presidente da República. Para as chefias, o governo passou a escolher a dedo os que têm maior adesão ideológica.

Não por acaso, a PRF, até então tida como uma instituição exemplar, passou a protagonizar crimes bárbaros, como o assassinato de Genivaldo. Somente após a intensa repercussão do homicídio, os agentes envolvidos na ocorrência foram afastados e passaram a ser investigados pela Corregedoria. A Polícia Federal também conduz uma apuração e todo processo está sendo acompanhado pela OAB de Sergipe e pelo MPF, que também instaurou processo civil para apurar violações aos direitos da vítima. Já a Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou a criação de um comitê para monitorar as investigações.

Em um primeiro momento, Bolsonaro saiu em defesa da PRF, chamou Genivaldo de “marginal” e ainda reclamou que a mídia não trata com isonomia os casos em que policiais são as vítimas – como se a violência cometida pelo braço armado do Estado fosse equivalente à praticada por criminosos comuns. Depois, lamentou a morte e prometeu que “será feita justiça”. A própria PRF teve postura vacilante. Inicialmente, soltou um comunicado justificando as ação pela suposta “agressividade” da vítima. Quatro dias depois, emitiu um novo posicionamento, dizendo que “não ‘compactua’ com as medidas adotadas durante a abordagem, nem com ‘qualquer afronta aos direitos humanos’”.

O episódio da “câmara de gás” não parece ser um fato isolado. Nos últimos sete meses, agentes da PRF participaram de uma operação em Varginha, Minas Gerais, que culminou com a morte de 25 suspeitos. A PRF também está sendo investigada pela atuação na operação conjunta com a PM na Vila Cruzeiro. De acordo com o titular do Núcleo de Controle Externo da Atividade Policial no Rio de Janeiro, o procurador da República Eduardo ­Benones, em fevereiro deste ano a PRF também atuou em outra operação na Vila Cruzeiro que deixou oito mortos. Outra ação resultou em três mortos no Chapadão. “(Esses casos) não podem ser investigados como meros saldos de operações policiais”, diz Benones, a classificar a atuação da PRF como “anômala”. Um procedimento investigatório criminal vai apurar as condutas, eventuais violações a dispositivos legais, participações e atuações individuais de cada agente público envolvido (confira a entrevista exclusiva no site de CartaCapital).

OS DIRETORES DA PRF NÃO FORAM PUNIDOS. AO CONTRÁRIO, FORAM PREMIADOS COM UMA TEMPORADA NOS EUA

Segundo investigações, dois mandados de prisão preventiva e temporária, de 2014 e 2015, foram usados para justificar a operação e nenhum dos dois procurados, até o fechamento desta edição, havia sido preso. O mesmo artifício teria sido usado na operação que culminou na morte do menino João Pedro na favela de São Gonçalo, em março de 2020, atingido dentro de casa durante uma operação da polícia.

O representante do escritório de Direitos Humanos na América do Sul das Nações Unidas, Jan Jarab, reuniu-se com o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso e manifestou preocupação com “a recorrência de casos de violência envolvendo a PRF”. O diretor-executivo da PRF, Jean Coelho, e o de inteligência, Allan da Mota Coelho, foram afastados dos cargos. Mas, ao contrário do que o governo deu a entender, não foi uma punição, e sim uma promoção. A dupla vai passar uma temporada nos EUA. Eles foram designados para as funções de oficiais de ligação no Colégio Interamericano de Defesa, em Washington, com uma remuneração que pode chegar a 15 mil dólares por mês, cerca de 72 mil reais, na ­atual cotação. A PRF diz que a transferência foi combinada antes da morte de Genivaldo, mas, segundo apurou CartaCapital, a ordem interna é “botar panos quentes”.

O “liberou geral” na PRF começou com uma portaria do então ministro Sergio Moro, posteriormente alterada por André Mendonça, hoje no Supremo Tribunal Federal, que autorizou a PRF a atuar em áreas urbanas, participando de operações conjuntas de “natureza ostensiva, investigativa, de inteligência ou mistas, para fins de investigação de infrações penais ou de execução de mandados judiciais”.

Bolsonaro empenhou-se, ainda, em flexibilizar o Estatuto do Desarmamento com mais de 30 medidas administrativas. Elas retiraram, por exemplo, a possibilidade de se rastrearem armas de fogo e munições, o que só parece interessar ao crime organizado e às milícias que ­atuam à margem da lei. Em seu pacote anticrime, Moro ainda tentou emplacar o chamado “excludente de ilicitude”, uma espécie de perdão judicial ao policial que matar em serviço, desde que o ato fosse justificado por “escusável medo” ou “violenta emoção”. Com a derrubada da proposta, Bolsonaro enviou ao Congresso o Projeto de Lei 733/2022, a prever o “excesso exculpante”, a mesma bobagem, mas com outro nome. Mesmo que não seja aprovado, o projeto já é usado pela pré-campanha e por aliados para mobilizar a base bolsonarista.

Autorizada por Sergio Moro, a PRF passou a atuar em áreas urbanas e protagonizou numerosas chacinas desde então – Imagem: Cléverson Oliveira/SGPR

“Quando o chefe da PM, seja ele Cláudio Castro ou João Doria, diz que a polícia deve atirar para matar ou que pretende construir mais cemitérios para os criminosos, o nível mais baixo da hierarquia policial entende isso como um sinal de liberação para o comportamento violento”, explica Ivan Marques, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “O policial na ponta acredita ter uma licença para matar.” Não por acaso, o número de mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil quase triplicou em sete anos. Passou de 2.212, em 2013, para 6.416, em 2020.

Mesmo em meio ao fogo cruzado, o “voto de sangue” encontra eco. Basta ver os comentários nas postagens de Bolsonaro. “Sonho por mais dias com muitos CPFs malignos cancelados com sucesso”, postou um seguidor. Nesse contexto, a esquerda historicamente tem dificuldades de dialogar tanto com os profissionais da segurança pública quanto com a parcela do eleitorado que acredita que a polícia deve ter apoio incondicional. De acordo com Felippe Angeli, há aqueles que de fato possuem uma tendência fascista, flertam com o sadismo e a violência bolsonarista, mas a maior parte é formada por pessoas que não viram a segurança melhorar, sentem medo, são sempre assaltadas ou perderam entes queridos para a violência.

“De um lado, Bolsonaro vem com a proposta conhecida como mano dura: encarceramento em massa, guerra às drogas e tolerância zero”, observa Marques. “De outro lado, a esquerda apresenta propostas macro que não impactam diretamente naquele problema vivenciado no dia a dia.”

Além disso, parte das lideranças progressistas simplesmente desistiu de dialogar com os profissionais da segurança. “Em 2018, a categoria votou em Bolsonaro por acreditar nas promessas de valorização e respeitabilidade. Mas, durante o governo, isso se dissipou. Ele não tem mais todo esse apoio dentro das corporações, o que vemos são grupos radicalizados”, explica o gaúcho Leonel Radde, policial civil e vereador em Porto Alegre, pelo PT. Para ele, a esquerda precisa dialogar com o funcionalismo da segurança pública da mesma forma como faz com outras categorias, coletando as demandas. “O maior equívoco é a generalização”, acrescenta Radde, um policial abertamente antifascista. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A morte rende votos”

 

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