Política

‘A maternidade é tão linda e desafiadora que só pode ser uma escolha. Não pode ser obrigada’

A história de Amanda, que hoje tem uma filha, reflete as diferenças entre quem pode ter acesso ao aborto de forma segura e quem continua a ser perseguida

Foto: Free-Photos / Creative Commons / Pixabay
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Assim que os sinais de uma possível gravidez apareceram, Amanda, de 26 anos, sabia muito bem que não queria ser mãe naquele momento. Apesar de estar com o namorado havia quase 10 anos, a relação já dava sinais de que não sustentaria um matrimônio, muito menos um filho. Quando o teste teve resultado positivo e ela não havia completado sequer um mês de gestação, o passo seguinte foi se consultar com um ginecologista.

“Falei assim: ‘então, doutor, eu não quero. Eu quero sair daqui com um contato’. Já fui muito direta”. A afirmação não assustou o médico e, assim, a jovem moradora de um bairro nobre de São Paulo saiu com a indicação de um profissional que realizaria o aborto e um código, a forma de comprovar a indicação e assegurar o procedimento.

Com os custos bancados pela irmã e pelo namorado, em 30 minutos ela não estava mais grávida, e a curetagem — técnica realizada para abortar na fase inicial da gestação — não gerou qualquer complicação. O relacionamento, como havia projetado, foi pelos ares. Na sequência, uma boa notícia: ela conseguiu a aprovação de uma bolsa para estudar durante um mês na Itália.

No retorno ao Brasil, consolidou sua carreira na comunicação, cofundou uma organização jornalística com outras mulheres e, durante o primeiro ano de empresa, ela descobriu estar grávida. À época com 33 anos, decidiu manter a gestação.

“A Tereza, minha filha, me redirecionou. A maternidade é tão linda, tão enlouquecedora, tão cansativa – tudo junto, misturado – que só pode ser uma escolha. Não pode ser obrigado”, afirma.

A história de Amanda, filha de médicos, criada na capital paulista, expõe um dos caminhos mais raros que as mulheres brasileiras têm quando o assunto é o aborto.

Somente no estado de São Paulo, cerca de 484 mulheres foram presas, indiciadas ou processadas por crime de abortamento nos últimos dez anos, revelaram dados obtidos por CartaCapital por meio da Lei de Acesso à Informação.

“Podemos pensar em um marco de liberdade, mais do que um marco de culpa. Eu estava nesse limiar entre a culpa e a liberdade. A liberdade dá uma certa culpa, porque você vê as outras presas, aí você fala assim: ‘pô, e eu? É liberdade ou é culpa? Se eu estou livre, eu estou oprimindo alguém?'”

Neste depoimento, ela descreve uma jornada marcada por acessos e tomadas de decisões que dizem respeito a um processo sensível e, muitas vezes, solitário:

O assunto voltou à tona quando eu vi essa reportagem. O médico tinha sido preso por conta da história do aborto. 

Ele era um médico de Higienópolis, um homem branco, mais velho, que tinha como senha que ia fazer um procedimento… Não sei se era acupuntura. 

Na hora em que eu li a matéria, era o mesmo código. E eu falei: “porra! O cara tá preso, velho”. E foi pouco tempo atrás, um ano, deve fazer. 

E era 2007 [quando fiz meu aborto]. Eu tinha recém-formado, de 26 para 27 anos, por aí. Me formei em 2004, na Federal de Santa Catarina. 

Tinha um namorado, que era meu veterano na faculdade, um ano mais velho que eu. Ele tinha nascido em São Paulo, mas morava desde criança em Florianópolis.

A gente foi morar junto, alugou um apartamento aqui em São Paulo, namorava há oito anos. Eu não era mais tão jovem, não é que foi uma gravidez indesejada aos 16. Eu tinha muita consciência, corporal, de desejo de futuro, de plano de vida, né? 

Só que, em 2007, foi uma escolha assim, entre ter a vida que talvez minha família mais tradicionalmente gostaria de ver pra mim e uma coisa de eu falar: “cara, esse namorado de oito anos… Não sei se eu quero casar com ele, ter filho com ele, construir família com ele e ser uma jornalista num lugar tradicional”. Tanto que um ano depois dessa história o aborto vai desencadear no fim da minha relação. 

Lembro que quando eu fiquei grávida, eu desconfiei, essa coisa de menstruação atrasada, e aí fui comprar um teste de farmácia. Eu tinha uma amiga comigo. Depois eu falei: “nossa, o que eu vou fazer?” Mas falei: “bom, acho que eu preciso ir em um ginecologista”. 

Eu tinha um ginecologista na época, um médico em Moema. Até então, eu era uma típica jovem branca da elite paulistana. Muito pouco percorrida na cidade, com muita limitação geográfica, dentro da minha bolha muito cartesiana. Universitária branca, filha de médico. 

Meu pai é o primeiro universitário da família, pediatra. É uma família de migrantes, meu avô era analfabeto, mas meu pai é médico. 

Eu já tinha feito o teste de farmácia, já tinha conversado com o meu namorado e ele falou assim: “você que sabe”. 

Ele quis deixar a decisão para mim, talvez no sentido de “olha, essa é uma decisão sua”, mas, ao mesmo tempo, que peso, né? 

Mais um entre tantos. Tipo, a escolha de ter ou não ter não foi uma partilha igualitária. É desigualdade de gênero mesmo. Então, não foi uma partilha tipo: vamos pensar juntos e vamos encaminhar essa história juntos. 

Naquela época, talvez eu precisasse de um amparo externo para me reafirmar internamente. E isso não aconteceu. 

Eu fui ao médico. Não lembro o nome dele. Ele já era velho, era o médico da minha mãe também. Ele falou que eu estava grávida mesmo, e está tudo certo, o útero todo bonitinho. 

E eu falei assim: “então, doutor, mas eu não quero”. 

Eu lembro da cara dele. Ele tinha um consultório bonito, assim… Tinha um quadro que tinha toda a gestação, da primeira fecundação do óvulo até o bebê sair. 

E falei: “eu quero sair daqui com um contato”. Já fui muito direta. 

Até então, o aborto chegava para mim em um lugar de dificuldade de gravidez, uma fatalidade, não uma escolha.

Ele [o médico] não esboçou uma reação de surpresa, só pegou o caderninho de um bloquinho de nota, parecia um post-it. Anotou um nome, um telefone e disse: “essa é a senha para fazer o procedimento”. Eu guardei esse papelzinho anos na minha carteira, mas não tenho mais.

E aí eu fui atrás desse outro médico. Então, saí de Moema, fui pra Higienópolis. Eram 3 mil reais. Entrei em contato e agendei.

O meu namorado foi comigo. Então, na hora em que eu tomei a decisão de que eu estava certa, ele ajudou financeiramente, em parte, mas a gente não tinha toda a grana, e aí a minha irmã entrou na jogada. 

A primeira vez que eu fui, foi pra ver se estava tudo bem e pra eu tomar mesmo a decisão. O médico me forçou até: “é isso mesmo? Vai pra casa e pensa”. E marcou a curetagem

Tinha uma enfermeira que me preparou, ele só chegou na hora. E ele era um senhor branco também, mais velho. Foi muito rápido. Tipo, coisa de meia hora, mesmo. 

Lembro que o Felipe, que era meu companheiro na época, ficou muito impressionado como como eu perdi o sangue. 

E eu saí e ele me fez uma lista de medicamentos que eu tinha que tomar. Um anti-inflamatório e antibiótico. Comprei todos os remédios e me cuidei. E me senti um pouco debilitada. Cansada. Vazia.

Foi louco, assim, porque fiquei triste, a minha relação ficou muito estranha e aí eu fui pro Rio [de Janeiro] ser cuidada por uma amiga também. 

Seis meses depois, a minha relação acabou. E um ano depois, eu entrei na terapia e faço até hoje. Então, assim, eu tive muito apoio. Eu tive grana emprestada, o namorado foi, eu tive médicos.

Viajei para o Rio nesse final de semana, voltei, passei um tempo de férias e fui viajar. Eu ganhei uma bolsa de estudo para estudar italiano, um mês na Itália. 

A nova gestação e o desejo de ser mãe

A questão do aborto só voltou quando eu fiquei grávida, porque eu tinha que preencher na ficha médica se eu já tinha realizado um aborto. 

Sete anos depois. Mas, mesmo assim, essa lembrança veio, porque a interrupção de uma gravidez me fez pensar que eu não ia ter filhos. 

E a Tereza, minha filha, me redirecionou. A maternidade me reorganizou.

E é tão lindo, tão maravilhoso, tão gostoso, tão desafiador, tão enlouquecedor, tão difícil, tão cansativo – tudo junto, misturado – que só pode ser uma escolha. Não pode ser obrigado.

A gente não pode ser obrigado a ter filho. É muito maravilhoso pra gente ser obrigado. Não seria tão maravilhoso se não fosse por querer. A gente tem que querer. 

Se a gente não quiser, tá tudo bem. Eu não quero carregar o fardo e não quero que nenhuma mulher carregue o fardo de “ter que”. 

O corpo da mulher é objeto, a gente ainda está nesse lugar. E quando você detém o poder sobre saúde e a reprodução feminina, você detém o poder sobre elas, reforça o lugar de objeto.

A gente tem que ir brigando pra fazer nossas escolhas, sendo que elas estão aí. O médico do aborto era a coisa do dinheiro, o que é muito elitista, muito branco. 

Eu faço uma lei que eu não cumpro. Eu não fui presa, não tive o aborto negado. Eu tinha um código de acesso, mas sei que tem muita mulher que morre. E eu já ouvi o relato.

Já vi mulher que não queria ter mais filhos, que teve que ter. Ou que teve que sair do País pra fazer aborto. 

A maternidade é como se fosse uma mulher antes e depois. É um parêntese. A gravidez é literalmente um parêntese.

Antes do aborto também era uma. Porque também ali a minha escolha prevaleceu.

Podemos pensar em um marco de liberdade, mais do que um marco de culpa. Eu estava nesse limiar entre a culpa e a liberdade. A liberdade dá uma certa culpa, porque você vê as outras presas. Aí você fala assim: “pô, e eu? É liberdade ou é culpa? Se eu estou livre, eu estou oprimindo alguém?”

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