A fome que o Brasil bem alimentado insiste em não ver e enfrentar

Os pratos estão cada vez mais vazios: 24% dos entrevistados em uma pesquisa do Datafolha, consideram que nos últimos meses a quantidade de comida disponível em suas mesas foi inferior à necessária para alimentar a família

Fome. De Norte a Sul do País, ecoa o mesmo grito de socorro - Imagem: Antonello Veneri

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Em março, a cenoura ganhou status de símbolo nacional da carestia, lugar que já foi do chuchu, do tomate, do arroz, que chegou a ser comparado a pérolas, da carne e da alface, entre outros. Virou meme, tema de conversas e teve seus minutos de fama ao surgir em forma de colar no pescoço de Ana Maria Braga, que abriu uma edição do programa “Mais Você” apresentando o “acessório caríssimo”. O quilo do alimento — que sofreu com excesso de chuvas e pragas — chegou a bater em R$ 20 em alguns mercados, feiras e quitandas.

Sintetizada em um legume, a inflação que voltou a níveis preocupantes no Brasil no último ano, agora turbinada pela guerra na Ucrânia, acentua um problema estrutural, agravado por questões conjunturais e pela falta de vontade política: a fome que o Brasil bem alimentado insiste em não ver e enfrentar. A cenoura é só uma das muitas baixas recentes no cardápio nacional.

A coxa de frango foi trocada pela carcaça. A sopa passou a ser feita com ossos, antes dados e agora vendidos pelas casas de carnes. E os pratos estão cada vez mais vazios: 24% dos entrevistados em uma pesquisa do Datafolha, divulgada na quarta semana de março, consideram que nos últimos meses a quantidade de comida disponível em suas mesas foi inferior à necessária para alimentar a família.

Para os mais pobres, com renda familiar de até dois salários mínimos (R$ 2.424), o problema tem maior recorrência e é apontado por 35%. Entre os que ganham entre dois e cinco salários mínimos, 13% identificaram falta de comida na mesa.

São níveis semelhantes aos registrados em 2021. No grupo dos desempregados, 38% declararam que não tiveram comida suficiente. Entre os autônomos, foram 26%, assim como para 20% dos assalariados sem registro formal e 28% dos desocupados que não estão à procura de trabalho.

Já para 42% das famílias com mais de dez salários mínimos de renda a quantidade disponível de comida foi considerada mais do que suficiente. Trata-se de um grupo seleto. Uma renda mensal média de R$ 10.812 coloca o cidadão entre os 5% mais ricos no Brasil, segundo dados da Pnad Contínua 2020, do IBGE.


Na boca do jacaré, a curva de custo dos itens básicos para a alimentação aponta para cima e a renda disponível para comprá-los acomoda-se na mandíbula inferior. São 13 produtos alimentícios em quantidades suficientes para garantir, durante um mês, o sustento e bem-estar de um trabalhador em idade adulta, conforme pelo Decreto Lei nº 399, de 30 de abril de 1938, que regulamentou o salário mínimo no país e que continua em vigor.

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) calcula que a cesta básica abocanha hoje 56% do ganho de quem recebe um salário mínimo (R$ 1.212,00), descontados 7,5% referentes à Previdência Social.

Para 43,3% dos brasileiros, no entanto, a cesta é miragem. Esse é o contingente de pessoas que vivem com menos de meio salário mínimo por mês, segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional – Penssan, divulgada em 2021, com dados de 2020, primeiro ano da pandemia. Na situação de pobreza extrema, com renda per capita de até um quarto do salário mínimo estão 14,1% da população – 19 milhões de brasileiros que enfrentam a miséria e a fome.

Os números alarmantes serão atualizados em breve. Uma nova rodada da pesquisa está em curso e deve ser divulgada em maio. Maite Gauto, gerente de programas da Oxfam Brasil, organização dedicada ao combate às desigualdades que participa do levantamento, acredita que haverá uma piora nos resultados. A esperança é que, ao olharem para a dura realidade, empresas e sociedade recuperem o fôlego para doações como no primeiro ano da pandemia.

A questão é complexa e seu enfrentamento depende de um conjunto de fatores — entre eles políticas de distribuição de renda, emprego, saúde, educação. E é, paradoxalmente, a percepção dessa complexidade que de certa forma limita as doações para organizações não governamentais que trabalham nesse campo.

As pessoas doam para solucionar o problema e a solução para a fome está distante. “Mas enquanto não chega, as pessoas precisam sobreviver”, diz Rodrigo “Kiko” Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania, organização fundada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em 1993, para ajudar como fosse possível os 32 milhões de brasileiros que, segundo o Ipea, estavam abaixo da linha da pobreza.

Existe ainda uma questão cultural: o brasileiro doa na tragédia, mas não na dificuldade, explica Kiko. Os momentos dramáticos das enchentes no Sul da Bahia e Petrópolis neste verão mobilizaram a sociedade. Ficaram para trás, mas as consequências persistem. Sem o apelo do drama escancarado, os recursos minguaram.

No campo corporativo, o processo trava porque a promoção da marca fala mais alto. “Infelizmente a atuação social está muito atrelada à questão do marketing, fome é uma temática difícil, que não proporciona momentos de brilho. Temas como meio ambiente, infância, educação são mais fáceis de lidar”, diz Kiko.

Termo do momento, o ESG (práticas ambientais, sociais e de governança, na sigla em inglês) mobiliza empresas para apagarem pegadas de emissões e atenuarem seus impactos. Mas as iniciativas e os programas, na visão de Kiko, são muitas vezes movidos apenas por pressão dos investidores que querem reduzir riscos.

Na maior parte dos casos, ações contra a fome não estão na matriz de materialidade dos indicadores que os fundos usam para acompanhar o desempenho ESG das companhias. Se a ajuda não se traduz em números, dificilmente estará entre as prioridades, alerta Kiko.

A sociedade se vira como pode. A Coalizão Negra pelos Direitos capitaneou durante quase um ano a campanha “Tem Gente Com Fome”. Conseguiu R$ 30 milhões em alimentos, distribuídos para 100 mil famílias. Mas não foi suficiente sequer para atender a lista de cadastrados feita pelas 240 organizações integrantes do movimento. Eram 223 mil famílias em todo o país.

Não há campanha que dê conta do tamanho do desafio. Para o ativista Douglas Belchior, coordenador da Coalizão, o esforço do poder público é condição básica para equacionar o problema. E o setor privado é determinante. Além de ajudar na emergência, diz, pode usar sua influência política para pressionar por programas sociais.


A mobilização contra a fome, que está no topo do S da agenda ESG, precisa ser permanente. No site da Oxfam há uma relação de organizações da sociedade civil que trabalham para garantir alguma comida no prato dos brasileiros.

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