Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

‘Tem gente com fome, dá de comer’

Basta andar pelas ruas para deparar-se com uma infinidade de homens, mulheres e crianças em situação de pobreza extrema

Registro da fotógrafa Fernanda Castro para o livro “Comunidades do Sutil e de Santa Cruz – Herança quilombola da região dos Campos Gerais”. Os quilombolas são um grupo que ainda está em risco de sofrer com a fome no País
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Tive o privilégio de estudar em um colégio que possuía uma biblioteca imensa. Foi lá que pude conhecer o Bentinho, de Machado de Assis; a Clara dos Anjos, de Lima Barreto; Fabiano e a cachorra Baleia, de Graciliano Ramos, personagens e autores que marcaram a minha adolescência e ainda permanecem vivos em mim. Foi lá também que no início dos anos 2000 deparei-me com O Bicho, do poeta Manuel Bandeira, cujos versos transcrevo a seguir:

“Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.”

Lembro que fiquei impactada. Foi como se o Brasil que eu via principalmente no Jornal Nacional e nas capas da revista Veja estivesse mais palpável, mais próximo de mim. Eu me senti especial por compreender a profundidade e a força daquelas palavras. Duas décadas depois, me deparei com Manuel Bandeira mais uma vez. Dessa vez, não em um livro ou no noticiário, mas diante dos meus olhos, na lixeira do prédio em que moro. Assim como no poema, vi um homem devorando os restos de comida descartados pelos moradores. Oferecer o saco de pães que trazia nas mãos foi o que pude fazer naquele momento.

Outro dia, durante conversa ao telefone, uma amiga lembrou do que eu disse no dia seguinte às eleições: ‘Bem que você falou, Luana. Não adianta torcer para dar certo. Já deu errado!’

Infelizmente, essa cena que, havia diminuído vertiginosamente entre os anos 2003 e 2016, levando a ONU a excluir o Brasil do Mapa da Fome, tem sido cada vez mais frequente no país. Basta andar pelas ruas para deparar-se com uma infinidade de homens, mulheres e crianças em situação de pobreza extrema, pedindo alimentos e catando materiais recicláveis.

Dados recentes da pesquisa realizada pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) dão conta de que, em 2020, 19 milhões de brasileiros foram assombrados pela fome, uma situação agravada pela pandemia, que já dura mais de um ano e, segundo cientistas, está longe de terminar.

“Quem tem fome tem pressa”, já dizia o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Ainda assim, por ora, não se vê nenhuma medida contundente de enfrentamento ao estado de miséria para o qual caminham milhões de brasileiros. No âmbito federal, o que se vê é o desmonte e a extinção de programas e projetos que visam a garantir alimentação adequada para a população. No ano passado, a verba destinada ao Bolsa Família diminuiu. Em 2018, o Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) foi extinto. Somam-se a isso a suspensão e a queda do valor do auxílio emergencial, a falta de políticas de combate ao desemprego e o modelo econômico necroliberal, diretamente responsável pelo empobrecimento dos brasileiros.

Na tentativa de minorar essa situação desumana, a Coalizão Negra por Direitos, em parceria com várias organizações não governamentais, lançou a campanha “Tem gente com fome, dá de comer”, que busca arrecadar fundos, por meio de um financiamento coletivo, “para ações emergenciais de enfrentamento à fome, à miséria e à violência da pandemia da Covid-19”.

Nas periferias e favelas, também há grande movimentação nesse sentido. Associações de moradores, igrejas, pequenos comerciantes e grupos de amigos têm se mobilizado para levar comida aos 55% da população que atualmente enfrentam algum tipo de insegurança alimentar. Uma tragédia sem precedentes está em curso no país. Se medidas sérias não forem tomadas, as capas que via na “Veja” durante minha infância e adolescência não vão demorar muito para se repetir.

Outro dia, durante conversa ao telefone, uma amiga lembrou do que eu disse no dia seguinte às eleições: “Bem que você falou, Luana. Não adianta torcer para dar certo. Já deu errado!”. Passados dois anos, nem de longe poderia imaginar que daria tão errado assim.

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