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A fé move moedas

Sob Bolsonaro, as comunidades terapêuticas dominadas por pastores crescem e se multiplicam

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Ideias emboroladas. O consumo de entorpecentes é um problema de saúde, não de segurança, como provam as experiências bem-sucedidas mundo afora - Imagem: Renato Luiz Ferreira e Alison Sales/FotoRua/Folhapress
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O histórico de fracassos do modelo de internação compulsória de dependentes químicos deveria servir de lição, mas, no Brasil ­atual, serve de prêmio. Apesar dos inúmeros relatos de abusos e maus-tratos, além da completa falta de transparência, as “comunidades terapêuticas”, nicho dominado por igrejas neopentecostais, nunca receberam tanto dinheiro. Durante o governo Bolsonaro, houve o milagre da multiplicação. Os recursos destinados às entidades praticamente quintuplicaram: de 40 milhões de reais em 2018 para 193 milhões no ano passado. Segundo um estudo em fase final de elaboração e a ser divulgado em junho pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), as comunidades, que recebem legalmente recursos públicos desde 2011, vivem uma era de ouro sob a batuta do ex-capitão. Além da torneira de verbas públicas aberta, outras medidas, anunciadas discretamente pelo governo em dezembro último, foram tomadas para vitaminar o crescimento dessas instituições.

Uma delas é a Lei Complementar 187, sancionada pelo presidente uma semana antes do Natal e que concedeu imunidade tributária às organizações. A decisão foi tomada em “caráter de urgência” e sem debate com a sociedade ou o Congresso. Outro mimo aprovado é a dispensa da necessidade de licitação para os convênios firmados com o Ministério da Cidadania. Para completar, as comunidades são apresentadas como entidades de serviço social e não de saúde, diferença que torna praticamente inexistente a fiscalização sobre o trabalho realizado.

O repasse de verbas federais saltou de 40 milhões para 193 milhões de reais em três anos

Paula Napolião, pesquisadora do ­CESeC e uma das autoras do estudo, afirma que as comunidades são a principal aposta do governo federal para lidar com a questão das drogas. “Mas, na contramão do que dizem as evidências científicas, têm-se focado em uma abordagem excludente e que é considerada de alta exigência por ter como precondição a abstinência”. Além disso, a esmagadora maioria das instituições têm como pilar a religiosidade como parte do tratamento. “Na prática, o ‘acolhido’ precisa participar das atividades religiosas, para que aquilo que se entende como ‘tratamento’ surta efeito”. A cientista social ressalta que não há qualquer comprovação de eficácia ou avaliação por parte do Poder Público do serviço prestado. “Isso é gravíssimo, porque muita verba tem sido destinada a um setor que aposta na reforma moral do indivíduo e não possui qualquer padronização.”

O fortalecimento das comunidades privadas caminha de mãos dadas com o sucateamento do SUS. “O atual governo inverteu o financiamento. Hoje, os hospitais psiquiátricos e as comunidades terapêuticas recebem muito mais recursos do que a rede aberta de saúde mental que o sistema único buscava construir nos últimos anos. Na rede pública houve o fechamento de muitos serviços e diminuição de trabalhadores”, diz Lumena Furtado, coordenadora do Laboratório de Saúde Coletiva da Unifesp e expoente na luta pela reforma psiquiátrica no Brasil.

Para Leon Garcia, psiquiatra do Hospital das Clínicas da USP que atua em Centros de Atenção Psicossocial, a solução para o problema do péssimo atendimento aos dependentes químicos mais pobres seria financiar o SUS, a atenção psicossocial e as atividades de acolhimento. “Existem as Unidades de Acolhimento, que são casas para dez usuários, onde eles podem ficar por seis meses, enquanto fazem tratamento nos CAPS. Ou seja, que têm o elemento de um espaço de moradia provisório e protegido que muitos procuram equivocadamente nas comunidades. Então, a ideia de que não existe uma possibilidade de internação na crise e de acolhimento mais prolongado é falsa. Não precisa de comunidade terapêutica porque o Brasil tem o SUS. Mas é preciso colocar dinheiro.”

Aos olhos de Deus. Sem transparência e sem fiscalização, as comunidades terapêuticas avançam sobre recursos antes destinados ao SUS – Imagem: André Borges/Agência Brasília

Apesar da dura realidade das ruas, as comunidades são rejeitadas por grande parte dos dependentes químicos. Integrante da Pastoral do Povo da Rua, comandada pelo padre Júlio Lancelotti, a psicóloga Beatris Dotta, mestre em Psicologia Social pela PUC-SP que trabalha há oito anos com pessoas em situação de rua na Cracolândia, avalia que essa rejeição se deve a diversos fatores. Um deles é a forma como o dependente chega à comunidade, na maioria das vezes em uma internação involuntária ou compulsória. “Muitos acabam obrigados pela família, muitas vezes são levados à força e de surpresa. Às vezes, são até chantageados para ir a esses espaços. Alguns vão após ordem judicial. Na região da Cracolândia, isso tem um peso ainda maior.”

Outro fator de rejeição deve-se ao fato de a maior parte das entidades estar ligada a denominações religiosas: “Há sempre um viés religioso que o internado precisa acatar. Muitas vezes, esse é um processo violento, porque a forma como aquela religiosidade é transmitida não faz sentido para o dependente químico”, diz Dotta. Furtado avalia que a maioria rejeita os centros e prefere ficar nas ruas, porque não vê a internação como um tratamento. “É apenas uma forma de retirar os usuários da visibilidade social e do espaço onde eles estão. Eles vão para as comunidades, mas voltam do mesmo jeito. Então, o internado não rejeita o tratamento, rejeita ficar isolado por um tempo sem que isso ajude de fato a organizar a sua vida. Com isso, a maior parte da população de rua não consegue permanecer. Ou foge ou sai.”

Max, ex-interno, descreve um “exitoso mecanismo de controle” dos dependentes

Na região da Luz, Dotta escuta diariamente denúncias de violações dos direitos humanos cometidas pelos funcionários desses espaços: “Muitos relatam terem sido dopados quando não obedeciam ou criticavam alguma situação. Ou são dopados no dia da visita dos familiares”. Relatos semelhantes são ouvidos por Garcia nos CAPS: “Há aqueles que tiveram experiências em comunidades onde ocorreu tortura, foram proibidos de ir e vir ou de fazer contato com a família. Tiveram seus documentos retidos e nem sequer podiam usar o telefone. Há relatos de dependentes que foram obrigados a participar de cultos religiosos, a trabalhar e a arrecadar dinheiro para a própria comunidade terapêutica”. Os depoimentos estão registrados em vários documentos do Conselho Federal de Psicologia e por outros órgãos que visitaram comunidades em todo o País. “A ideia geral de que a internação como forma de punição é algo terapêutico para os usuários é que torna isso possível”, acrescenta Garcia.

Em relato a CartaCapital, Max (nome fictício) descreve sua experiência em uma comunidade do Rio de Janeiro, para onde foi duas vezes, uma de forma voluntária e a outra após o que qualifica como uma “armadilha perfeita”, em que ele e sua família foram apanhados. “Por meio da alegação de que há necessidade de ‘cortar o cordão umbilical psicológico’, a primeira ligação para um parente só é permitida após 15 dias e a primeira visita após um mês. Mas esses contatos não são livres e estão sujeitos a diversos tipos de censura, para que os familiares só saibam a verdade do que ocorre ali após o término da internação.” Com diploma universitário e morando com a família, Max avalia ser mais consciente da situação do que a maioria daqueles que encontrou na comunidade, muitos deles moradores das ruas. “Alguns jamais entenderão o que acontece a si próprios lá dentro”, lamenta.

Max descreve um “exitoso mecanismo de controle” que mistura favorecimento e castigo: “Além de realizar quase todo o trabalho de manutenção do espaço, alguns são chamados a compor uma ‘equipe de direção’ em troca de pequenas regalias. A função básica dessa equipe é conter os internos insatisfeitos e manter a farsa. Os benefícios para quem a integra são diversos e seguem uma hierarquia de funções de acordo com a fidelidade dos algozes”. Segundo ele, a ascensão na hierarquia interna da comunidade inclui até mesmo um “plano de carreira” oferecido pelos pastores: “Isso significa uma pequena remuneração ainda internado e até mesmo um emprego após a internação. Esses empregos, na verdade, são pouquíssimos, mas o interno cooptado é levado a crer que será empregado. Como lidam com vidas destruídas pelas substâncias químicas, muitos se apegam a essa oportunidade com bastante ímpeto”.

Crítica. Abordagem errada, diz Furtado – Imagem: Luís Oliveira/Ministério da Saúde

Diante de tal realidade, Lumena Furtado aponta o retrocesso promovido por Bolsonaro. “O governo federal tirou o financiamento de estratégias como o Núcleo de Apoio à Saúde da Família, diminuiu os recursos para os CAPS e as redes abertas de saúde mental”. A psicóloga lembra que o Brasil vinha há anos em um processo de qualificação do modo de cuidar dos dependentes, conforme a discussão feita internacionalmente em paí­ses que compreendem se tratar de uma situação de saúde pública e não de segurança. Essa perspectiva, diz, previa uma rede aberta de cuidados. “Tudo se conectava a um tripé: apoio à moradia provisória, geração de renda e cuidado em saúde e assistência social. Partia-se do pressuposto de que esse cuidado tem de ser feito em parceria com o paciente, ele tem de ser protagonista. Tem de haver um serviço de acolhimento 24 horas e preparado para acompanhamento intensivo, mas que tenha a ver com o território e a rede social e afetiva que aquele indivíduo possa ter.”

Leon Garcia emenda: “É absolutamente anacrônico que as comunidades terapêuticas recebam financiamento público. Como pode usar dinheiro público para financiar algo que não se entende como tratamento?” A questão, diz, “é saber por que as grandes cidades brasileiras ainda têm essa ideia antiquada de punir de alguma forma quem usa drogas”. A maneira como as diversas esferas de governo lidam com os dependentes químicos, afirma Furtado, “está próxima ao conceito de guerra às drogas”, e cita o exemplo recente de São Paulo: “Acontece novamente o absurdo de encaminhar o usuário de crack a uma delegacia e de lá levá-lo compulsoriamente a uma comunidade terapêutica. São políticas que não se conectam à possibilidade de um cuidado integral e por isso não fazem nenhum sentido. Em São Paulo, as ações dos governos municipal e estadual as tornam ainda mais violentas e precárias”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A fé move moedas”

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