Justiça

A doce vida de um sonegador brasileiro nos EUA

Com a prisão decretada no Brasil há cinco anos e uma dívida bilionária com o Fisco, Ricardo Magro esbanja a sua riqueza em Miami

Ascensão. Depois de passar uma temporada na penitenciária de Bangu, o empresário agora vive neste singelo palacete de 36 milhões de dólares. (FOTO: Redes sociais)
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Não são poucos os empresários brasileiros às voltas com problemas judiciais por sonegação de impostos. Ao longo da história recente, muitos deles, como que imunes à reprovação pública, chegaram a frequentar as mais altas rodas e a virar figurinhas fáceis em prestigiadas colunas sociais. Nenhum deles, no entanto, jamais aliou com tanta desenvoltura os perfis de sonegador, advogado e empresário ­bon-vivant como o carioca Ricardo Andrade Magro, de 59 anos. Ele é o homem por trás da Refit, nome atual da Refinaria de Manguinhos, localizada próxima à zona portuária do Rio de Janeiro e segunda maior devedora de impostos aos cofres públicos brasileiros, com um débito que se aproxima de 5 bilhões de reais.

Magro hoje é um ilustre habitante de Miami, onde vive há pelo menos cinco anos, desde que teve sua prisão decretada no Brasil. O último ano e meio foi confortavelmente passado em uma mansão comprada por 36 milhões de dólares no sofisticado bairro de Coconut Grove. A residência pertencia ao astro da NBA ­Lebron ­James, detalhe que revela o interesse do sonegador brasileiro pelo mundo dos esportes. Desde julho, ele é sócio do empresário-celebridade Dana White, dono da franquia de lutas marciais UFC, na venda de uma marca de gasolina aditivada distribuída pela Fit, outra de suas empresas. Na peça publicitária de lançamento do produto, o lutador brasileiro Rodrigo ­Minotauro atuou como garoto-propaganda.

O empresário brasileiro veste o figurino-padrão do ricaço americano. Recentemente, inaugurou nos EUA uma fundação, na qual pretende aplicar, “sem fins lucrativos”, parte da fortuna que os problemas com o Fisco brasileiro tornam difícil de estimar, mas que se aproximaria do bilhão de dólares. Legalizada pela Justiça da Flórida, a Magro Family Foundation, segundo sua ata constitutiva, atenderá “jovens carentes”, conceito pouco nítido na sociedade norte-americana. “A corporação é organizada exclusivamente para fins beneficentes, científicos e educacionais. Tem o objetivo específico de construir o caráter e a aptidão física de jovens carentes e em situação de risco por meio de treinamento em artes marciais”, diz o documento. No mesmo endereço da Fundação Magro, localizada em Coral Gables, outro bairro de milionários, funciona uma moderna academia de ginástica e lutas ironicamente batizada pelo brasileiro como Refit.

Hoje, o bon-vivant mora em uma mansão em Coconut Grove, comprada de Lebron James, astro da NBA

O bom humor de Magro não é compartilhado pelas autoridades fiscais brasileiras. Por aqui, as empresas dele e de outros integrantes da família têm dívidas superiores a 10 bilhões de reais. A líder em sonegação é também a maior delas, a Refit/Manguinhos, em recuperação judicial para conseguir quitar os 4,9 bilhões de reais registrados na Dívida Ativa do Estado do Rio de Janeiro, onde aparece como a segunda maior devedora. ­Atualmente, a controladora da refinaria carioca, com 65% das ações, é uma empresa comandada por João Manuel Magro, pai de Ricardo. Em demonstração financeira divulgada na terça-feira 16, a Refit informa um prejuízo de 130 milhões de reais em 2021. Ao longo dos anos, o rombo acumulado pela companhia alcança a espantosa cifra de 3,5 bilhões.
Há dois anos chamou atenção do Grupo de Atuação Especializada no Combate à Sonegação Fiscal (Gaesf) do Ministério Público do Rio de Janeiro o caso da Tiger Oil, empresa com atuação na Baixada Fluminense controlada por João Manuel Magro e Manuel Joaquim Andrade, avô de Ricardo por parte de mãe. O MP denunciou a prática de “sonegação sistemática e organizada” de impostos realizada pela distribuidora de combustíveis entre 2004 e 2006. As relações familiares não param por aí. Outras 16 empresas têm como dona Gabriela da Conceição Andrade Magro, mãe de Ricardo. Um nome também recorrente é o de Ernesto Andrade, irmão de Gabriela e tio de Ricardo. “Ele não tem nenhum pudor em usar os parentes mais próximos como laranjas”, diz um crítico do empresário, que prefere não ser identificado.

O sócio. Dana White, da franquia UFC, é um parceiro comercial de longa data. (FOTO: Zhe Ji/Getty Images/AFP)

É extenso o rol de empresas ligadas a Magro em situação irregular com os impostos. A Arrows Petróleo do Brasil tem um pendura de 2,3 bilhões de reais em sonegação no Rio, mesmo caso das distribuidoras de petróleo e derivados Inca Combustíveis (dívida de 1,2 bilhão), Rodopetro (1,1 bilhão), Dínamo (900 milhões), Tiger Oil (700 milhões) e Manguinhos Distribuidora (300 milhões). Além das empresas em nome da família, Magro aparece como procurador de outras devedoras do Fisco, como a TA Oil Distribuidora de Petróleo, com dívida de quase 300 milhões, e a 76 Oil Distribuidora de Combustível, devedora de 100 milhões.

Segundo o advogado Paulo Inácio Xavier, representante legal da World Comércio Atacadista de Combustíveis em uma ação na qual a distribuidora acusa a Refit de “comportamento predatório e concorrência desleal”, as empresas de Magro formam um cartel que, além de perseguir concorrentes, se vale para isso de um sofisticado esquema de sonegação. “É um sistema inteligente, são várias empresas e nenhuma paga ICMS”, diz. A prática desleal é uma bola de neve que só faz aumentar a riqueza pessoal do empresário. “A Refit importa petróleo da trading controlada por Magro, que tem lucro com isso, mas o dinheiro fica nos Estados Unidos. Na verdade, a Refit vende imposto”, completa o advogado.

Quase a totalidade das empresas envolvidas em ilegalidades fiscais é cliente de um mesmo escritório de “advocacia empresarial especializada”, a Magro Advogados Associados. Os vultosos pagamentos de honorários por empresas virtualmente falidas chamam atenção do Ministério Público, que suspeita de distribuição disfarçada de lucros. Apenas a Refit, que responde por 20 crimes contra a ordem tributária, registrou 13% de sua receita como “despesas de honorários”. Somente no último trimestre, a refinaria repassou 23 milhões de reais como pagamento ao escritório de advocacia comandado pelo próprio Ricardo Magro, em valores nitidamente superiores aos praticados pelo mercado. “Ele comete o crime ao sonegar impostos e ainda lucra defendendo a si próprio”, diz Xavier. O esquema fica também caracterizado, acrescenta, pelo fato de que todas as empresas envolvidas na sonegação são clientes do mesmo escritório de contabilidade, a Delftconsult, “com nome de fantasia sem dono conhecido”.

Segundo o MP, as empresas da família de Magro devem mais de 10 bilhões de reais em tributos

Xavier revela que está fazendo um levantamento de todas as ações penais movidas contra as empresas de Magro e seus familiares. O relatório será enviado à Justiça norte-americana para integrar uma ação que contesta a sociedade firmada com a franquia UFC de Dana White. “Já que no Brasil o Magro parece inalcançável, o caminho para detê-lo passa pelos EUA. Se ele tem negócios por lá, tem de ser submetido às leis daquele país.”

Os problemas de Magro com a Justiça não começaram ontem. Em 2016, quando era um dos advogados do então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o empresário teve a prisão determinada pela 5ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, após ser responsabilizado junto a seis outras pessoas pelo desvio de 90 milhões de reais dos fundos de pensão Postalis, pertencente aos Correios, e Petros, da Petrobras. O montante serviria para adquirir debêntures emitidas pelo grupo educacional Galileo, que pretendia comprar a tradicional Universidade Gama Filho, localizada na Zona Norte do Rio. Segundo o Ministério Público, o dinheiro captado acabou desviado para as contas bancárias dos indiciados, o que “levou à quebra definitiva da Gama Filho e causou danos a milhares de estudantes”. Beneficiado pela fraude, Magro era então um dos sócios do Galileo.

Cinco anos antes, a ligação de Magro com Cunha foi revelada pela Operação Alquila, da Polícia Federal, que investigava fraudes no mercado de distribuição de combustíveis no Rio. Em conversa grampeada com o empresário, o deputado teria se comprometido a “pressionar a Braskem” para que esta vendesse gasolina Tipo A para a Refinaria de Manguinhos. Segundo as investigações realizadas em 2009, o combustível era despejado ilegalmente no mercado fluminense e Magro adquiria de forma fraudulenta o produto industrializado como se fosse insumo, sendo com isso contemplado pelos benefícios fiscais concedidos às refinarias produtoras, além de aumentar consideravelmente sua margem de lucros.

Rolos. A Refit acumula uma dívida de quase 5 bilhões com o Fisco. Em 2016, Magro era um dos advogados de Cunha. (FOTO: Diego Baravelli e Lula Marques/Agência PT)

Mesmo “autoexilado”, Magro voltou a demonstrar sua proximidade com os altos círculos de poder ao bancar o último Carnaval carioca antes da pandemia. Na ocasião, a pedido do então governador Wilson Witzel, a Refit ofereceu de última hora um patrocínio de 20,5 milhões de reais às escolas de samba que haviam sido deixadas na pista por outros patrocinadores. Na ocasião, a dívida estadual da Refit chegava a 2,5 bilhões de reais. O empresário buscava ­aproximar-se do governador, mas o projeto acabou abortado pelo processo que culminou no impeachment de Witzel.

Se for levada em consideração pela Justiça nos EUA, a ação contra Magro pode não somente melar a parceria com Dana White, como também atingir em pleno voo as novas aventuras empresariais do sonegador. Em agosto, ele anunciou que pretende investir parte de seus recursos na “mineração” de bitcoins, criptomoeda cujo valor unitário, sujeito a oscilações, está atualmente na faixa dos 50 mil dólares. A mineração de criptomoedas é considerada altamente dispendiosa e, para ser empreendida com sucesso, é preciso manter ligada de forma permanente uma grande rede de computadores. Coisa para gente rica, mas dinheiro para Magro não parece ser problema nos EUA. Já no Brasil, a evolução das ações contra ele na Justiça pode culminar em um pedido de extradição. CartaCapital tentou contatar o empresário por meio da assessoria de imprensa da Refit, mas não obteve retorno e tampouco recebeu as respostas dos questionamentos feitos até a conclusão desta reportagem.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1184 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE NOVEMBRO DE 2021.

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