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Vanguarda do atraso

O Conselho Federal de Medicina é obrigado a recuar na restrição ao uso da Cannabis medicinal no Brasil

Vítimas. A decisão do órgão ameaçou o tratamento de milhares de pacientes - Imagem: Yasuyoshi Chiba/AFP e Nelson Almeida/AFP
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“Atravessamos um deserto e, finalmente, encontramos um oásis. Fico emocionada ao falar, porque durante muitos anos o João viveu sob efeito de medicações fortes. Ele era indiferente ao meio, não conseguia demonstrar emoções, estava sempre dopado”, conta Fabianne ­Rezeck, mãe de João Pedro, de 25 anos, portador da Síndrome de Dravet, que há nove meses deixou para trás três medicamentos de tarja preta para apostar no óleo essencial de Cannabis e viu melhoras significativas com o tratamento.

A história de João Pedro é parecida com a de milhares de pacientes que usam o canabidiol, substância extraída da maconha, para tratar dores crônicas, doenças com quadros convulsivos, efeitos colaterais de quimioterapias e até conter o avanço de enfermidades degenerativas, como a fibromialgia. Se a tentativa do Conselho Federal de Medicina de restringir o seu uso não tivesse sido barrada, todos eles poderiam ficar sem o tratamento ou cair na clandestinidade, do dia para a noite.

Não à toa a mobilização popular foi muito rápida. O CFM apresentou uma proposta em 14 de outubro que restringia o uso medicinal da Cannabis a apenas três tipos de epilepsias muito raras, e só até os 18 anos do paciente. “O João tem uma das doenças que a resolução do Conselho permitia o tratamento, mas ele não poderia mais tomar o óleo porque tem 25 anos, como se depois dos 18 a doença desaparecesse, imagina? A gente não consegue mais pensar no que seria da nossa vida sem esse remédio, mudou a rotina de toda a família”, afirma Rezeck.

Após uma série de manifestações da sociedade civil, o CFM recuou em 24 de outubro e abriu o tema para consulta pública, que deve durar 60 dias e envolve não só médicos, mas todos os interessados. Não é de hoje, porém, que o Conselho figura na vanguarda do atraso. O deputado federal Paulo Teixeira, autor de um projeto de lei para regulamentar o uso medicinal da Cannabis, lembra: “É uma decisão do mesmo Conselho Federal de Medicina que validou a cloroquina para o tratamento de Covid-19. Ou seja, apoia a cloroquina, que comprovadamente não tem eficácia, e nega o uso da Cannabis, com evidências científicas em todo o mundo”.

O médico Nelson Goldstein, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, diz respeitar, mas não concorda com o posicionamento do CFM. “Nesse tema, o Conselho está ideologicamente contaminado e se recusa a dar atenção a muita literatura produzida ao longo dos anos. A saída é regulamentar o uso medicinal de ­Cannabis, porque só assim teremos liberdade para estudar, trabalhar e promover o debate dentro da academia e criar ensaios mais elaborados.”

Fechado com Bolsonaro, o CFM validou o uso da cloroquina e volta a ignorar a ciência ao vetar o acesso ao canabidiol

Esse mesmo CFM também tentou barrar a atuação de médicos cubanos no País, em áreas periféricas ou remotas que os profissionais brasileiros não tinham interesse em atuar. Muitos devem ainda se lembrar da cena vergonhosa, protagonizada por uma claque de jaleco branco, que foi ao aeroporto de Fortaleza hostilizar os colegas estrangeiros.

A advogada Margarete Brito, fundadora da Apepi, associação de pacientes e familiares que usam a Cannabis medicinal, não titubeia: “O Conselho Federal de Medicina está fechado com o presidente Jair Bolsonaro. Essa decisão foi nitidamente política”. Cassiano Gomes, que também atua em uma associação, a Abrace, vai na mesma linha. “Não foi uma decisão técnica, foi um ato político. Bolsonaro falou contra a maconha nos debates presidenciais, e viram uma oportunidade de abrir uma consulta pública às pressas para aprovar essa medida. Tiveram de recuar após a repercussão negativa na mídia, sobretudo na tevê aberta.”

As associações fazem o meio de campo entre pacientes e médicos, ajudam as famílias a obter ou até mesmo a produzir o óleo essencial de Cannabis e prestam assessoria jurídica, quando necessário, para quem precisa do tratamento. A maioria delas nasceu da ­necessidade de buscar alternativas para doenças que a medicina tradicional se mostrava pouco eficaz, e se tornaram verdadeiros grupos de apoio.

Foi através da Apepi que a fisioterapeuta Rosilene Teixeira conheceu a ­Cannabis medicinal. Hoje com 54 anos, ela sofria com dores crônicas desde a infância, devido à fibromialgia, e há dois anos passou a ter o que chama de “vida normal”, graças às 22 gotas de óleo de Cannabis que toma todas as noites antes de dormir. “Os médicos falavam que eu poderia morrer em decorrência de algum problema relacionado aos medicamentos, ou por uma cirrose medicamentosa, porque eu tomava muitos remédios para conseguir aplacar a dor, até morfina usei. Eu não sabia o que era dormir.”

Agora, o único efeito colateral que Rosilene tem depois de abandonar a tarja preta é uma sonolência excessiva, mas justamente antes de ir para a cama. “Fico um pouco zonza, às vezes meus filhos brincam que estou falando as palavras enroladas, aí sei que é hora de deitar porque vou dormir a noite toda, coisa que durante anos não acontecia.”

O excesso de remédios, que com o tempo perdem a eficiência, costuma ser um dos motivos que levam milhares de pacientes a procurar na Cannabis uma alternativa. É o caso de Francisca Alves, de 88 anos, diagnosticada com Alzheimer há sete. Ela tomava três medicamentos antipsicóticos que, no início, ajudaram a regular o quadro da doença e o sono, mas com o tempo passaram a ter efeitos colaterais danosos.

“Um dia minha mãe travou. De repente, ela não se mexia mais. Entrei em desespero, suspendi a medicação e, em três dias, ela começou a voltar. Em busca de tratamento alternativo, chegamos ao óleo de Cannabis. Hoje, ela só toma o óleo e mantém uma alimentação equilibrada. É o suficiente para levar uma vida normal mesmo com Alzheimer”, conta a filha Cláudia Alves, que virou entusiasta do tratamento e mantém um canal de divulgação no YouTube e no Instagram chamado “O Bom do Alzheimer”.

Agora que o assunto está de novo aberto à consulta pública, o advogado e fundador da associação Divina Flor, Felipe Nechar, acredita ser o momento de avançar na pauta. “A medida vigente permite apenas o uso compassivo. Ou seja, você só pode usar a terapia com Cannabis em último recurso. No caso de uma criança com autismo que se apresente agressiva, a família teria de buscar primeiro a eletroconvulsoterapia. Faz sentido?” •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1232 DE CARTACAPITAL, EM 2 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Vanguarda do atraso”

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