Política

Psiquiatras denunciam lobby da Associação Brasileira de Psiquiatria para desmonte de políticas de saúde mental

Os profissionais veem interesses corporativistas e mercadológicos por trás do ‘revogaço’ de portarias que estruturam o cuidado com pacientes

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Diante da tentativa do Ministério da Saúde de revogar portarias que estruturam a Política Nacional de Saúde Mental, mais de mil profissionais da psiquiatria assinam um manifesto contra as possíveis mudanças. Os profissionais denunciam uma aliança entre a Associação Brasileira de Psiquiatria, o Conselho Federal de Medicina e o governo federal.

Para os signatários, o ‘revogaço’ enterraria de vez a reforma psiquiátrica brasileira. Significando, na prática, a volta de um modelo assistencial centralizado em internações e o fim de políticas antimanicomiais reconhecidas nacional e internacionalmente, construída ao longo de décadas por profissionais de diversas áreas, além dos próprios usuários da Rede de Atenção Psicossocial e de seus familiares. Em resumo, avaliam, troca-se uma política baseada no cuidado, na autonomia e na liberdade das pessoas em sofrimento psíquico pelo retorno dos manicômios, disfarçados como “comunidades terapêuticas” e “hospitais de retaguarda”.

Os profissionais apontam a ligação entre documento “Diretrizes Para um Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil”, apresentado ao Ministério da Saúde pela ABP em agosto, com a revogação das portarias pretendida pela gestão Bolsonaro. Diz o texto:

“A apresentação do documento atual, num momento de tantas dificuldades e tão graves omissões no que concerne à saúde dos brasileiros, soma-se a outros indícios de retrocesso: segundo reportagem da revista Época, do dia 6 de dezembro último, o Ministério da Saúde pretende revogar importantes portarias da Saúde Mental, colocando em risco o programa de reestruturação da assistência psiquiátrica hospitalar, as equipes dos Consultórios de Rua e a Comissão de Acompanhamento do Programa De Volta pra Casa’.”

Os autores também destacam “interesses corporativos e mercadológicos” por parte da ABP, e apontam que a entidade, “atribui-se o direito de formular por si só toda uma política pública de saúde mental, desdenhando o diálogo com os múltiplos segmentos envolvidos, que exigem e merecem voto e voz.”

O manifesto ainda rejeita afirmação de que o recente documento da ABP está de acordo com a lei da reforma psiquiátrica, de 2001, lembrando que a ABP se opôs à aprovação da lei que originou a reforma e tem sustentado posições contrárias. Segundo eles, o processo de desmonte da Raps vem ocorrendo, pelo menos, desde 2017, com a instituição da “nova” Política Nacional de Saúde Mental, sem que o assunto tivesse sido debatido com as diversas categorias que integram a rede.

Entre os equívocos do texto da ABP, os profissionais da psiquiatria citam “a redução do Caps a um equipamento de reabilitação social para doentes graves e crônicos”, o que impediria os centros de atender emergências e realizar intervenções ambulatoriais, descaracterizando completamente o serviço.

Os profissionais também criticam a ABP pela “defesa intransigente da abstinência, contrária à perspectiva da redução de danos”, e por sugerir “a criação de hospitais de retaguarda para moradores, que remetem às fatídicas instituições para internações de longa permanência”.

Também foi divulgado um outro manifesto, assinado, entre outros, pelos ex-ministros da Saúde, Alexandre Padilha, José Gomes Temporão e Arthur Chioro. Os médicos e médicas reforçam a defesa da Raps e manifestam “integral apoio aos trabalhadores, usuários e familiares da saúde mental, na defesa da reforma psiquiátrica e do Sistema Único de Saúde”.

Encabeçado pela Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela democracia (ABMMD) e pela Rede Nacional de Médicos Populares (RNMP), o documento, que também já conta mais mais de mil assinaturas, enfatiza que Conselhos de Medicina e Associações Médicas têm se mantido, ao longo dos anos, alheios ao SUS, “voltados apenas para interesses corporativistas e mercadológicos”.

Revogaço

A planilha propunha revogar 99 portarias (editadas entre 1991 a 2014) que sustentam a Política Nacional de Saúde Mental. O documento foi apresentado pelo Ministério da Saúde ao Conselho Nacional de Secretários da Saúde, em reunião ocorrida no último dia 4 de dezembro.

Entre as mudanças sugeridas pelo governo federal, estão o fim do programa De Volta para Casa, das equipes de Consultório na Rua e do Serviço Residencial Terapêutico. Além disso, os Caps fariam apenas reabilitação, não mais o atendimento psiquiátrico. O governo também cogita a extinção dos Caps voltados aos usuários de álcool e drogas.

Ativista da luta antimanicomial, a psiquiatra Ana Marta Lobosque, autora de livros como “Clínica em movimento” e “Experiências da loucura”, destaca a importância do Serviço Residencial Terapêutico e do programa De Volta para Casa:

“Nos manicômios, as pessoas ficavam internadas por décadas, a vida inteira, e as Residências vieram substituí-los, como política pública. São casas para as pessoas continuarem a viver sem estarem internadas. E está em risco também o De Volta para Casa, que até então dava uma bolsa para essas pessoas poderem viver. Em ambos os casos, esses são pacientes cujas famílias não querem mais contato”.

Retrocessos no governo Temer

Em 2017, o então presidente Michel Temer iniciou o processo de desmonte da Raps com a publicação de três portarias ministeriais, até hoje são alvo de questionamento da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão.  A chamada Nova Política Nacional de Saúde Mental institui, entre outras medidas, o financiamento de leitos psiquiátricos e das “comunidades terapêuticas”, alvo de várias denúncias por tortura e outras violações de direitos humanos (como indica o Relatório de Inspeção Nacional elaborado em 2019 pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, Conselho Nacional do Ministério Público, Ministério Público do Trabalho e Conselho Federal de Psicologia).

Lobosque ressalta ainda que, desde a era Temer, o governo federal tem nomeado profissionais ligados à ABP e ao CFM para o alto escalão da saúde mental no Ministério da Saúde.

“O atual governo só conversa com entidades médicas, sendo que a reforma psiquiátrica é produto de uma pluralidade de atores, trabalhadores em saúde mental, usuários, familiares etc. E desde 2017 quem dita as regras é a ABP, que está de mãos dadas com o CFM. Ambas entidades trabalham num modelo estritamente biomédico, em que tratar do outro significa apenas fazer uma consulta”.

A psiquiatra faz questão de frisar que a ABP não representa todos os psiquiatras do País:

“A ABP fala como se fosse unanimidade entre os psiquiatras, e não é. Um contingente importante da categoria psiquiátrica não concorda com a Associação. Existem inúmeros psiquiatras que defendem a reforma, que são totalmente contrários a essas entidades médicas corporativistas, mercadológicas”.

A médica também ressalta que, enquanto as portarias anteriores propunham uma substituição gradativa dos hospitais psiquiátricos por outros tipos de serviços que pudessem atender os casos graves, houve a partir de 2017 um aumento nos investimentos em hospitais especializados, com alta no valor das diárias, entre outros benefícios financeiros.

Retrocessos no governo Bolsonaro

Em 2019, já na gestão de Bolsonaro, o Ministério da Saúde publicou uma Nota Técnica reforçando as diretrizes de 2017 e autorizando, por exemplo, a compra de aparelhos de eletrochoque para o SUS e a internação de crianças e adolescentes em hospitais psiquiátricos, mesmo que frequentados por adultos. O texto também incentivava a política de abstinência em detrimento da redução de danos, modelo considerado mais humanizado e em conformidade com o que determina a lei que institui a reforma psiquiátrica no País.

Presidente Jair Bolsonaro. Foto: Evaristo Sá/AFP

As seguidas alterações levaram o Ministério Público Federal a intervir na situação, por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que, em 2019, questionou as mudanças e cobrou a revogação das normas editadas desde 2017. No documento, a Procuradoria afirma que a nova Política Nacional de Saúde Mental retoma a lógica ultrapassada da institucionalização, por meio do financiamento de leitos psiquiátricos e de “comunidades terapêuticas”. Também questiona o rito de publicação das mudanças, que deveriam ter passado pelo Conselho Nacional de Saúde, e não apenas pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT), instância dos SUS que não tem poder de modificar a legislação vigente.

Ambulatórios especializados x Caps

Para Ana Marta Lobosque, a inclusão dos ambulatórios especializados na Raps, como quer a ABP, não se conecta com a política da Raps, invertendo a lógica do sistema. Ela defende a continuidade dos atendimentos ambulatoriais nos Caps e nas UBSs: “O atendimento ambulatorial pode continuar a ser feito nos Caps e nas UBS, preservando o vínculo territorial do usuário do sistema e evitando uma política baseada nas internações. Esses ambulatórios, ao contrário, não têm nenhuma conexão com a proposta da Rede de Atendimento Psicossocial”.

Em nota, a ABP rebate as acusações em relação à reforma psiquiátrica e desvincula-se da autoria das planilhas do revogaço, mas defende a implementação dos ambulatórios especializados. A justificativa, no entanto, reforça o que dizem os psiquiatras no manifesto.

Segundo a ABP, os ambulatórios “já existem na rede privada e precisam também estar disponíveis no SUS, já que foram criados para fornecer o que há de melhor para toda a população”. A entidade ainda defende abertamente o enfraquecimento dos Centros de Atenção Psicossocial. De acordo com a Associação, os ambulatórios “têm uma dinâmica diferente dos CAPS, que atendem bem menos pacientes, já que se ocupam de casos mais graves, com muitos problemas psicossociais, necessitando de trabalho mais intenso de reabilitação e reinserção social”.

 Lobosque chama a atenção para os perigos de um atendimento centralizado em hospitais, como é o caso dos ambulatórios especializados: “É uma oferta indiscriminada de consultas que não entra na lógica da Raps. O Caps é um tipo de serviço onde o paciente em crise passa o dia, passa a noite, se preciso, porque o paciente grave precisa de companhia. Mas a lógica de quem defende os ambulatórios é a seguinte: se o paciente tem um distúrbio mais grave, manda direto para o hospital psiquiátrico, sem tentar nada antes. Portanto, quem defende esse tipo de postura não vê sentido no que a gente faz, e que é a base da assistência em saúde mental brasileira: manter os pacientes juntos conosco, no Caps”.

Lobosque ainda afirma que, o protagonismo dos Caps após a reforma psiquiátrica, impediu que a destruição total do sistema nos últimos anos. O desmonte da Raps, alerta ela, tem enfraquecido aos poucos o serviço. “Os Caps continuaram recebendo financiamento a partir das portarias que já existiam, mas muito abandonados, muito soltos. E isso resultou em prejuízo para todos.”

Laura Fusaro Carmey, vice-presidente da Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais, explica a diferença entre o tratamento humanizado e o tratamento em leitos hospitalares:

“No Caps, qualquer pessoa pode entrar. Se a pessoa chega com um sofrimento psíquico agudo, os profissionais irão acolhê-la naquele momento. E o Caps é estruturado sem a existência de um ‘quartinho depósito’, em que joga-se a pessoa em crise. Também não tem as ferramentas de tortura que os hospitais psiquiátricos têm. Ou seja, existe uma equipe que está ali, num ambiente aberto, ao lado da pessoa, olhando, escutando o usuário”.

Laura ressalta a potência da socialização entre usuários, familiares e profissionais da saúde mental:

“A beleza do tratamento nos Caps é entender que o local preferencial para cuidar do sofrimento psíquico é junto das pessoas, junto de outros usuários, junto dos familiares, junto de uma equipe que está ali para cuidar, para estar perto. Não é o olhar do tratamento em hospitais com leitos, em que você medica e vai embora, aparece uma enfermeira ‘de vez em nunca’”.

Segundo ela, é preciso definir se a saúde mental serve aos usuários da Raps ou aos interesses mercadológicos da psiquiatria: “A primeira questão é: pessoas com transtornos mentais e com problemas com álcool e drogas têm direito à liberdade? Essa é a primeira pergunta que tem de ser feita. A psiquiatria tem o direito de dizer se a pessoa tem ou não o direito de ser livre?”, questiona.

E completa: “A segunda questão é: a quem serve a saúde mental? A saúde mental serve às pessoas em sofrimento psíquico, a seus familiares ou ela serve às categorias profissionais. A saúde mental é um mecanismo para sumir com aquilo que é indesejável ou é uma política de saúde? Ela precisa se definir. Porque se ela visa o bem do paciente, primeiramente, ela não pode corroborar com práticas de privação da liberdade. E se o usuário tem direito de circular pela cidade, o psiquiatra não pode ter o poder de prender ninguém em um hospital psiquiátrico”.

Reforma psiquiátrica e a importância dos Caps

A Reforma Psiquiátrica Brasileira tem como base legal a Declaração de Caracas, de 1990, da qual o Brasil é signatário, e que se articula com a luta do movimento de trabalhadores em saúde mental. A lei abriu caminho para o desenvolvimento de programas de suporte psicossocial nos serviços comunitários, inspirados, por sua vez, nas chamadas “empresas sociais” da reforma psiquiátrica italiana.

Implementada oficialmente em 2001, a reforma modificava o modelo da assistência psiquiátrica vigente até então. O texto aprovado, que tem como base projeto original do sociólogo e ex-deputado Paulo Delgado (PT-MG), regulamentava cuidado especial com cidadãos internados por longos períodos, e previa a possibilidade de punição para a internações arbitrárias ou desnecessárias.

Sob essas novas diretrizes foi criada a Raps, reds composta pelos CAPS, os Serviços Residenciais Terapêuticos, os Centros de Convivência e Cultura, as Unidades de Acolhimento e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais e nos CAPS). Faz parte dessa política também o De Volta para Casa, que oferece bolsas para pacientes egressos de longas internações em hospitais psiquiátricos.

Os Caps são espaços abertos à população e têm como ferramentas o atendimento individualizado, com rodas de conversa, oficinas artísticas e o tratamento terapêutico individual e em grupo. O objetivo é oferecer um tratamento ambulatorial humanizado, que preserve os laços dos usuários com a sua comunidade.

Composto por médicos, enfermeiros e psicólogos e assistentes sociais, os Caps se dividem em seis tipos, dependendo do número de habitantes do município e da complexidade dos casos. Os Caps Álcool e Drogas III, por exemplo, estão presentes em cidades com mais de 200 mil habitantes, funcionam 24 horas por dia e cuidam de pessoas com necessidades relacionadas ao consumo de psicoativos.

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