Saúde

“Para muitos, produzir soja parece mais sedutor do que produzir medicamentos”

Economista Carlos Gadelha, da Fundação Oswaldo Cruz, avalia o momento do Brasil diante da epidemia de coronavírus. Leia a entrevista

Foto: Andrew Theodorakis/GETTY IMAGES NORTH AMERICA/AFP
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O economista Carlos Gadelha, líder do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento, Inovação e Complexo Econômico-Industrial da Saúde da Fiocruz, foi secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde e de Desenvolvimento e Competitividade do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. A partir de 2008, colaborou com o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão na estruturação do Complexo Econômico e Industrial da Saúde, que utilizou o poder de compra do Estado no atendimento à demanda do SUS por meio de parcerias de desenvolvimento produtivo para adquirir, na maior parte dos casos, produtos de custo alto e de alta complexidade tecnológica e assim estimular a produção local e a transferência de tecnologia. Na entrevista a seguir, Gadelha discorre sobre o custo para o País da interrupção dessa estratégia diante dos desafios da pandemia e a importância da proposta, realçada no contexto da pandemia.

CartaCapital: Quais as medidas mais urgentes para o enfrentamento da Covid-19 no que se refere à produção de equipamentos de proteção individual, ventiladores pulmonares e vacina? 

Carlos Gadelha: Emergencialmente resta apenas buscar no mercado internacional, de modo muito ativo, produtos onde quer que eles existam. No mercado local, é preciso reunir todos os produtores e colocar a questão da responsabilidade deles em relação ao SUS e à demanda pública. Usar poder de Estado como a Europa e os Estados Unidos estão fazendo.

CC: O que havia de planejamento no período em que o senhor esteve no Ministério da Saúde para produção dos ventiladores pulmonares, cruciais contra a Covid-19?

CG: A lista de itens estratégicos do SUS elaborada em 2013 para produção nacional incluía ventiladores e luvas cirúrgicas, por exemplo. Nas parcerias de desenvolvimento produtivo entre instituições públicas e privadas para produzir no Brasil, os componentes tecnológicos críticos seriam nacionalizados, caso contrário não teria compra pública. Abortou-se essa estratégia, as quatro empresas nacionais de ventiladores pulmonares produzem 4 mil unidades por ano quando seria necessário fabricar ao menos 15 mil. Importamos peças centrais como a tela de cristal líquido, softwares, válvulas entre outras. Nós produzimos muito minério e soja, mas não conseguimos fabricar de modo tecnologicamente denso respiradores, produtos biotecnológicos.

CC: O País poderia ter avançado mais nos sistemas produtivos e de inovação? Por que isso não aconteceu?          

CG: A maior dificuldade de uma política industrial não é técnica, é mudar as amarras políticas e sociais do atraso. É superar tudo aquilo que é defasado, particular e mesquinho e que  inviabiliza a transformação de que a sociedade necessita. Esses interesses são manifestados pelos dirigentes e gestores, no poder Judiciário e nos órgãos de controle que, mesmo que bem intencionados, ao criminalizar a política de desenvolvimento acabam reforçando o atraso da matriz produtiva, os interesses do passado e das elites articuladas com um projeto de atraso do país. Eles se iludem com os sinais de curto prazo. Para muitos, produzir minério e soja parece mais sedutor do que produzir medicamentos, ventiladores e vacinas.

As quatro empresas nacionais de ventiladores pulmonares produzem 4 mil unidades por ano quando seria necessário fabricar ao menos 15 mil

CC: Como a Fiocruz, apontada no início do mês pela Organização Mundial da Saúde como laboratório de referência nas Américas, o Farmanguinhos e o Biomanguinhos, integrantes de um complexo, identificam medicamentos que serão usados em tratamentos no futuro?

CG: A Fiocruz tem 21 unidades de ciência, tecnologia, inovação e produção de bens e serviços. Para o futuro, é central o projeto que conta com o apoio do Ministério da Saúde para a consolidação e expansão da produção de vacinas de modo a atender as necessidades específicas de nossa população. A produção de vacinas, que inclui o Instituto Butantã, mostra que a visão do Complexo Econômico e Industrial da Saúde não é sonho. Somos produtores e temos que caminhar para sermos inovadores. Na produção farmacêutica, é essencial consolidar a biotecnologia, central por exemplo na área de reagentes para diagnóstico de coronavírus e outras doenças transmissíveis, de medicamentos para câncer e doenças raras e crônicas. Na área de serviços, o elo que estrutura todo o complexo, é fundamental ser cada vez mais uma referência para o padrão de assistência nacional como no caso das doenças infecciosas, em que temos tido um papel destacado nessa pandemia. A Fiocruz é um diamante da sociedade brasileira no Complexo Econômico e Industrial da Saúde e reúne condições para cumprir um papel fundamental em uma nova política nacional de desenvolvimento orientado pelos objetivos da sociedade, pela solidariedade e pelo bem estar.

CC: Como caracteriza a dependência de produtos de outros países na área da saúde?  

CG: A nossa dependência não é apenas de produtos, mas, antes de tudo, de tecnologia. Uma dependência por não saber fazer. Vou dar um exemplo. O Brasil hoje sabe fazer vacinas, por uma política que vem desde os anos 1980 e foi muito aprofundada com a nova geração de vacinas no período recente. O Butantã hoje tem alta capacidade na área de vacina contra a gripe comum porque houve uma estratégia, inclusive com empresas internacionais, mas sabia -se para onde ir porque se utilizou o poder de compra do Estado. Todos nós somos vacinados por uma vacina que é produzida na Fiocruz. Esse modelo, na área de vacinas, de usar o mercado público, mostrou que funciona. Está em curso. Porque a gente tem capacidade tecnológica. Parte disso é importado. Até para comprar bem é preciso saber produzir.

CC: Quais são as limitações dessa capacidade do Instituto Butantã e da Fiocruz?

CG: A nossa capacidade de resposta com produção nacional é limitada pela lacuna tecnológica que nós temos. Não vamos aprender a fazer em 15 dias. Na área de diagnóstico, por exemplo, a gente tem chance, porque a Fiocruz não parou de fazer produtos para diagnóstico, tanto que ela lidera essa produção. Sempre em parcerias com o setor privado, até para a gente enfrentar essa triste condição de que não existe nenhum país desenvolvido sem Estado forte e sistema produtivo forte. Ou seja, os avanços que mencionei foram conquistados quando se conseguiu estabelecer essas parcerias, mas o Estado dando uma direção.

CC: Na área de diagnóstico, em quais produtos há capacidade nacional? Onde Fiocruz, Manguinhos, Farmanguinhos são competitivos?

CG: Utilizando uma articulação entre o poder de compra do Estado e o desenvolvimento de tecnologia, o País conseguiu se desenvolver hoje no campo das vacinas, conforme mencionei, e também, de modo inicial, mas importante, no campo dos reagentes para diagnósticos, e ainda em alguns casos exemplares de produtos anti-retrovirais para o tratamento da AIDS. O Brasil conseguiu montar uma base produtiva de produtos para o tratamento da AIDS, até recentemente, que responderam e viabilizaram o programa nacional na área.

CC: A pandemia evidencia a necessidade do Estado, combatido pelos liberais radicais?

CG: Acho que uma das lições desta crise é essa. Nós precisamos do Estado. Com o Estado dando direção para os produtos e as tecnologias que são críticas para o País, é possível atender ou se preparar para dar resposta.  O contexto da Covid-19 remete para a necessidade de uma ação coordenada do Estado. No período recente, foram fragilizados os dois pilares mais estratégicos para enfrentar a crise, que são o industrial e o tecnológico. Isso não deve entretanto nos colocar numa situação de prostração. Sairemos da crise ficando em casa, com transferência de renda, sustentação do bem estar e a retomada de uma visão estruturante para o papel do Estado na sua dimensão social e do sistema produtivo e para o fortalecimento do Complexo Econômico e Industrial da Saúde como uma das grandes apostas do País para que a gente nunca mais seja pego de calça tão curta frente a uma pandemia.

CC: Mas será que essa mensagem está sendo captada?

CG: Hoje leio nos jornais artigos e editoriais pedindo prioridade à produção nacional. Até mesmo os grandes veículos de comunicação, que até um mês atrás falavam que produção nacional era coisa de dinossauro e que, conforme era frequente ouvir no final dos anos 1990, a melhor política industrial era não ter política industrial, agora todos eles defendem política nacional.

CC: Vários economistas, apesar da situação calamitosa do País na pandemia, não conseguem se libertar do paradigma anterior e querem manter a austeridade inclusive no socorro emergencial. 

CG: Parece que emergencialmente, todos eles são keynesianos e defendem o gasto fiscal, mas daqui a pouco voltam à agenda liberal de quebrar o Estado. Defendo o contrário, que a experiência atual mostra a necessidade de reconstruir a capacidade de articulação e coordenação do Estado para enfrentar não apenas essa pandemia, mas os desafios da sociedade contemporânea. A pandemia expõe as falácias desse modelo de que os direitos e o bem estar social não cabiam no PIB, que a proteção social era inatingível no Brasil. Os defensores dessa política deveriam pedir desculpas ao povo brasileiro, porque sua crítica se esgota em ações apenas emergenciais. O que está em cheque é que o modelo todo que estava sendo proposto no período recente, tanto no Brasil quanto no resto do mundo, aponta para um percurso econômico capenga, onde entra o capital financeiro e sai a sociedade. É possível constatar, sem simplismo ou voluntarismo, que as questões estruturais do período recente afloram de modo violento na crise atual.

CC: A realidade dará um sentido de urgência à estruturação econômica e industrial da área da saúde? 

CG: Falo com pesar que a tese de que sem base produtiva e tecnológica teríamos um sistema de saúde vulnerável mostrou-se verdadeira. Isso vale, numa visão mais ampla, para todas a reivindicações da sociedade, da mobilidade urbana à questão ambiental, que devem pautar a demanda da base produtiva e tecnológica. O dilema para os keynesianos envergonhados é que não se remonta o Estado e a base produtiva da noite para o dia. Isso requer um processo longo. Não se faz a reconversão industrial, que implica adaptar fábricas de automóveis para produção de ventiladores, por exemplo, em 15 dias.  O sistema de informações para políticas públicas foi muito fragilizado nos últimos anos.

CC: Como surgiu a proposta do Complexo Econômico Industrial da Saúde?

CG: A partir de 2002 trabalhei de modo muito articulado com o ex-ministro José Gomes Temporão, éramos professores da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, onde compartilhávamos uma pequena sala. Em um estudo de competitividade e desenvolvimento, foi possível constatar que, para além da lógica setorial, da fabricação de produtos farmacêuticos e de equipamentos, a área da saúde é um poderoso sistema produtivo que envolve a produção de equipamentos médicos como ventiladores pulmonares, materiais de consumo como as máscaras, de produtos farmacêuticos como os quatro que estão em testes para o combate ao coronavírus, vacinas e hemoderivados e toda a área de serviços, que vão desde a atenção primária, hoje intensiva em conhecimento, big data e inteligência artificial, presentes por exemplo nas UTIs e  para tratamentos de alta complexidade. Em 2003 foi feito um grande seminário no BNDES onde essa ideia decolou.

CC: Qual o tamanho da área da saúde em termos econômicos?

CG: A saúde é um sistema produtivo que mobiliza 10% do PIB brasileiro e  6,6 milhões de pessoas, isso só o sistema público diretamente, mais 3 milhões de empregados, o que é importante para pensar na política de emprego necessária para sair dessa crise. Concentra um terço da capacidade de ciência, tecnologia e inovação do País, liderou a terceira revolução tecnológica, com a biotecnologia e com a microeletrônica, e é líder na quarta revolução tecnológica quando se fala em Inteligência Artificial, impressão em 3D, edição genética, Big Bang.

CC: O que é preciso mudar no modo como a saúde é encarada na formulação de políticas públicas?

CG: É preciso mudar o senso comum e passar a ver a saúde simultaneamente como direito de cidadania e ao mesmo tempo como uma base produtiva e tecnológica que tem capacidade de estar na liderança de um projeto nacional de desenvolvimento. Com o grau de dependência atual de suprimento externo,  teremos uma saúde com os pés de barro no Brasil, apesar de termos o privilégio de contar com o Sistema Único de Saúde, sem o que estaríamos perdidos. Sem uma base produtiva e tecnológica, entretanto, a saúde dos brasileiros será sempre vulnerável. É uma questão tão importante ou mais importante que a da área de defesa.

CC: Poderia dar uma medida  econômica da vulnerabilidade da política de saúde no que se refere à necessidade de importações?

CG: No início dos anos 1990, importávamos na área da saúde, em termos reais, em dólares de 2019, em torno de 3 bilhões de dólares, e hoje nós importamos 15 bilhões de dólares. Se adicionarmos o pagamento de royalties sobre patentes, os insumos não captados nas estatísticas de saúde, a exemplo dos utilizados para produzir medicamentos e que são com frequência classificados na área química, a minha estimativa é que o Brasil importa cerca de 20 bilhões de dólares no complexo da saúde envolvendo equipamentos, ventiladores, máscaras, EPI, medicamentos, reagentes para diagnóstico, software para inteligência artificial e outros itens. As nossas exportações são irrisórias, de 1 bilhão de dólares.

CC: Qual a ordem de grandeza dessas importações?

CG: Correspondem a cerca de 100 bilhões de reais, que equivalem a quase o orçamento integral do Ministério da Saúde, que está em torno de 120 bilhões de reais. Ou seja, nós importamos quase um orçamento do governo federal em produtos, tecnologias e serviços em saúde. Felizmente, isso teve um lado bom, ampliamos o acesso, construímos o SUS, que avançou. Mas ao mesmo tempo, como alertamos naquele período, o avanço no acesso universal só podia ser garantido, num país continental como o Brasil, com 210 milhões de habitantes, se tivéssemos uma base produtiva e tecnológica nacional local.

CC: Em quais itens o Brasil mais depende de importações?

CG: Em algumas áreas como a farmacêutica, o grau de dependência de insumos importados para o produto final, o medicamento, chega a 85%. Em tudo aquilo que é crítico, mais avançado tecnologicamente, nós somos vulneráveis. Veja o caso da biotecnologia. Quinze empresas globais detém 60% da biotecnologia de saúde no mundo. O nosso tratamento que usa biotecnologia é portanto completamente dependente de importações. As políticas tecnológica e de desenvolvimento industrial, que envolvem serviços também, são uma questão de saúde pública. Hoje, no meio dessa pandemia, fica absolutamente claro que nós estamos de joelhos, dependendo da capacidade de oferta, ou da boa vontade de oferta, de ventiladores, de máscaras e outros produtos.

CC: Como resumiria a relação entre a saúde e o desenvolvimento econômico e social?   

CG: Primeiro, a saúde é um sistema produtivo poderoso. Segundo, é um sistema produtivo poderoso que atende às necessidades sociais, não se trata apenas fazer produtos para uma pequena elite. Terceiro, é uma grande oportunidade de desenvolvimento porque nós temos o SUS,  portanto existe poder de compra do Estado. As dimensões coletiva, tecnológica e da inovação estão concentradas na demanda pública e a pandemia está deixando isso claro. A quarta mensagem é que, como eu disse em um texto de 2003, se não tivermos capacidade produtiva e tecnológica, teremos um SUS vulnerável.

CC: Qual a sua expectativa em relação a reconstrução do Complexo Econômico e Industrial da Saúde?

CG: Eu só queria que fosse cumprida a Constituição brasileira, que diz que o mercado interno constitui parte do patrimônio nacional. O nosso mercado interno na área da saúde tem nome e sobrenome, Sistema Único de Saúde. A saúde é uma grande oportunidade também para o Brasil entrar na terceira e agora na quarta revolução tecnológica.

CC: Houve avanço em inovação?

CG: A política mais inovadora, iniciada pelo ministro Temporão entre 2008 e 2009, contemplou parcerias para o desenvolvimento produtivo. Não eram apenas parcerias público-privadas com terceirização da produção. Consistiam em juntar instituições científicas e tecnológicas como a Fundação Oswaldo Cruz, o Instituto Butantã, as universidades, o Núcleo de Tecnologia em Saúde da Paraíba, que destaco porque ele avançou na área de equipamentos também, e se articular com empresas privadas para atender ao Ministério da Saúde naqueles produtos estratégicos para o SUS. A partir de 2008, 2009 o elefante começou a se mexer. Em 2011, ganhou escala e formaram-se mais de 100 parcerias de desenvolvimento produtivo. Houve muitas críticas, de que uma política industrial para a saúde encareceria os preços. Era uma visão contra uma política industrial que contemplasse a saúde.

Quinze empresas globais detém 60% da biotecnologia de saúde no mundo. O nosso tratamento que usa biotecnologia é portanto completamente dependente de importações

CC: Quais as conquistas durante o curto tempo de funcionamento articulado do complexo econômico industrial da saúde?

CG: Nós estávamos fora da moderna biotecnologia, e o País entrou nessa área. Hoje existem empresas privadas criando os primeiros produtos biotecnológicos feitos no Brasil em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz, que tem liderança em biotecnologia em medicamentos para câncer, doenças crônicas como artrite reumatóide. Depois do ciclo dos genéricos, o País conseguiu avançar na biotecnologia e abrimos a iniciativa para avançar também na área de equipamentos.

CC: A lista de prioridades de compras do SUS que incluía, conforme o senhor mencionou, respiradores pulmonares, foi abortada. E se ocorresse o contrário, ou seja, se o Brasil tivesse decidido fabricar ventiladores?

CG: Se quiséssemos fazer ventiladores um ano atrás, iriam dizer que nossos preços seriam altos diante dos preços internacionais. Hoje, se você quiser comprar ventilador, a qualquer preço, não encontra porque está em falta no mercado mundial. Sabe quantos países estão colocando barreiras para exportação de produtos? São 68, com bloqueio mesmo, proíbem exportar. Trump está convocando as empresas americanas para produzir o que é preciso. Quem nós vamos chamar? Não vamos chamar uma empresa americana para produzir o que o Brasil precisa.

CC: Não tem quem chamar?

CG: Na área de ventiladores, temos três empresas que produzem no Brasil. Primeiro, elas têm um conteúdo importado de componentes tecnológicos críticos. Para produzir um ventilador você importa desde um software sofisticado até a válvula, sofisticadíssima. As três empresas atendem a uma parcela ínfima, tanto que o Ministério da Saúde fez uma chamada para a compra de 15 mil respiradores. Em 1997, importávamos, só em aparelhos respiratórios, 17 milhões de dólares. Em 2019, antes da pandemia da Covid-19, as nossas importações eram de 52 milhões de dólares. Ou seja, a vulnerabilidade da produção dos aparelhos respiratórios já se tornava evidente uma vez que triplicaram as importações de respiradores num período de 22 anos, em valores nominais atualizados pelo dólar de 2019. Isso já mostrava que enquanto a demanda de saúde se expandia, a base produtiva e tecnológica não aumentou na mesma velocidade.

CC: Poderia dar exemplos de iniciativas de produção no País no contexto global de domínio desse setor por monopólios e mencionar como reagiram as multinacionais que mandam nesse mercado? 

CG: Darei dois exemplos. O primeiro deles, que remonta a longo tempo atrás, é o da insulina. O Brasil por décadas apoiou a produção local de insulina. Quando começamos a produzir, por um movimento das duas empresas que dominam o mercado global de insulina jogou o preço para baixo. O Ministério da Saúde parou de adquirir a insulina no Brasil. Com isso, uma das empresas internacionais comprou a Biobrás, que fabricava a insulina no País. Em seguida, a Biobrás parou de produzir insulina. O preço, no ano seguinte, aumentou de duas a três vezes. Ou seja, primeiro você tem uma iniciativa de produção nacional, vem a reação, se faz uma política de preços para bloquear a entrada, ou seja, um preço para expulsar o competidor, quando expulsa o competidor você volta a dominar o mercado e o preço volta a ser um preço de oligopólio, de monopólio.

CC: Quais são as das empresas?

CG: A Lilly e a Novo Nordisk. Uma americana e a outro dinamarquesa.

CC: Quem comprou a Biobrás?

CG: A Novo Nordisk, em 2001. Foi uma experiência nos primórdios, mas que mostra o exemplo da iniciativa que houve para produzir insulina no Brasil. Quando eu fui secretário, fiquei com a faca no pescoço por quatro anos com risco de desabastecimento de insulina. Quatro anos de luta quase que diária para não faltar insulina para os diabéticos brasileiros, uma vez que não havia produção nacional o que até estimulou a Fiocruz a lançar um novo projeto.

CC: Qual era o preço da insulina e para quanto foi? 

CG: No caso da insulina, o preço saiu de 5 dólares e subiu para 9 dólres no ano seguinte, quando o produto deixou de ser produzido no Brasil e as compras públicas pararam de ser realizadas no mercado interno. A Fiocruz anunciou o projeto de fabricação em 2006 e só com o anúncio do projeto, o preço despencou. Caiu de 16 reais para 4 reais. O projeto se pagou só com o seu anúncio!  O que ocorreu com a insulina mostra uma estratégia clássica de bloqueio à entrada de um competidor nacional em um produto com mercado monopolizado ou oligopolizado.

CC: O duopólio Lilly/Novo comandava a produção de insulina no mundo?

CG: Sim. A área da saúde é toda oligopolizada. Ao contrário do que imaginam os economistas com uma visão mais distante da realidade, esse mercado não é como a feira do bairro em que, se a banana está cara, você compra laranja. Se o remédio para câncer está caro, você não compra um remédio para dor de cabeça, você morre. Isso pode parecer um pouco caricato, mas mostra que a área da saúde tem alta vulnerabilidade. Os produtos não são substituíveis.

CC: O senhor disse que daria dois exemplos, mas falou só da insulina. Qual é o outro?

CG: É o do imunossupressor para transplante tracolimus. Por iniciativa da Fiocruz em associação com uma empresa privada passamos a produzir esse imunossupressor. Poucas empresas dominam também os mercados de cada tipo de câncer. Normalmente é duopólio ou monopólio. Doenças raras, normalmente é uma empresa para cada doença rara que detém o monopólio do medicamento. O mercado é portanto anticompetitivo, muito oligopólico. Isto ocorre hoje inclusive nos serviços de saúde, onde grandes conglomerados estão entrando e dominando a área. Sofremos o mesmo ataque ocorrido no caso da insulina.

CC: Como foi esse ataque à produção nacional do imunossupressor tracolimus?

CG: Formou-se uma parceria da Fundação Oswaldo Cruz com a empresa nacional Libbs e outras poucas nacionais, que entraram no segmento da  biotecnologia em consequência dessa política. Judicializou-se, houve uma instabilidade na parceria, mas mesmo com o risco jurídico, se conseguiu manter a produção nacional. Houve até interrupção de produção e um ataque violento, inclusive usando as armas judiciais, para inviabilizar a produção.

CC: Os ataques partiam de quem?

CG: Da empresa líder na produção do imunossupressor. Com o  problema de AIDS, ocorreu o mesmo. O Brasil em 2007 fez o licenciamento compulsório do Efavirenz para a produção de retrovirais para o tratamento de AIDS. Houve um ataque à produção nacional. O Ministério da Saúde lançou na época a terceira geração das parcerias de desenvolvimento produtivo. A primeira era centrada nos produtos mais simples, a segunda nos farmoquímicos mais intensivos em tecnologia e a terceira teve a ousadia de querer entrar na biotecnologia e nos equipamentos e materiais. Na lista de produtos estratégicos estavam não só ventiladores e luvas cirúrgicas já mencionados como aqueles medicamentos que estão em testes hoje para a Covid-19. Uma das primeiras parcerias que nós fizemos, na área de equipamentos e materiais, foi na produção de equipamentos para o sistema circulatório. Houve um movimento da empresa líder global da área e uma denúncia ao órgão de controle, o Tribunal de Contas da União, de que o nosso preço era superior. Com isto, se instabilizou toda produção nacional, ninguém mais queria fazer parceria com medo da judicialização.

CC: Quem quis impedir a produção nacional de tacrolimus? 

CG: O processo foi aberto pela Janssen Cylag, apoiada pela Astellas, envolvendo a Parceria de Desenvolvimento Produtivo do tracolimus da Fiocruz com a Libbs. Luta sem fim que gerou alta instabilidade mas vencemos essa depois de enormes prejuízos sofridos.

CC: O senhor disse que as práticas das empresas monopolistas ou dos oligopólios seguem um roteiro fixo, quando um país tenta furar o bloqueio e produzir nacionalmente. 

CG: O roteiro é conhecido. Acho importante dizer como é que funciona o círculo vicioso para matar a produção nacional no Complexo Econômico Industrial da Saúde.

CC: Como funciona esse círculo vicioso? 

CG: Abordarei o caso do Brasil, mas o País não é exceção mundial dessa dinâmica perversa. O contrário é verdadeiro. As etapas são as seguintes: 1) aprova-se um projeto de produção nacional para reduzir a vulnerabilidade do SUS, como se fez em 2008, seguindo a nova concepção do Complexo Econômico Industrial da Saúde. O preço é inferior ao pago pelo Ministério da Saúde no ano anterior; 2) os competidores líderes do oligopólio e os  produtores da China e Índia iniciam um ataque e praticam preços para desestruturar e deslegitimar as parcerias; 3) a produção nacional é judicializada ou questionada pelos órgãos de controle e pelos dirigentes quando eles têm um olhar de curto prazo; 4) esses acontecimentos abalam a previsibilidade das instituições públicas e privadas que apostaram no desenvolvimento do Complexo Econômico Industrial da Saúde no Brasil; 5) a produção fica paralisada e as condições do domínio oligopólico do mercado se restabelecem; 6) o SUS continua vulnerável e dependente.

CC: Quais são as consequências dessa ação comandada pelos oligopólios para a política da saúde?

CG: A política é judicializada e criminalizada, dizem que o governo prefere comprar a preços mais caros. Existem também mecanismos muito mais sutis, inclusive dentro dos órgãos de política pública, onde a visão de curto prazo da eficiência alocativa se sobrepõe à visão de longo prazo, da eficiência para o desenvolvimento. No fim, como regra, a empresa nacional é fechada e as empresas líderes mundiais voltam a dominar o mercado local. O preço volta a ser um preço de monopólio, muito maior.

CC: Até mesmo o FMI concorda hoje que é errada a polarização entre crescimento econômico e geração de emprego e o combate à pandemia. 

CG: Claro que se não combatermos a pandemia vamos entrar em uma catástrofe econômica e social, mas a aposta dos keynesianos envergonhados dessas organizações multilaterais é outra. Eles acreditam que, passada a pandemia, volte-se ao período anterior de ataques ao Estado, ao bem-estar, à dimensão coletiva do desenvolvimento evidente no campo da saúde e às políticas industriais dos países menos desenvolvidos. Por isso temos que aproveitar o momento e dizer que é muito bem vindo que agora haja um consenso de que é preciso ter gastos públicos, financiar o gasto social, fazer transferência de renda, sustentar a sociedade para que as pessoas fiquem em casa. Essa crise deixa também lições estruturantes para o modelo de desenvolvimento que se estava esboçando nesse país. Isso é muito importante para não ocorrer como em 2008, que teve uma crise pelo lado financeiro seguida de um discurso keynesiano que durou seis meses e depois foram retomados os pressupostos anteriores e a desigualdade tornou-se ainda maior.

CC: Quais as condições para uma articulação como o Complexo Econômico e Industrial da Saúde atingir sua plenitude?

CG: Essa questão não consegue colocar se não se situa no nível mais alto da hierarquia um projeto nacional de desenvolvimento. O grupo executivo do projeto do Complexo Econômico Industrial da Saúde foi extinto em dezembro de 2017. Era a iniciativa mais abrangente, mais articulada de política industrial no Brasil. Reunia 14 ministérios, BNDES, agências e outros órgãos na coordenação da interação das esferas pública e privada. Foi absolutamente inovadora. Pela primeira vez na história, um ministério da área social coordenava uma política industrial. Colocava juntas todas as instâncias de política pública, reconhecendo que a saúde era uma área de alta sensibilidade, vulnerabilidade e oportunidade para o desenvolvimento produtivo e tecnológico. Será que alguém consegue imaginar uma articulação mais importante hoje, em meio à pandemia do coronavírus, do que um grupo interministerial para produção e desenvolvimento tecnológico em saúde em articulação com a iniciativa privada? No início de 2018, entretanto, o Departamento do Complexo Industrial da Saúde do Ministério da Saúde foi  rebaixado para uma coordenação de equipamentos e materiais, que foi extinta em 2019, dentro da reforma administrativa da visão neoliberal do papel do Estado.

CC: Foi um esforço que o País um dia terá de retomar.

CG: Neste momento tem que fazer política emergencial, colocar avião da FAB para comprar produtos onde quer que seja possível obtê-los. Quero dizer também que o ministro Mandetta tem se calcado na ciência e no conhecimento científico, é preciso reconhecer isso. No contexto atual, eu não tenho a menor dúvida que é um ganho para a política de saúde ele estar lá. A gente tem de afirmar isso com todas  as letras. Em relação a Fiocruz, o ministro da Saúde está apostando em investir num grande complexo industrial de vacinas, ampliando a capacidade produtiva. É um investimento de grande envergadura e ele assumiu essa agenda. Na verdade, a crítica que se faz é que a área de ciência e tecnologia também está muito fragilizada. Eu integro o conselho do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o FNDCT, sou um dos três participantes que representam a comunidade científica. O orçamento do FNDCT foi cortado em 87%. Tem 4,3 bilhões de reais contingenciados para ciência e tecnologia, o que é inaceitável. A arma para enfrentar a crise é ciência e tecnologia. O que estou apontando é que falta ao País, particularmente a partir de 2016, uma visão e um conjunto de ações concretas para o fortalecimento do complexo econômico industrial da saúde. As estruturas do Estado foram fragilizadas nesse período. A dimensão estruturante tem de ser recuperada.

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