Saúde

Pandemia acelera renovação das teses antivacina, diz pesquisadora

Para Dayane Machado, movimento vem incorporando pauta ‘pró-liberdade’ e se aproxima de outros grupos conspiracionistas

Manifestantes pró- cloroquina e contra a vacina no Dia da Independência em Curitiba (Foto: Eduardo Matysiak/Futura Press)
Apoie Siga-nos no

A corrida por uma vacina contra o coronavírus, que há tempos alimenta expectativas, também virou pivô de uma ardorosa rixa política. Especialmente a Coronavac, imunizante fabricado pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com Instituto Butantan. Há duas semanas, o laboratório público paulista acertou o repasse de 46 milhões de doses ao Ministério da Saúde. Mas o presidente Jair Bolsonaro vetou o acordo, pondo em xeque sua eficácia e os interesses do governo chinês e do governador João Doria (PSDB). Segundo ele, o governo não comprará a Coronavac nem mesmo com a aprovação da Anvisa. Por conta da origem chinesa, diz o presidente, o imunizante tem ‘descrédito muito grande’.

 

Estudos têm captado o peso dessa influência. Segundo uma pesquisa do DataPoder, publicada na quinta-feira 29, o percentual de brasileiros que pretende dizer não à vacina saltou de 6% para 22%. Os que “com certeza tomariam” a vacina caíram de 82% para 63%. Na sexta 30, um levantamento do Observatório da Democracia Digital da FGV mostrou uma explosão de vídeos negativos sobre vacinas e a possível chegada da Coronavac. O volume acumulado de visualizações passa de 15 milhões.

Do chás milagrosos para gripe à fosfoetanolamina, o pensamento conspiratório anticientífico sempre fez parte do imaginário social brasileiro. “Mas estamos criando nuvens muito maiores de desconfiança nos últimos anos”, diz a jornalista Dayane Machado, doutoranda do departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, que há três anos estuda desinformação sobre saúde na internet.

A crise do coronavírus acelerou esse processo e, embora não haja ainda um movimento antivacinas estruturado no Brasil, mais pessoas tem produzido conteúdo falso sobre o assunto em português. “As pessoas costumavam considerar a vacina uma coisa garantida, como água encanada. Com a pandemia, muitos começaram a questionar esse processo. Quem fabrica? Como? Quanto ganha?”, completa. As premissas, diz, vão do mito de que as vacinas causam doenças, à defesa da liberdade de escolha. Este último debate, ironicamente, tornou-se assunto urgente. Mesmo sem a certeza de que haverá doses da vacina da coronavírus suficientes para todos os brasileiros.

Confira a entrevista a seguir:

CartaCapital: É grande a expectativa por uma vacina para o coronavírus. Ao mesmo tempo, mais e mais gente desconfia dos candidatos em teste. O que explica isso?

Dayane Machado: As pessoas costumavam pensar na vacina uma coisa garantida, como água encanada. Com a pandemia, muitos começaram a questionar esse processo. Quem fabrica? Como? Quanto ganha? São dúvidas naturais em momentos de crise. Mas a dinâmica dos movimentos antivacina e das redes sociais acaba dando muita visibilidade à desinformação. É a receita perfeita para o perigo. O movimento antivacina se apossa de notícias variadas, de gente que morre de coisas adversas, como munição contra a vacina. 

CC: Por que essas teorias fazem tanto sucesso na internet?

DM: Pensando do modelo de negócios do YouTube, tema da minha pesquisa, esse é o conteúdo ideal, porque gera engajamento. A oportunidade de encontrar um conteúdo pela primeira vez, pesquisando por conta própria, e avançar coisas ainda mais aprofundadas. A promessa de resolver mistérios. De receber informações que a mídia tradicional não conta. Isso tudo é muito sedutor. Quanto mais engajada, mais tempo a pessoa passa na tela, mais dados entrega ao YouTube e mais é exposto a publicidade. E esses canais nunca falam de uma coisa só. O canal que fala de terraplanismo também fala de crenças religiosas, e lá no meio, vamos encontrar desinformação sobre a vacina. De acordo com estudo do Center for Countering Digital Hate, os gigantes das redes sociais lucram em média 1 bilhão de dólares por ano com o conteúdo desinformativo sobre vacinas. 

CC: Qual o perfil dos criadores desse conteúdo?

DM: É bem variado. Entre os canais que eu acompanho, há alguns anônimos, outros que só usam texto e imagens. Há pessoas que, por exemplo, se apresentam como geólogos e ex-estudantes da USP. Mas nunca falam de geologia. Falam de religião, logo começam a falar de arrebatamento, noutro vídeo explicam o porquê de a terra ser plana… E, com a pandemia, passaram a falar de coronavírus. É uma miscelânea. Tenho encontrado também alguns médicos. Gente formada que, em algum momento, fez cursos extras e se envolveu no mundo das terapias alternativas. 

Promessas são muito arriscadas. Se o prazo prometido não se cumprir, as pessoas ficarão ainda mais desconfiadas. E frustradas

CC: Há alguma atuação coordenada?

DM: Tudo depende do tipo de desinformação. Na vacina, há ao mesmo tempo grupos, de vários idiomas, sobre a vacina, grupos secretos. É um tipo de conteúdo que vem circulando sem controle. É tão fragmentado que até dificil pra quem pesquisa o tema. Já as redes de pensamento conspiratório são mais coerentes, são sempre os mesmos atores que trabalham juntos. Um endossa o canal do outro no YouTube, por exemplo.

CC: As redes parecem estar fechando o cerco contra esse tipo de conteúdo. Qual a efetividade disso?

DM: Eles se adaptam muito rápido. Agora, por exemplo, que o YouTube fechou o cerco para a desinformação sobre o coronavírus, eles deixam de usar coronavírus, covid nos títulos e nos vídeos. Transformam grupos de Facebook em grupos secretos. Fazem de tudo para não cair na malha fina da plataforma. Quando o algoritmo muda, eles já trocaram de estratégia. Além disso, o movimento antivacina passa por um rebranding.

[Grupos antivacina] fazem de tudo para não cair na malha fina das redes sociais. Quando o algoritmo muda, eles já trocaram de estratégia

CC: Como assim?

DM: Esses grupos procuram não mais se apresentar como contrários à vacina, mas a favor da liberdade de escolha. Com a pandemia e a imposição de lockdown, máscaras e distanciamento, se aproximaram ainda mais dessa ideia. Aqui na Califórnia, onde moro atualmente, médicos estavam vendendo pareceres para que as pessoas pudessem deixar de vacinar os filhos. Não por questão de saúde, mas ideológica. A legislação local vai passar a controlar também esses médicos. Mais uma vez, a questão da liberdade entra em pauta.

CC: Isso explica os laços entre conspiracionistas e a ultradireita americana?

DM: Existe uma desconfiança extrema em relação às instituições. A crença de que há forças ocultas contra as pessoas de bem. Que esses grupos estão lutando sozinhos… Diante disso, esses movimentos têm dado aos mãos.  O que une todo mundo é o pensamento conspiratório. E essa ideia encosta em outras questões de liberdade. Percebe-se que esses grupos já têm se organizado para a queda do Trump, estão alimentando essas neuroses em relação ao resultado. O único cenário possível é o da vitória. Se o Trump não ganhar, as eleições foram fraudadas. Pesquisadores americanos já notam que vai surgindo uma nova supremacia branca, uma nova extrema-direita.

CC: Como virar esse jogo?

DM: Quando pensamos na confiança em relação às vacinas, temos que pensar em tudo o que estamos comunicando. Todas essas promessas de políticos e instituições são muito arriscadas. Se o prazo prometido não se cumprir, as pessoas ficarão ainda mais desconfiadas. E frustradas, eu diria, com a ciência. E se liberamos uma vacina antes da hora, sem a segurança e eficácias comprovadas, o cenário é catastrófico. Isso nos coloca em risco não só em relação à Covid, mas a todas as vacinas.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo