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Agricultoras do Sudoeste paranaense têm 32% mais chances de desenvolver câncer de mama, revela estudo

Descoberta. Os agricultores costumam usar EPIs, mas suas esposas lavam roupas e manipulam os venenos sem proteção alguma – Imagem: Acervo pessoal e Wenderson Araújo/Sistema CNA/Senar
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“Quando descobri o câncer, foi desesperador. Eu só chorava, pensava no meu filho. No começo, a gente acha que vai morrer.” A agricultora Janete Inês Neurer Wolf recorda ter sido bem acolhida pela equipe médica do Hospital do Câncer de Francisco Beltrão, município com 96 mil habitantes no sudoeste do Paraná, distante 500 quilômetros da capital, Curitiba. Quando confirmaram sua doença, em 2015, os profissionais de saúde ainda não sabiam que a região concentra o maior índice de casos de câncer de mama do Brasil. Passados quase dez anos, chegou a comprovação de que o fenômeno é resultante do uso de agrotóxicos, empregados em larga escala na região, onde 95% das propriedades são de agricultura familiar.

A descoberta é da cientista Carolina Panis. Pós-doutora em Oncologia pelo Instituto Nacional do Câncer e em Patologia pela Universidade Estadual de Londrina, ela chegou ao município em 2014, após passar em um concurso público, e logo percebeu que muitos pacientes dos 27 municípios da região tinham relatos parecidos. “Estranhei a quantidade de casos de câncer de mama, muito superior que a existente em qualquer outro lugar em que havia trabalhado. A taxa era maior que no Rio de Janeiro, que no norte do Paraná. Decidi investigar.” De porta em porta, com uma prancheta nas mãos, passou a entrevistar as pacientes com o diagnóstico confirmado. “Essas mulheres tinham em comum o fato de ser agricultoras. Ou seja, estavam expostas aos agrotóxicos.”

Foram dez anos de pesquisa até Panis comprovar a relação entre o uso de pesticidas e as alterações genéticas causadoras do câncer de mama. Esse tipo de tumor tem como fator de risco hábitos de vida e exposição ambiental a agentes cancerígenos. O desafio era descobrir de que forma as mulheres foram intoxicadas, uma vez que não são elas que aplicam os agrotóxicos nas lavouras, e sim os maridos ou filhos. “As campesinas são invisíveis na cadeia do agrotóxico, mas, durante as entrevistas, identifiquei que elas manipulam o veneno de outras formas. Aí tudo fez sentido.”

A região é uma área de declive acidentado e, por conta dessa característica geográfica, os tratores são pouco utilizados na pulverização dos pesticidas. Os agricultores costumam utilizar bombas intercostais para aplicar o veneno nas plantações. Ao término do trabalho, quem manipula e desinfeta as roupas e os equipamentos de proteção utilizados pelos homens são as mulheres, responsáveis pelo trabalho doméstico. “Até então, ninguém havia atentado para esse detalhe”, diz Panis. Em alguns casos, também são elas que manipulam a substância a ser aplicada. “Essas mulheres estão expostas todo o tempo, chegam a manipular 6 litros de agrotóxico de duas a três vezes por semana. E, ao contrário dos seus maridos ou filhos, não utilizam equipamentos de proteção individual, os EPIs.”

Depois de coletar informações sobre um elevado número de casos, a cientista embarcou para os EUA e, nos laboratórios da Universidade Harvard, fez as análises que comprovaram o impacto dos agrotóxicos. O estudo provou que as mulheres do sudoeste paranaense têm 32% mais chance de ter câncer de mama do que as habitantes de outras ­regiões do País. Não é tudo. Essas agricultoras têm 50% mais chance de ter metástase, isto é, a formação de novos tumores, que podem migrar para outros órgãos do corpo. “De cada duas pacientes, uma vai ter metástase. É desesperador.”

Em Harvard, cientista brasileira comprovou a correlação do uso de pesticidas com os tumores

A vida de Janete Wolf, a campesina mencionada no início da reportagem, não foi mais a mesma depois de vencer a doença. “Antes eu ajudava meu marido na lavoura. Agora, sou só dona de casa”, lamenta. A manipulação dos agrotóxicos passou a ser mais cuidadosa, com luvas e outros EPIs. Mas esses cuidados ainda não são comuns entre os vizinhos. “Muita gente acha que não adianta, porque hoje os estudos mostram que o agrotóxico está no ar, na água, na chuva, até nos lençóis freáticos.”

Panis trabalha para tentar reduzir os danos. “Essas mulheres não vão deixar de manipular agrotóxicos. O que podemos fazer é educar”, avalia. “Não adianta eu fazer uma palestra no Outubro Rosa e mandá-las para casa. É preciso haver um trabalho permanente de conscientização no campo.” Com o estudo em mãos, ela também bateu na porta de empresas que distribuem ou revendem pesticidas na região, pedindo para que elas passem a informar seus consumidores sobre os riscos dos produtos vendidos e como eles devem se proteger. “Consegui uma parceria com a iniciativa privada, vamos começar a fazer um treinamento constante e, ao final de cada curso, distribuir um kit completo de equipamento de proteção. Tudo gratuito.”

O projeto tem como foco prioritário as agricultoras mais pobres, sensíveis ao preço dos EPIs. Panis lamenta que, mesmo com a chegada de Lula, os agrotóxicos continuam sendo liberados sem muito critério no Brasil. Só neste ano já foram inseridas mais de 50 novas substâncias no mercado, entre elas o glifosato, utilizado em 70% das lavouras brasileiras e banido na maioria dos países europeus.

O médico Wanderlei Pignati, doutor em Saúde Pública pela Fiocruz e professor da Universidade Federal de Mato Grosso, faz uma pesquisa semelhante à de Panis, mas correlacionando o uso de agrotóxicos ao câncer infantojuvenil. Ele lamenta que os defensores de pesticidas tenham tanta força política. “Não são apenas os parlamentares da Bancada Ruralista. No interior, prefeitos e vereadores são diretamente ligados ao agronegócio.”

Após tomar conhecimento do estudo de Panis, a deputada estadual Luciana Rafagnin, do PT, tem proposto projetos para estimular a adoção do modelo agroecológico nas lavouras, sem uso de agrotóxicos. “Criei a lei da merenda 100% orgânica, instaurada por decreto do governador em 2020, mas houve poucos avanços desde então.” Além de oferecer alimentação saudável aos estudantes, o objetivo é fomentar a produção orgânica no estado. “É uma forma de incentivar a produção agrícola sem veneno.” •

Publicado na edição n° 1275 de CartaCapital, em 06 de setembro de 2023.

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