Saúde

Gestão do SUS por Santas Casas e organizações sociais peca em transparência

Debate voltou à tona com temor de ‘privatização’ do SUS após decreto de Bolsonaro

UBS em Boa Vista, Roraima (Foto: Prefeitura de Boa Vista)
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A pequena cidade de Pacaembu, a 613 quilômetros da capital paulista, é sede de um case de sucesso na área da saúde. A humilde Santa Casa local, fundada no fim dos anos 1960, transformou-se em poucos anos em um bem-sucedido empreendimento do ramo. Sob a gestão de Cleudson Garcia Montali, conhecido médico anestesista da região, passou a administrar postos, ambulatórios e hospitais do SUS em 14 municípios paulistas. Firmou, ainda, parcerias no Paraná, na Paraíba e no Pará. Os contratos somam 2,5 bilhões de reais.

O tino para os negócios e o bem comum era fachada. Montali é apontado pela Justiça como líder de uma organização criminosa que desviou 500 milhões de reais que deveriam ter sido investidos no combate à pandemia do coronavírus. Segundo os investigadores, Cleudson e os comparsas viram na crise uma oportunidade única para desviar dinheiro. O esquema, segundo as investigações, dependia de acordos com prestadoras de serviços quarteirizadas. Ora com superfaturamentos, ora por meio de serviços não executados, e sempre mediante emissão de notas frias. Envolvia funcionários públicos, políticos, amigos e até a proprietária de um prostíbulo.

O caso só veio à tona no fim de setembro, revelado pela Operação Raio-X da Polícia Federal em parceria com a Polícia Civil de Araçatuba. Ele e mais 16 envolvidos foram presos. A investigação que culminou na prisão do anestesista durou dois anos. Nesse meio-tempo, as organizações sociais que ele administrava tiveram sempre as contas aprovadas pela Secretaria Estadual de Saúde paulista. Diante da descoberta, o governador João Doria, do PSDB, prometeu “um pente fino para apurar contratos com as OSs”.

A história da Santa Casa de Pacaembu não é o único exemplo de uma relação tortuosa entre a saúde pública e os interesses privados. O assunto voltou à tona no fim de setembro, por um decreto do presidente Jair Bolsonaro que previa estudos sobre transferir à iniciativa privada a construção e a operação de postos de saúde. O timing da canetada, em meio a uma pandemia, teve péssima repercussão e inflamou temores de uma privatização do SUS. Mas não é exatamente inédita. Cerca de 13% dos serviços do SUS estão sob a gestão de ONGs, instituições filantrópicas, Santas Casas, empresas, associações e outras entidades, segundo dados divulgados pelo IBGE no ano passado.

As mais populares são as Organizações Sociais de Saúde, criadas em 1995 como alternativa para a terceirização. Na letra da lei, as OSs são entidades públicas não-estatais, sem fins lucrativos e sujeitas a mecanismos de controle. A partir de sua qualificação, a instituição está apta a firmar contratos de gestão de parceria na área da saúde. Mas a responsabilidade segue sendo do poder público. O modelo vingou. Se expandiu por 23 estados, mais o Distrito Federal, e gerencia hoje cerca de 7% dos serviços públicos de saúde no Brasil. A maior parte deles em São Paulo: no estado, 26 OSs administram 6 bilhões de reais por ano. Só na capital paulista, em 2019, elas consumiram 38% do orçamento para a saúde.

Ainda faltam estudos que passem a limpo o papel das OSs. “Temos casos incríveis, com resultados melhores que da administração direta, e outras que entregam pior”, avalia a professora Gabriela Lotta, coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas. Segundo a especialista, o sucesso desse modelo depende de atuação acertada do poder público. “Esse modelo deu certo, no mundo e no Brasil, onde há Estado na contratação, no monitoramento e na gestão dessas organizações. Quando isso não acontece, o Estado fica rendido.”

A pandemia escancarou ainda mais esses problemas. Desde o início da crise, a Polícia Federal deflagrou 11 operações envolvendo suspeitas de desvios de dinheiro público na saúde, a maioria com envolvimento de OSs. O total corresponde a todas as operações na área feitas entre 2012 e 2018, segundo dados da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, ligada ao Ministério da Justiça.

É o caso do Rio de Janeiro. Das dez OSs que atuam no município, oito são investigadas por corrupção. O caso mais recente é o do Iabas, contratado pelo governo fluminense em março para a construção dos hospitais temporários e afastado em junho por suspeitas de corrupção. Para o Ministério Público do Rio de Janeiro, o Iabas foi criado para desviar e lavar dinheiro sob “falso argumento” de prestar serviços à Saúde. Teve, segundo os procuradores, “crescimento supersônico” devido a contratos “bastante frouxos” firmados com entes públicos.

Na qualidade da gestão via OSs também mora o seu principal problema. As fraudes, desvios e irregularidades exploram justamente a falta de fiscalização e transparência. E a celeridade nas compras e contratações, por outro lado, também facilitam a ocultação de pequenos desvios. Uma lei estadual quer a extinção do modelo a partir de 2024. Uma comissão de deputados estaduais sugere encerrar os contratos mais cedo, antes de 2022.

A empresa também administra mais de 70 unidades de saúde na cidade de São Paulo e é um dos alvos da CPI das Quarteirizações, que aprofunda as investigações de subcontratos firmados pelas OSs com prestadores de serviços. Na opinião do deputado estadual José Américo, do PT, algumas organizações hoje atuam como meras repassadoras de serviços à iniciativa privada. “Antigamente, as OSs faziam tudo por conta própria. Não possuem fins lucrativos, mas repassam serviços para quem tem. É um desperdício maluco, feito como uma usina de irregularidades fiscais.”

O economista Francisco Funcia, membro do Conselho Nacional de Saúde, também faz ressalvas às OSs. “Você gasta muito mais, tem menos controle e menos transparência do que se estivesse fazendo por via direta”, declarou, em entrevista transmitida ao vivo por CartaCapital em julho. O melhor caminho, avalia, é substituir gradativamente as OSs pela mão de obra direta e contratada. “Não se desmonta esse modelo de uma hora para outra, é preciso um plano de transição, um planejamento com metas e prazos.”

Porta de entrada para a saúde pública, a atenção básica tem boa capilaridade. São mais de 44 mil UBSs e equipes do Programa de Saúde da Família, garantindo cobertura a mais de 60% dos brasileiros – em grandes e médias cidades, chega a quase 100%. A principal despesa com a atenção básica é de pessoal, entre 50% e 90% do custo total, em grande parte coberto por estados e de estados e municípios. O grande problema, contudo, é a qualidade do serviço: faltam médicos e recursos para medicamentos e equipamentos.

As entidades sem fins lucrativos ainda não conseguiram resolver esse problema. Uma guinada nas parcerias com fins lucrativos, como sugeria o decreto natimorto de Bolsonaro, também não parece capaz de fazê-lo. Se hoje o Ministério da Saúde não habilita leitos, serviços e medicamentos essenciais, vai pagar o custeio aos investidores? Em 2021, sufocado pelo Teto de Gastos, o SUS perderá 35 bilhões em orçamento. A conta não fecha.

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