Saúde

Defensores da política antimanicomial reagem a revogaço do governo

Deputados e entidades como a Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) articulam contra-ataque à tentativa de desmonte no setor

Eduardo Pazuello e Jair Bolsonaro. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Apoie Siga-nos no

No último dia 9, foi demitida a coordenadora-geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, Maria Dilma Teodoro. O motivo foi o vazamento de uma planilha que mostra a intenção do governo Bolsonaro de minar a reforma psiquiátrica brasileira, após décadas de implementação da Rede de Atenção Psicossocial, a Raps, apoiada na liberdade e na socialização de pessoas em sofrimento psíquico.

Ativistas da luta antimanicomial reagiram, apontando a Associação Brasileira de Psiquiatria como artífice da proposta. A ABP, por sua vez, chamou de fake news as reportagens a respeito do documento, que previa a revogação de 99 portarias ministeriais que estruturam a reforma psiquiátrica brasileira. Na nota, a Associação também desvincula-se de qualquer participação na elaboração do que ficou conhecido como “planilha do revogaço”.

Em audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara, também no último dia 9, o representante do Ministério da Saúde, Raphael Parente, assumiu a intenção do governo de revogar apenas 10 portarias da saúde mental. Parente também admitiu a participação da ABP e do Conselho Federal de Medicina na feitura da planilha.

 

A ABP desde o início está integrada ao processo de elaboração do revogaço. O material começou a ser preparado em agosto, após reunião entre representantes da Associação e a então coordenadora de saúde mental Maria Dilma. Na ocasião, a ABP apresentou o documento Diretrizes Para um Modelo de Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil, que se tornaria a base da planilha vazada pela imprensa na última semana. Criticado por psiquiatras e outros profissionais ligados à reforma psiquiátrica, o material defendem, por exemplo, a volta dos ambulatórios especializados, que, se implantados, tirariam dos Caps a função de atender emergências e de realizar intervenções ambulatoriais, enfraquecendo o serviço.

Questionado sobre as intenções por trás da proposta, o presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental Leonardo Pinho, é enfático: “A volta das clínicas e hospitais psiquiátricos atende aos interesses da iniciativa privada. Internações em leitos privados, por um lado, ambulatórios especializados em substituição ao atendimento psicossocial dos Caps, por outro. Isso favorece dois segmentos de mercado: o das clínicas e hospitais, que ganham com as internações; e o da indústria farmacêutica, porque a ambulatorização na saúde significa aumento da quantidade de remédios receitados. Exatamente o contrário do que propõe a Rede de Atenção Psicossocial, cujo objetivo é, sempre, diminuir a medicação e preservar a dignidade do usuário do sistema de saúde mental.”

Reação ao revogaço

De acordo com Pinho, a estratégia do governo era aprovar a “planilha do revogaço” em reunião da Comissão Intergestores Tripartite a ser realizada no próximo dia 17. O gesto repetiria manobra antidemocrática do Ministério, que, em 2017, instituiu por meio de portarias a “nova” Política Nacional de Saúde Mental, incluindo os hospitais psiquiátricos na Raps.

Ele ressalta ainda que a CIT, instância dos SUS composta por gestores da União, estados e municípios, não tem poder para modificar a legislação, por tratar-se de um órgão técnico-operacional de articulação e pactuação: “Quando muda uma política, é o Conselho Nacional de Saúde (CNS) quem tem de aprovar, porque conta com gestores, usuários e entidades; é uma composição de todos os segmentos do SUS. Então, tem de discutir no Conselho Nacional de Saúde. Inclusive, o Ministério faz parte do Conselho Nacional de Saúde.”

Mas o vazamento da planilha atrapalhou os planos do Ministério da Saúde para “passar a boiada”: “Queriam aproveitar o recesso parlamentar, que se inicia exatamente no dia 17, para aprovar de forma arbitrária as mudanças, mas, desta vez, descobrimos a manobra a tempo.”

Medidas concretas

A partir das informações compartilhadas na audiência pública, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara fez três cobranças ao Ministério da Saúde: 1) que o grupo de trabalho instaurado em dezembro pelo Ministério com o objetivo de elaborar a planilha tenha uma composição plural, com representantes de todas as categorias que compõem a Raps; 2) que o pacto federativo seja respeitado, incluindo o Colegiado Gestor dos Coordenadores de Saúde Mental dos estados nas consultas sobre mudanças; 3) que a CIT respeite sua função técnico-operacional, ou seja, que não publique ou revogue portarias sem o consentimento do Conselho Nacional de SaúdE.

A deputada Erika Kokay (PT-DF), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica, diz que não faz sentido o Ministério montar um grupo de trabalho sem a participação das associações de usuários dos serviços em saúde mental, já que “a essência da reforma psiquiátrica é o protagonismo dos usuários, a condição de sujeito do ser humano, e a essência da lógica manicomial, por outro lado, é tirar essa condição de sujeito das pessoas assistidas pela política de saúde mental”.

A parlamentar também aponta as incoerências do Ministério da Saúde, diante dos questionamentos de deputados e de ativistas da luta antimanicomial: “A primeira fala do Ministério foi de que tudo era fake news. Depois, eles assumem que irão revogar ‘portarias obsoletas’. Entretanto, o que nós defendemos é que qualquer revogação de portaria da política de saúde mental passe por discussão no Conselho Nacional de Saúde, por audiências públicas, e que o grupo de trabalho incorpore representantes das outras categorias profissionais e representantes dos usuários da Rede de Atenção Psicossocial”, enfatiza.

Kokay afirma ainda que outras ações estão sendo tomadas contra o revogaço, como por exemplo, pedido formal à CIT para que o assunto não seja pautado na próxima reunião da Comissão, dia 17, e a apresentação de Projetos de Decreto Legislativo que anulam as possíveis mudanças.

Sobre o prazo para as respostas do Ministério da Saúde aos questionamentos feitos na audiência, a deputada promete uma cobrança pública: “Eles se comprometeram a responder até a última sexta-feira, 11, e não o fizeram. Cobrarei publicamente o descumprimento do compromisso assumido com deputados, entidades da sociedade civil e Alto Comissariado da ONU (ACNUDH), que também participou da reunião na Câmara”.

Convocação do ministro Pazuello e diálogo com nova Presidência da Câmara

A Câmara, por meio da Comissão de Direitos Humanos, pediu a convocação do ministro Pazuello para explicar as arbitrariedades encontradas no processo de elaboração da “planilha do revogaço”. Cobra, também, um posicionamento explícito de Rodrigo Maia contra as ameaças de retrocesso.

Para o ano que vem, com Maia fora da Presidência, a ideia é articular a apreciação dos Projetos de Decreto Legislativo com a nova Presidência da Câmara: “Nós vamos articular com a nova Mesa Diretora a votação da anulação do revogaço, caso ele venha existir. Além disso, vamos reunir todo o material que temos, desde os retrocessos de 2017, para impedir a volta dessa lógica que está em curso, que é a lógica da “planilha do revogaço” e da política manicomial. Vamos fazer um levantamento e solicitar que as propostas sejam pautadas”.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo