Saúde

Coronavírus: como os agentes de saúde poderiam ter evitado a tragédia

Escanteados pelo governo, esses quase 300 mil profissionais deixaram de rastrear contatos e prevenir a piora da doença. Mas ainda há tempo

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Em março, quando o temor do coronavírus estava ainda restrito às capitais, a cidade de Brotas de Macaúbas (BA) declarou estado de emergência: criou um gabinete de crise, suspendeu férias de servidores e fechou escolas, bares e restaurantes. Também reservou cinco leitos do pequeno hospital municipal para tratar os eventuais doentes entre seus 10 mil habitantes. Nenhum foi utilizado. Passados quase cinco meses de epidemia que matou mais de 107 mil brasileiros e contaminou outros 3 milhões, o município segue sem nenhum caso da doença

Brotas de Macaúbas é uma das 78 cidades brasileiras — menos de 1% de um total de 5.570 — onde o coronavírus ainda não chegou. As duas estradas principais de acesso à cidade ganharam barreiras sanitárias que funcionam 24 horas. Os forasteiros que passam por ali são submetidos a triagem e uma quarentena obrigatória de duas semanas. “Nossa estrutura não nos deixou confortáveis para ignorar a prevenção”, conta a secretária de Saúde Ananda Luyza Trindade.

O eixo dessa estratégia é o trabalho de 42 agentes de saúde, sob a batuta do cubano Yoandris Pons, um ex-doutor no extinto Mais Médicos, foi incorporado à gestão da secretaria. “Todos eles se comoveram, se doaram muito”, diz Ananda.

Alguns, com pais idosos, chegaram a alugar casas para manter distância e seguir trabalhando. Além de controlar o fluxo de pessoas, os agentes fiscalizam o cumprimento do isolamento e transmitem orientações à população – seja em carros de som ou nas rádios comunitárias da região. “Como conhecem a população, os agentes os sensibilizam”.

O exemplo da pequena cidade no sertão baiano poderia ter sido replicado em milhares de outros municípios. Segundo os dados mais recentes do Ministério da Saúde, o Brasil possui hoje 286 mil agentes comunitários da saúde. Por que um País com esse enorme exército, experiente no combate a epidemias e parte de sistema saúde gratuita e universal, não agiu a tempo de evitar a dispersão descontrolada da doença?

Orientações contraditórias

Diante do alarme de uma doença desconhecida e altamente contagiosa, o Brasil, como muitos outros países, fez investimentos pesados na atenção hospitalar: respiradores, leitos de UTI, hospitais de campanha. Não teve o mesmo cuidado com prevenção e controle da doença.

Ainda em março, o Ministério da Saúde emitiu uma normativa para orientar o trabalho dos agentes durante a pandemia. O texto, contudo, é confuso. Recomenda aos agentes não fazer visitas domiciliares, mas sugere que sigam acompanhando de perto doentes crônicos e pacientes com Covid-19.

“Isso criou um cenário de muita confusão em torno da função dos agentes. E acabou deixando a decisão para os municípios”, explica Gabriela Lotta, coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia da FGV e autora de um estudo sobre o papel desses profissionais no combate à pandemia.

“As equipes podem fazer teleatendimento? Podem. Podem criar grupos de WhatsApp? Podem. Mas que tipo de informação vão repassar? Sem decisões oficiais, essas ações se tornam atos de heroísmo individual.”

Tampouco foram repassados recursos e equipamentos de proteção necessários ao trabalho cara a cara.

“De fato, os agentes tiveram pouca participação”, admite Willames Freire Bezerra, presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde.

“Não por sua incapacidade, mas porque tivemos uma crise muito grande de EPIs. Os municípios priorizaram suas equipes das unidades de saúde e dos hospitais.”

Enquanto os mais ricos contam com um médico de confiança ao alcance do celular, o elo entre os mais pobres e o SUS são os agentes de saúde: com atenção primária e visitas domiciliares, estabelece-se uma relação de confiança entre as comunidades e o sistema. Essa proximidade é vital para prevenir surtos e epidemias.

“A atenção primária, que deveria ter sido colocada na vanguarda, foi escanteada. Foi um erro técnico da gestão Mandetta”, lamenta o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da USP.

Diante do coronavírus, caberia a eles uma tarefa essencial: identificar, rastrear, monitorar os doentes da Covid-19 e quem teve contato com eles.

“Não seria nenhum absurdo, rastrear, por exemplo, um contato do [Hospital] Emílio Ribas. Isso não é novidade pra nós”, afirma Lotufo.

Rastreando o coronavírus

Rastrear contatos é considerada a segunda forma mais eficaz para conter o coronavírus. A primeira, a vacina. Vários países têm investido em centrais telefônicas e aplicativos. É o caso, por exemplo, do Vietnã (que passou quatro meses sem mortes pelo coronavírus), da França e dos Estados Unidos. “O Brasil é um dos poucos países que já tinham isso instalado. Há lugares com bons serviços de atenção primária, mas que não estão acostumados com pandemias. O Brasil tinha as duas coisas”, avalia Otávio Ranzani, intensivista e epidemiologista da USP e do Instituto de Saúde Global de Barcelona. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA recomenda ao menos 30 rastreadores para cada 100 mil pessoas. Sob esses requisitos, o contingente de agentes brasileiros seria suficiente para cuidar de uma população quatro vezes maior que a do País.

Entre abril e maio, a saída de dois titulares da chefia do Ministério da Saúde deu à miopia estratégica tons de boicote. Segundo o mais recente boletim do Conselho Nacional de Saúde, publicado na quinta-feira 13, mais de ⅓ dos 41,2 bilhões destinados ao combate à pandemia estão parados.  Os mais prejudicados por esse descaso, é claro, são os mais pobres. Seja na Amazônia ou nas periferias de São Paulo, o acesso aos hospitais é custoso. E sem cuidado prévio, muitos só vão chegar lá quando a situação está muito grave. Há ainda uma prevalência maior de comorbidades – hipertensão, diabetes – não tratadas.

Gabriela Lotta vê no fenômeno uma analogia da tragédia brasileira: não contar com os agentes comunitários, que são justamente o elo com a população mais pobre, é não cuidar deles. “O trabalho do agente comunitário poderia ter sido um trabalho de prevenção, tanto do contágio quando do quadro de saúde dos infectados. Era super possível, era barato fazer isso. Já havia estrutura instalada. Mas, infelizmente, não foi utilizada.”

Ainda há tempo de agir antes da marca de 200 mil mortos? Para Cláudio Maierovitch, epidemiologista da Fiocruz Brasília e ex-presidente da Anvisa, sim. Mas não é fácil. “Teria sido melhor, mais fácil, mais barato fazer isso lá atrás, Agora, com a doença disseminada, é difícil que os serviços de saúde locais consigam fazer isso na dimensão que deveriam”. pondera. Diante do atual cenário, ele sugere um lockdown de ‘duas ou três semanas’: “Provocar uma queda rápida de transmissão pode ser necessário e útil para recuperar a capacidade de intervenção: rastrear, identificar e bloquear casos. E, aos poucos, ir reabrindo.”

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