Em um país marcado pela desigualdade, o que esperar dos impactos da maior crise sanitária do século? Para descobrir, a ouvidoria-geral da Defensoria Pública de São Paulo foi em busca de representantes das parcelas mais vulneráveis aos efeitos dessa crise: moradores de rua e ocupações, migrantes, catadores de material reciclável, pessoas com deficiência, população carcerária, negros, mulheres. O resultado está em um relatório de 95 páginas, divulgado em abril. Além de apontar dificuldades, esses segmentos também fizeram sugestões ao poder público de como contê-las.
Meses depois, o desfecho é pouco animador. É verdade que, no início da crise, o Estado teve uma postura ostensiva importante para frear o aumento da pandemia. Por outro lado, ignorou as necessidades singulares de cada um desses grupos. E tornou a pandemia mais severa. “Um cego se relaciona através do tato. Máscaras e luvas praticamente eliminam o contato dessa pessoa com o mundo exterior. A população de rua não consegue se isolar, e as alternativas estatais para isso são péssimas. Mulheres em situação de violência doméstica, idem”, avalia Willian Fernandes, ouvidor-geral da Defensoria Pública.
Em tempos normais, a Defensoria atende em média 13 mil casos por ano – a quarentena inibiu a procura pela Justiça. Mas, apesar do ‘fique em casa’, continuam havendo ações como reintegrações de posse e despejos. Desde o início da crise, houve ao menos dez reintegrações de posse em São Paulo. A mais recente ocorreu na segunda quinzena de junho. Foram despejadas 900 famílias de um terreno em Guaianases, na zona leste da capital. “Isso nos preocupa muito. De um lado, o Estado recomenda às pessoas ficar em casa. De outro, apresenta uma ordem que as põe na rua”, lamenta Fernandes. A Defensoria chegou a enviar uma solicitação ao Tribunal de Justiça de São Paulo para suspender o cumprimento dessas ordens durante a pandemia, mas os juízes continuam avaliando caso a caso. Só na capital, a fila de espera por moradias é de 200.755 mil famílias com cadastro ativo.
A maioria dessas famílias sobrevive do trabalho informal: vende de bolos nas esquinas, águas nos semáforos, espetinhos e quentinhas. A perda dessa renda dificultou manter alimentação e a higiene adequadas. Famílias, muitas vezes numerosas, ficam restritas às humildes ‘moradas’. O fechamento das escolas e creches agravou a situação. Entre os que vivem na rua, a insegurança alimentar e a falta de moradia se somam ao um outro temor: a violência. “Com menos gente na rua, a polícia tem sido mais intolerante que o normal”. avalia. Além disso, essa população enfrenta dificuldades extras em conseguir o auxílio emergencial.
Confira a entrevista seguir:
CartaCapital: Passados quase quatro meses da chegada da pandemia, que balanço você faz da atuação estatal?
Willian Fernandes: A postura inicial de ostensividade e a medidas gerais foram importantes para frear o aumento da pandemia. Entretanto, essas medidas ignoraram as diversas singularidades que cada segmento social possui. Ao mesmo tempo, temos problemas de ordem econômica tem pressionado o governo a uma certa flexibilização. E não temos segurança para isso. Medidas foram céleres, eficazes, necessárias, entretanto, foram gerais. Todas essas recomendações ignoraram as especificidades de cada segmento. Portanto, a covid-19 foi muito mais severa para grupos já vulneráveis.
CC: Poderia dar exemplos concretos?
WF: Um cego, por exemplo, se relaciona através do tato. Ao recomendar isolamento e utilização de máscaras ou luvas a uma pessoa com deficiência, você praticamente elimina o contato desse indivíduo com o mundo exterior. Com a população de rua, é parecido. Muitos vivem aglomerados. E as alternativas estatais contra isso são péssimas. As mulheres em situação de violência doméstica, idem. Como forçá-las a ficar mais tempo perto do potencial agressor? Nas ocupações e favelas, o espaço não privilegia o isolamento.
Ainda é cedo pra saber como o será o mundo pós-pandemia, mas é certo que a desigualdade social vai aumentar.
CC: Economistas indicam que essa crise vai aumentar a desigualdade, e não só no Brasil. Como mitigar esses efeitos?
WF: Com atuação estatal efetiva. Certamente, as classes mais abastadas sentirão menos os efeitos. Medidas como auxílio emergencial deveriam ser estendidas, e com menos burocracia na análise. Quando você burocratiza o acesso, prolonga a situação de penúria dessas pessoas já busca pelo auxílio. Abrigos, hotéis para a população em situação de rua, abrigo de mulheres em situação de violência doméstica… Isso são exemplos. Ainda é cedo pra saber como o será o mundo pós-pandemia, mas é certo que a desigualdade social vai aumentar. E a única maneira de combatê-la é com uma presença mais forte do estado entre os que mais precisam.
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