Saúde

Após ultrapassar um milhão de casos de Covid-19, especialista alerta: fim da quarentena piorará o quadro no Brasil

O pesquisador Thomas Conti teme que Brasil só reduza os casos na chamada ‘imunidade de rebanho’: ‘O que seria uma tragédia para o País’

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Prestes a completar quatro meses da pandemia do coronavírus, o Brasil alcança a marca de 1 milhão de casos. São exatos 113 dias desde a notificação do primeiro caso, anunciado no dia 26 de fevereiro. O país hoje é o segundo do mundo em número de infectados e mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, que têm mais de 2,2 milhões pessoas diagnosticadas e mais de 120 mil mortos. O Brasil caminha para os 50 mil óbitos.

O País enfrenta a pior crise sanitária da história sem o comando de um ministro da Saúde. Desde a saída de Nelson Teich, no dia 15 de maio, o cargo é ocupado interinamente pelo general Eduardo Pazuello. Sem um direcionamento efetivo de uma política de contenção do vírus, associada a uma crise política encabeçada pelo presidente Jair Bolsonaro, que não só afasta governadores e prefeitos de um alinhamento nacional como os responsabiliza pelos efeitos da pandemia, o País experimenta o afrouxamento do isolamento social.

A divergência de contextos e a retomada das atividades econômicas “provavelmente piorarão o quadro”, atesta o doutor em economia Thomas Conti, que atua com pesquisas sobre políticas públicas baseadas em evidências e estuda o coronavírus desde fevereiro para contribuir com o cenário de análises científicas. Ele é autor do relatório “Crise Tripla do covid-19”, que avalia a pandemia do ponto de vista comportamental, sanitário e econômico.

Em entrevista à CartaCapital, o pesquisador fala sobre a falta de preparo operacional do País para rastrear contatos e se antecipar às novas infecções, do quadro de subnotificações que podem distorcer os dados sobre a pandemia, e ainda sob o risco do Brasil só começar a diminuir efetivamente os casos de contaminação na chamada imunidade de rebanho, “o que seria uma enorme tragédia para o País”. Confira!

Carta Capital: O Brasil segue uma linha ascendente de novos casos de coronavírus e óbitos e, nesse cenário, começa a flexibilizar as medidas de isolamento em seus estados. Como avalia esse momento? Há dados que justifiquem tais medidas?
Thomas Conti: O contexto da pandemia não é o mesmo pelo país. Há diferenças significativas entre os estados e municípios e há lugares com a situação sob maior controle, com capacidade de saúde e novas regras sanitárias. No entanto, na maior parte do país a epidemia segue crescendo devagar e a reabertura provavelmente piorará o quadro.

CC: Para considerar essa reabertura, o estado de São Paulo, por exemplo, falou de critérios tais como média de ocupação de leitos de UTI exclusivas para pacientes com coronavírus, número de novos casos, internações e óbitos. Esses critérios dão conta da real situação da pandemia no Brasil? Qual peso deve ser atribuído a cada um desses critérios?
TC: Esses critérios são indispensáveis para avaliar o risco mais grave de uma reabertura, que é o potencial de colapso hospitalar devido à aceleração de novos casos. Porém, além do número de casos e leitos disponíveis, é fundamental levar em conta a velocidade da mudança. O mesmo número de casos pode ter implicações opostas caso eles estejam em trajetória de queda ou ascensão e quão forte é essa trajetória.

CC: Como avalia a questão da distribuição de diferentes ações nos municípios? São Paulo, por exemplo, escalonou a retomada das atividades por zonas.
TC: É uma forma prudente de proceder com a reabertura. Porém, como há falta geral de preparo operacional para rastrear contatos para se antecipar às novas infecções, a tendência é dos municípios que reabrirem tenderem a uma piora dos casos. Uma reabertura segura sem risco de escalada de novas infecções infelizmente é algo difícil de viabilizar no contexto brasileiro.

CC: Também vemos o aumento do número de mortes em casa em estados que são o epicentro da pandemia, caso de São Paulo e Rio de Janeiro. Esses dados devem ser considerados nessa reabertura? O que eles apontam em um momento de pandemia?
TC: Deveriam sim ser considerados. Há uma subnotificação de casos que pode distorcer bastante a interpretação que temos do momento da epidemia. Especialmente nos locais onde há maior falta de testes ou onde a capacidade hospitalar está no limite da ocupação, fazendo com que as pessoas acabem tendo piora do quadro em casa.

CC: Você acredita que ainda temos um cenário de subnotificação? A que ele estaria atrelado?
TC: Sim, ainda temos. Na verdade há mais de uma forma de subnotificação. Uma dificuldade nossa no momento é a mistura de dois tipos de testes diferentes, os testes PCR que identificam se a pessoa está com o vírus no momento do teste, e o teste de anticorpos que identificam se a pessoa desenvolveu anticorpos contra o vírus. Estes testes têm significados diferentes, porém estão sendo misturados nos nossos dados como se fossem a mesma coisa. Dificulta entender o que está acontecendo de fato com o ritmo de novas infecções.

CC: De maneira geral, as atualizações do coronavírus chamam a atenção para os novos casos e números de mortes. Mas há, por exemplo, estados com altas taxas de mortalidade, caso do Amazonas, com 62,9, segundo o Conass. O que esses dados dizem em meio a uma pandemia e que tipo de medidas demandam?
TC: O caso do Amazonas se deveu ao surto muito rápido em Manaus, que levou ao colapso hospitalar em abril e maio. Porém, os dados mais recentes mostram que o número de enterros diários na cidade retornou para bem próximo da média normal do município. É um exemplo da importância de olhar não só para os números absolutos, mas para a trajetória. Manaus e Amazonas têm números muito ruins comparados com o resto do país, mas na capital a situação parece estar controlada hoje. O perigo agora está no interior do estado, regiões afastadas com pouca ou nenhuma infraestrutura de saúde.

CC: O Brasil hoje é o segundo país do mundo em número de casos confirmados e mortes pelo coronavírus, atrás apenas dos EUA. Como avalia o percurso brasileiro de enfrentamento à pandemia e o quanto disso está atrelado a lideranças como Bolsonaro e Trump, figuras que minimizam os efeitos do vírus e não seguem as orientações de saúde?
TC: Já temos um estudo empírico sobre os Estados Unidos e outro no Brasil, por Nicolás Ajzenman, Tiago Cavalcanti e Daniel da Mata. Eles identificaram que nos municípios onde houve maior percentual de votos em Bolsonaro em 2018 os indicadores de isolamento social foram menores. Isto é, as pessoas são influenciadas por esses discursos, que acabam colocando vidas em risco e minando os esforços de conter o coronavírus.

CC: A pandemia do coronavírus deu início a uma corrida pelo desenvolvimento de vacinas pelo mundo e testes com substâncias que possam ser utilizadas no tratamento. Recentemente, vimos um estudo sobre a hidroxicloroquina ser despublicado da revista The Lancet. Como o senhor avalia o tempo da pandemia versus o tempo científico? Acha que essa demanda pode prejudicar o desenvolvimento dessas substâncias? Como vê o Brasil diante esse cenário?
TC:
É muito difícil fazer ciência às pressas. O risco de falhas como as da Lancet acontecerem aumenta muito quando há tanta pressão para as publicações serem rápidas e artigos no formato de pré-publicação viram manchete no mesmo dia. Porém já conhecemos medidas que poderiam minimizar esses riscos e elas não foram adotadas. Por exemplo, as bases de dados dos artigos sobre o coronavírus poderiam ser disponibilizadas publicamente para outros pesquisadores revisarem. Os pareceres dos revisores científicos poderiam ser disponibilizados publicamente para a comunidade científica avaliar se foram bons pareceres. Ferramentas de revisão aberta pela comunidade científica como o PubPeer poderiam ser melhor divulgadas e acessadas pela imprensa para ter um olhar mais crítico dos especialistas sobre o material. Dentre outras medidas. Para o caso das vacinas o desafio vai muito além do tempo de publicação. O processo usual de produção e comercialização de uma vacina costuma levar 10 anos. Será um feito sem precedentes se até 2021 tivermos uma vacina eficaz e segura contra o coronavírus em circulação. O Brasil terá dificuldades adicionais para se beneficiar da vacina, pois há um imenso desafio logístico envolvido em imunizar tantas pessoas em um prazo curto de tempo.

CC: Brasil chegou ao pico da pandemia? Há projeções desse pico e da queda dos casos?
TC:
O chamado “pico” da epidemia é o elemento mais difícil de se prever de um modelo epidemiológico, pois é muito instável. Qualquer alteração na mobilidade, nível de precaução da população, eventos com super-espalhadores da doença, podem afetar o pico. As evidências que temos no momento é que a epidemia não está sob controle na maioria dos estados, porém seu avanço é lento. Sem que algo seja feito para reverter essa tendência, os casos só começarão a diminuir de forma consistente na chamada imunidade de rebanho – o que seria uma enorme tragédia para o país.

CC: É possível pensar em uma vida normal sem vacina?
TC: No mundo, mais de 40 países já contiveram com sucesso a primeira onda da epidemia. Temos muitos países que já estão há 2 meses em processo de reabertura e que retomaram a um “novo normal”, com novas regras sanitárias e novos hábitos sociais. No caso do Brasil ainda não é claro se também conseguiremos conter a primeira onda com sucesso. Não estamos rastreando contatos das pessoas infectadas para impedir que o vírus se espalhe. Todos os países que contiveram o coronavírus até agora fizeram isso em algum nível, mesmo que sem testes em quantidade massiva, como o Japão.

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