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Os EUA pagaram recompensa à Lava Jato pelos serviços prestados, diz o professor Arthur Banzatto

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Cúmplices. Moro e Dallagnol atuavam de forma “complementar”, contra os princípios basilares do Estado de Direito – Imagem: Redes Sociais/Senador Sergio Moro
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Os 2,7 bilhões de reais cobiçados pelo ex-procurador Deltan Dallagnol e a força-tarefa de Curitiba que sustentariam uma fundação com objetivos político-partidários não resultaram do esforço do Ministério Público para recuperar o dinheiro da corrupção na Petrobras, mas uma recompensa concedida pelas autoridades dos Estados Unidos pelos serviços prestados. Por conta da ação diligente do MP contra a maior empresa brasileira, o governo e alguns investidores norte-americanos arrancaram da Petrobras 20 bilhões de reais, três vezes mais do que o cálculo (inconfiável) dos desvios na estatal. O argumento é o centro da tese de doutorado “A Hegemonia Estadunidense e o Combate à Corrupção no Brasil: O Caso da Operação Lava Jato” defendida por Arthur Banzatto, advogado e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal Grande Dourados, em Mato Grosso do Sul. A negociação, diz o acadêmico na entrevista a seguir, foi conduzida de maneira irregular por Dallagnol e seu principal parceiro, o ex-juiz Sergio Moro. Observação desta revista: atuassem nos EUA, o procurador e o magistrado seriam acusados de traição e crimes de lesa-pátria.

CartaCapital: O que o levou a debruçar-se sobre a Operação Lava Jato em sua tese de doutorado?
Arthur Banzatto: Meu projeto de pesquisa inicial tratava de um tema bastante diferente. Em 2019 surgiu a ‘Vaza Jato’. Algumas reportagens da imprensa, inclusive da própria CartaCapital, apontaram uma possível ingerência dos Estados Unidos na Operação Lava Jato. Essa questão era tratada em alguns textos acadêmicos da época, mas quase sempre de forma tangencial. Achei válido me aprofundar no assunto por meio de uma pesquisa bibliográfica e documental focada na dimensão internacional da Lava Jato, sobretudo nas suas relações com instituições e autoridades dos EUA.

Tese. No doutorado, Banzatto trata da influência de Washington na operação – Imagem: Tiago Marques

CC: O senhor concluiu que os 2,7 bilhões de reais destinados ao Ministério Público Federal do Paraná foram uma “recompensa” pelos serviços prestados aos EUA, que recebeu da Petrobras 20,1 bilhões. Toda essa negociação foi um ato premeditado para criar a Fundação Lava Jato?
AB: A análise dos documentos pesquisados não permite concluir se foi ou não um ato premeditado. Os indícios de que teria sido premeditado são mais recentes. Surgem a partir de diálogos que revelam as negociações de Dallagnol com autoridades estadunidenses, de forma direta e sigilosa, a respeito da divisão do dinheiro oriundo da multa paga pela Petrobras nos EUA. O protagonismo do Ministério Público nesse processo é utilizado para justificar a criação da “Fundação Lava Jato”. Os 2,7 bilhões de reais seriam depositados em uma conta vinculada à 13ª Vara Federal de Curitiba e administrados por uma fundação privada, constituída e gerida pelo próprio MPF.

CC: Ou seja, o Ministério Público, de forma deliberada, prejudicou a Petrobras a fim de receber uma recompensa?
AB: Em um trabalho acadêmico é difícil avaliar elementos subjetivos como a intenção dos agentes, mas ao longo da pesquisa foi possível identificar que em determinados momentos o Ministério Público agiu em causa própria. Além dos interesses pessoais, percebe-se uma atuação como legítimos representantes dos interesses estadunidenses. A prisão de Lula e sua impossibilidade de concorrer às eleições de 2018 foram interpretadas, tanto pelo MPF quanto pelas autoridades norte-americanas, como vitórias não apenas da Lava Jato, mas também dos EUA contra os esquemas de corrupção e contra o avanço da influência política e econômica do Brasil na América Latina.

CC: Em 2007, por meio do Projeto Pontes, os EUA disseminaram seus métodos de investigação no Brasil. O senhor diria que foi uma semente plantada e qualquer semelhança com a Lava Jato não é mera coincidência?
AB: Sim. O Projeto Pontes teve um papel fundamental no surgimento e no ­modus operandi da Operação Lava Jato. Desenvolvido pelo Departamento de Estado dos EUA, buscava organizar no Poder Judiciário, no Ministério Público e na Polícia Federal uma rede de juristas alinhados com suas orientações. A execução foi coordenada pela Embaixada dos EUA no Brasil, que passou a organizar conferências, seminários e treinamentos para compartilhar e ensinar métodos de trabalho estadunidenses de combate aos crimes de terrorismo, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro e corrupção. Essas experiências previam a criação de forças-tarefa, o uso de colaborações premiadas e a cooperação jurídica internacional informal entre autoridades estadunidenses e brasileiras no âmbito das investigações. Foram oferecidos treinamentos práticos sobre investigação, coleta de provas, interrogatório, técnicas de instrução e julgamento e, principalmente, sobre o modelo de força-tarefa. A embaixada norte-americana propôs a criação de uma investigação real com objetivo de oferecer experiência prática às autoridades brasileiras e permitir que acessassem especialistas estadunidenses para orientação e apoio contínuos durante a sua execução.

O Projeto Pontes, dos EUA, teve papel fundamental no surgimento da Operação Lava Jato

CC: Nesse mesmo ano, o ex-juiz Sergio Moro foi convidado a participar de um encontro nos EUA financiado pelo Departamento de Estado. Moro foi conivente com toda essa trama? Estava envolvido no Projeto Bridges desde essa época?
AB: Sim, o ex-juiz Sergio Moro é um dos citados nominalmente nos telegramas da diplomacia estadunidense. Ele aparece como um participante de destaque nas ações desenvolvidas no âmbito do Projeto Pontes. Em 2007, era conhecido das autoridades estadunidenses por conta de sua atuação no Caso Banestado, que também envolveu ações informais de cooperação jurídica internacional. Ele participou de um intercâmbio organizado pelo Departamento de Estado voltado ao compartilhamento de técnicas de combate à lavagem de dinheiro. Todo esse contexto contribui para um alinhamento ideológico que permitiu ingerências externas ao longo da Operação Lava Jato, de modo a garantir os interesses dos EUA no Brasil.

CC: As digitais do ex-procurador da República Deltan Dallagnol estão em todo o processo da Lava Jato. Qual foi seu papel nessa história?
AB: Sua função seria conduzir os trabalhos investigativos, a análise de provas e relatórios produzidos pela Polícia Federal e a formulação de acusações criminais, mas acabou envolvido em controvérsias e ilegalidades. Em 2016, convocou uma entrevista coletiva para explicar a denúncia contra Lula no caso do tríplex do Guarujá. Usou uma apresentação em PowerPoint para dizer que Lula era o comandante de uma organização criminosa que havia se apoderado do governo federal para liderar um grande esquema de corrupção na Petrobras. Outra polêmica foi a tentativa de criação da “Fundação Lava Jato”, utilizando parte dos valores pagos pela petroleira ao Departamento de Justiça dos EUA em acordo judicial mediado pelo próprio Ministério Público Federal. Por fim, foi o principal responsável pelas ações de cooperação informal e ilegal entre a força-tarefa e autoridades estadunidenses. Tudo isso foi realizado à margem da lei, sem pedidos formais de cooperação jurídica internacional e sem o conhecimento do Ministério da Justiça ou do Ministério das Relações Exteriores.

CC: Além da Petrobras, outras empresas foram arruinadas pela Operação Lava Jato. O senhor consegue estimar o ­custo econômico e social desse desastre?
AB: Em minha tese, tentei dimensionar os custos econômicos e sociais da Operação Lava Jato. Ainda que os números possam variar de uma pesquisa para outra, podemos destacar o aumento do desemprego, a retração do PIB, a paralisação de obras e a redução de investimentos nos setores de petróleo e gás e da construção civil. Tudo isso afetou não apenas as empresas diretamente envolvidas, mas toda uma cadeia produtiva de fornecedores e prestadores de serviços, gerando um efeito negativo em cascata na economia brasileira. Em consequência, observa-se uma redução acentuada e prolongada de empregos, arrecadação tributária e salários.

CC: A Petrobras deixou de ser uma empresa estratégica e retrocedeu a uma mera exploradora de petróleo. Depois, nos governos Temer e Bolsonaro, foram privatizadas diversas subsidiárias. Todo esse arcabouço é parte de um mesmo plano?
AB: A Lava Jato proporcionou um contexto favorável para mudanças profundas na gestão da estatal, que passou a priorizar distribuição de dividendos e rentabilidade aos acionistas minoritários em detrimento dos planos de investimento para expandir a produção. O governo Temer alterou o marco regulatório de exploração do pré-sal, que favoreceu a entrada de empresas estrangeiras nos campos de petróleo, além da venda de ativos em todas as áreas de atuação. Esse modelo de gestão seria aprofundado durante o governo Bolsonaro. Com isso, a Petrobras voltou a se dedicar principalmente à produção e exploração de petróleo, reduzindo a atuação em refino, distribuição e transporte. A queda expressiva no volume de investimentos coincide com a privatização de empresas subsidiárias, como a Liquigás, além de refinarias, gasodutos e oleodutos.

Gorjeta. O Departamento de Estado dos EUA levou 20 bilhões de reais e deu 10% à força-tarefa – Imagem: Agência Petrobras e iStockphoto

CC: Moro e Dallagnol foram os dois protagonistas dessa história. É possível comparar suas atuações? Quem foi mais influente?
AB: Acho difícil mensurar, pois são atuações complementares, tanto do ponto de vista pessoal quanto do ponto de vista das instituições que ambos representavam. Na Operação Lava Jato, ficou evidenciada uma atuação coordenada entre ambos, violando o princípio da imparcialidade do magistrado na condução dos processos. Além de sua parcialidade, Moro manteve uma relação de excessiva proximidade com Dallagnol e outros procuradores, auxiliando-os nas investigações, orientando sobre inquirição em audiências, indicação de testemunhas, produção de provas e até mesmo sobre o timing das operações.

CC: O Brasil consegue recuperar-se do estrago produzido pela Lava Jato?
AB: Sou bastante pessimista. Apesar de o STF ter anulado processos, provas e sentenças produzidas pela Lava Jato, seus impactos sociais, políticos e econômicos apresentaram efeitos negativos que repercutem até os dias atuais. O fim da força-tarefa não exterminou o “lavajatismo”, que permanece difundido e conta com um grupo significativo de apoiadores. Sua aliança com a direita radicalizou-se ainda mais no sentido de atacar as instituições do Estado Democrático de Direito, principalmente o STF, e os direitos e garantias fundamentais, considerados obstáculos da luta anticorrupção. Alguns pesquisadores, como o professor Fábio de Sá e Silva, da ­Universidade de Oklahoma, apontam que os ataques golpistas de 8 de janeiro são consequências diretas da Operação Lava Jato. Este é o retrato do Brasil atual. •

Publicado na edição n° 1333 de CartaCapital, em 23 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Vendilhões’

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