Política

Velho fantasma

Lula retoma a política alimentar, mas sabe que só com geração de empregos e valorização do salário mínimo será possível retirar o país do Mapa da Fome novamente

Vinte anos depois de se eleger com a bandeira de erradicar a fome, Lula volta a encarar o desafio em um ambiente bem mais desafiador, com o preço dos alimentos em alta no mundo todo e a economia sabotada pelos elevados juros fixados pelo BC. A regressão social nos anos Temer e Bolsonaro é escandalosa – Imagem: Raimundo Paccó/AFP e Marcelo Camargo/ABR
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“Reassumo o compromisso de tirar o pobre da fila do osso e colocá-lo novamente no Orçamento.” Mais do que uma promessa eleitoral, o pacto de Lula ao assumir seu terceiro mandato presidencial, com a faixa verde e amarela no peito e os olhos marejados, representa um enorme desafio. Marca dos primeiros governos do PT, o combate à insegurança alimentar no Brasil parecia jogo jogado em 2014, ano em que o mundo festejou a nossa saída do Mapa da Fome da ONU. Mas a combinação da crise econômica, agravada pela pandemia, com um governo que desprezava os mais pobres arrastou o País novamente à deplorável cartografia da subnutrição.

Lula tem como questão de honra tornar novamente possível que “todos os brasileiros façam três refeições por dia”. Para tanto, o governo reestruturou as políticas nacionais de compra, estocagem e distribuição de alimentos oriundos da agricultura familiar, dinâmica que promete espantar o fantasma que apavora 33 milhões de brasileiros. Na quarta-feira 22, essa política ganhou impulso com o relançamento nacional do Programa de Aquisição de Alimentos, em cerimônia com a presença de Lula no Recife.

Por ora, o governo só conseguiu acrescentar 18 reais na renda dos mais pobres

O presidente sabe que combater a fome é uma tarefa bem mais complexa em 2023. É fato que o fortalecimento da agricultura familiar e o escoamento de sua produção – com o duplo objetivo de fazer chegar alimentos mais baratos à mesa dos brasileiros e atender às políticas públicas de cunho social – foram fundamentais a partir do primeiro governo petista. Há 20 anos, essas medidas vieram, porém, acompanhadas de outras políticas estruturantes para o aumento da distribuição de renda e do consumo das famílias de trabalhadores no País. Notadamente, havia a valorização constante do salário mínimo, mas também o aumento no número de pessoas com carteira assinada e a capilarização de programas de complementação de renda para os mais carentes, entre outros fatores. No Brasil pós-pandemia e pós-Bolsonaro, o terceiro governo Lula, além de ter de remontar quase do zero os programas alimentares e nutricionais, lida com um cenário econômico desfavorável que, às vésperas do anúncio no novo “arcabouço” fiscal pelo ministro da Economia, Fernando Haddad, não permitiu até agora mais que um aumento simbólico de 18 reais no valor do salário mínimo, a vigorar a partir de maio.

Especialistas alertam que sem um aumento real, consistente e continuado do salário mínimo, a volta de programas como o PAA ou o Bolsa Família pode não ser suficiente para tirar o Brasil novamente do Mapa da Fome. “O salário mínimo é a principal variável que explica ganhos sociais no combate à fome e à miséria”, afirma o economista João Sicsú, professor de Economia da UFRJ. O agrônomo e professor José Graziano, ex-diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), concorda: “A política fundamental que nos conduziu à erradicação da fome foi a geração de empregos e a concomitante valorização do salário mínimo, que funciona como um piso para os demais salários, inclusive para as rendas obtidas no setor informal”. Responsável pelo Programa Fome Zero no primeiro governo do PT, Graziano observa que a fome no Brasil sempre foi um problema decorrente da falta de poder aquisitivo da população. “Não faltam alimentos, o que falta é dinheiro para comprá-los. Nos supermercados, as prateleiras estão sempre cheias, ao contrário dos carrinhos sempre vazios dos mais pobres.”

A geração de empregos de qualidade, com carteira assinada e todos os direitos previstos pela CLT, é apontada pela FAO como um dos principais fatores que contribuíram para a segurança alimentar – Imagem: Tony Winston/Ag.Brasília e Fábio Rodrigues Pozzebom/ABR

Sicsú explica o poder da valorização do salário mínimo: “Em torno de 70% dos trabalhadores ganham até um salário mínimo. No INSS, 60% dos beneficiá­rios ganham um salário mínimo. Então, quando o mínimo se eleva, isso gera um impacto generalizado na base mais empobrecida da população”. Paulo ­Jannuzzi, pesquisador do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp, destaca a importância da valorização real do mínimo nos anos que antecederam a saída do Brasil da lista dos famintos. E também a contribuição de outros programas públicos como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada, ambos com maior impacto nos domicílios situados entre os 5% mais pobres, além da aposentadoria rural, do fomento à produção agrícola e do Pronatec. “Ao longo do período, parcelas crescentes da população mais pobre acabaram ascendendo às classes médias. Isso ocorreu especialmente após 2003, em razão da elevação mais rápida do rendimento dessa população, possibilitada pelos efeitos conjugados do acesso aos benefícios de programas sociais e aposentadorias e da política de aumento real do salário mínimo.”

Imagem: Fonte: IBGE

Imagem: Fonte: Rede Penssan

Graziano confirma a supremacia da valorização salarial e da geração de empregos sobre os programas emergenciais de transferência de renda. “Um dos grandes problemas do Brasil é ter uma parcela muito grande da população na miséria e um grau elevadíssimo de concentração de renda. Isso não se resolve apenas com programas de transferência. Estes são fundamentais para atenuar a fome em momentos emergenciais, mas são atores coadjuvantes. Os protagonistas são as políticas macroeconômicas de aumento salarial, crescimento inclusivo e geração de empregos de qualidade”, explica. Ele ressalta que este foi o caminho que tirou o Brasil da fome anteriormente e pode ser trilhado novamente. “É com isso que o novo governo está preocupado: baixar a taxa de juros e fazer o País voltar a crescer. Enquanto isso não acontece, o atenuante é melhorar os programas de distribuição como o Bolsa Família e outros que estavam represados no governo anterior. Além do barateamento dos alimentos, é claro.”

“Todos os programas para combater a desigualdade são muitíssimo importantes, mas o que decide é o salário mínimo. É ele que melhora ou piora a qualidade de vida da maioria da população brasileira”, resume Sicsú. Para o economista, o fato de haver um número de beneficiá­rios do INSS muito superior ao dos inscritos no Bolsa Família já faz com que o salário mínimo seja “o programa social mais importante” para qualquer governo. “Os benefícios da Previdência Social movimentam a economia de muitas cidades do interior. Os programas emergenciais são fundamentais para combater a pobreza extrema, mas a importância do salário mínimo para a economia nacional é de outro patamar.”

Nem por isso o economista dá menos importância à política alimentar. “A volta dos estoques reguladores é extremamente necessária, para que o governo não deixe disparar, por exemplo, os preços do arroz e do feijão.” O problema é agravado pela guerra na Ucrânia, que fez o preço dos alimentos aumentar no mundo inteiro, haja vista que os países envolvidos no conflito são os maiores produtores mundiais de trigo e fertilizantes. Daí a necessidade de enfrentar a questão da segurança nutricional pelas duas frentes, “com a valorização do salário mínimo e o controle dos preços de alimentos consumidos pela população mais pobre”, emenda Sicsú.

O problema do Brasil nunca foi falta de comida, e sim de renda para comprá-la, observa Graziano – Imagem: Renato Luiz Ferreira

Ciente dessa necessidade enquanto não toma completamente as rédeas da economia, o governo Lula aposta no lançamento do PAA, programa criado em 2003 como ação estruturante do Fome Zero, depois abandonado por Bolsonaro e agora relançado. “O PAA tornou-se uma referência internacional de como o governo pode usar seu poder de compra para estimular a agricultura familiar”, observa Paulo Teixeira, titular do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA). O ministro ressalta que o programa, ao mesmo tempo, fomenta a produção de alimentos para o consumo interno e gera renda no campo. “Vamos promover o acesso à alimentação saudável pelas pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional. Desde que o PAA foi criado, foram investidos mais de 8 bilhões de reais na compra de alimentos produzidos por mais de 500 mil agricultores familiares. Esses alimentos foram destinados a milhares de entidades recebedoras, como asilos, creches, hospitais, escolas públicas e entidades filantrópicas.”

Um estudo publicado pelo Ipea em 2021 aponta que o PAA, quando executado a contento, promove ganhos de caráter econômico, social e ambiental. “Do ponto de vista econômico, foram observados relatos acerca do aumento da renda de agricultores familiares, o que permitiu a estes a aquisição de bens duráveis, assim como a melhora nas condições de vida em geral”, diz o texto. “No âmbito social, o programa proporcionou aos seus beneficiários uma alimentação diversificada, de qualidade e oriunda da produção local, além de incentivar o reconhecimento e a valorização da agricultura familiar e da cultura alimentar local, o que refletiu no aumento da autoestima e da autonomia das famílias produtoras.” Quanto aos ganhos ambientais, o Ipea acrescenta que o PAA “fomentou a diversificação de culturas, bem como a adesão às boas práticas de produção”.

Relançado, o PAA visa abastecer pratos vazios ao mesmo tempo que gera renda no campo, diz Paulo Teixeira

O governo aposta novamente no sucesso da iniciativa e Teixeira revela que os próximos passos serão a constituição do Grupo Gestor do Programa de Aquisição de Alimentos (GGPAA) e do Comitê de Assessoramento do GGPAA, previstos no decreto assinado por Lula. “Vale lembrar que a sociedade civil foi retirada da gestão do programa pelo governo anterior”, lembra o ministro. “Em seguida virá a regulamentação, via Grupo Gestor, das cinco modalidades ofertadas: Compra com Doação Simultânea; PAA-Leite, Compra Direta; Compra Institucional; e Apoio à Formação de Estoques”. Outra novidade é a descentralização dos recursos do Ministério do Desenvolvimento Social à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), no valor de 300 milhões de reais, para a execução do programa. “Outros 200 milhões serão operacionalizados pelo MDS via parcerias com os estados, totalizando 500 milhões de ­reais para o PAA em 2023. Já a estratégia para a recomposição dos estoques públicos de alimentos será formulada no âmbito da elaboração do Plano Safra.” Segundo o ministro, “essas políticas voltam aperfeiçoadas para ajudar novamente o Brasil a sair do Mapa da Fome”.

Em 10 de março, Lula já havia anunciado um aumento de 39% nos valores destinados ao também remodelado Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), considerado outro pilar das políticas de redução da fome no Brasil implantadas pelos governos petistas. Os valores estavam congelados há seis anos. Com investimentos de 5,5 bilhões de reais pelo governo em 2023, o PNAE atingirá 40 milhões de estudantes das redes públicas estaduais e municipais em todo o Brasil. Outra medida saudada pelas organizações da sociedade civil foi a recriação, no início de março, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Consea, que teve papel ativo entre 2003 e 2014, e acabou extinto por Bolsonaro. Ele será presidido por Elisabetta Recine, representante brasileira no Painel de Especialistas da ONU sobre Segurança Alimentar, que lamenta a “ausência de sensibilidade do governo passado”, mas prefere olhar para frente. “Acumulamos consciência e força social para dar um passo importante na direção da garantia de alimentos saudáveis ao povo.”

Para Graziano, a recriação do Consea é fundamental: “Além de ser a cabeça do sistema alimentar e nutricional, o Conselho tem a participação da sociedade civil e de diversos segmentos da população lá representados, inclusive os setores empresariais”. É um órgão responsável por apresentar propostas, o que já começou a fazer, emenda o agrônomo. “É fundamental a participação da sociedade civil, para que o combate à fome não seja uma política meramente assistencialista. Comer é um direito assegurado em nossa Constituição, a prever uma alimentação saudável para todos, mas somente participação e distribuição de mais recursos não resolvem o problema. É preciso que o direito à alimentação seja estendido a todos os brasileiros de forma permanente, e não como uma benesse passageira.”

A Guerra da Ucrânia, a envolver os maiores produtores mundiais de trigo e fertilizantes, fez o preço dos alimentos disparar em todos os continentes – Imagem: Anatolii Stepanov/AFP

Como em seus governos anteriores, Lula quer fazer do combate à fome e à desigualdade seu maior trunfo ao fim do mandato, dispute ou não a reeleição. A oportunidade histórica de se firmar como o presidente que mais combateu a fome no Brasil está colocada, pois, desde o fim do primeiro período petista o Brasil, vê a fome crescer. Os dados mais recentes divulgados pelo IBGE revelam que 62,5 milhões de brasileiros viviam abaixo da linha de pobreza no fim de 2021, destacando que 17,9 milhões eram extremamente pobres. Sob Bolsonaro e assolado pela pandemia, o Brasil viu naquele ano o aumento da pobreza (22,7%) e da extrema pobreza (48,2%) bater recorde. No ano passado, não restou à FAO outra alternativa senão recolocar o País no Mapa da Fome. Uma pesquisa realizada em parceria pela Oxfam Brasil e a Rede Pensann apontou que 15,5% da população brasileira vive hoje em situação de “insegurança alimentar grave”. São 33 milhões de famintos, segundo o estudo.

Neste caso, a diferenciação com os governos anteriores passa mais uma vez pela valorização salarial. “A política de elevação real do salário mínimo vigorou de meados do governo Lula e seguiu até o fim do governo Temer, durante o qual os aumentos em termos reais foram baixíssimos, porque a economia cresceu muito pouco”, observa Sicsú. O governo Bolsonaro inverteu essa tendência: “O aumento do salário mínimo passou a ser estabelecido no Congresso Nacional e a ficar abaixo da inflação que ocorria no ano. Começou a haver uma contração no valor real do mínimo. Em suma, o salário mínimo cresce nos governos Lula e Dilma, fica estável no governo Temer e começa a cair no governo Bolsonaro”.

Retomar os estoques reguladores da Conab é crucial para conter a inflação sobre itens da cesta básica

Ao cardápio de dificuldades econômicas do governo, e também da ­necessidade de equacionar as pressões do mercado sobre os planos de ancoragem fiscal, Paulo Jannuzzi acrescenta um componente político. “O desarranjo em termos de articulação institucional com estados e municípios vai obrigar o governo federal a fazer um esforço muito grande. Se a gente olhar hoje a capacidade de gestão de muitos municípios, com prefeitos de direita ou extrema-direita que não têm muito apreço por políticas sociais, isso cria também uma dificuldade para implementar essa agenda que se está tentando resgatar.” Para o pesquisador, o Brasil necessita olhar a experiência histórica dos países desenvolvidos que, em suas trajetórias, “implementaram um conjunto de políticas públicas para gerar bem-estar para toda a população e colocaram a sociedade à frente do mercado”.

O sofrimento dos miseráveis a pedir esmola nos sinais, lembrança que levou Lula às lágrimas no parlatório externo do Palácio do Planalto no dia da posse, pode ter fim. Mas isso significa recolocar o Brasil num rumo político distinto daquele dado ao País nos últimos anos. “Muito do que fizemos foi desfeito de forma irresponsável e criminosa. A volta da fome é um crime, o mais grave de todos, cometido contra o povo brasileiro”, disse o presidente, emocionado. É um problema que fala ao coração de Lula e ele sabe que sua solução exige uma mudança muito maior do que apenas retomar os programas de aquisição de alimentos. •

Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Velho fantasma’

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