Política

Velho fantasma

A bancada ruralista investe novamente contra o MST, que ressuscita a luta pela reforma agrária

Protestos. No Abril Vermelho, o MST reivindica a “desbolsonarização” do Incra e a desapropriação de terras – Imagem: MST-PE
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A violência no campo aumentou em 2022, descreve o relatório anual da Comissão Pastoral da Terra, divulgado na segunda-feira 17. Foram registrados 1.572 conflitos, aumento de 16,7% em relação ao ano anterior. A Amazônia Legal virou um campo minado e concentra 59% das disputas. O salvo-conduto para a criminalidade na região durante o governo Bolsonaro fez as invasões de terras indígenas dispararem: dos 661 registros de invasão de TIs na última década, 411 aconteceram no período do mandato do ex-capitão. Enquanto o governo corre para limpar a bandidagem real, ruralistas e parlamentares bolsonaristas invocam um velho fantasma: o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra. Há uma intensa movimentação para retomar a tentativa de criminalização do MST, do pedido de uma CPI no Congresso e ações judiciais patrocinadas por entidades empresariais. Até a presença de João Pedro Stedile, um dos líderes históricos do movimento, na comitiva de Lula à China serviu para insuflar os ânimos no meio rural.

O MST, por sua vez, mobiliza-se, ao longo de abril, para exigir a retomada do processo de reforma agrária e denunciar o desmonte no Incra. Na mesma segunda-feira 17, data da divulgação do relatório sobre violência no campo, o movimento realizou protestos em superintendências do instituto de colonização em 12 estados, além de ocupar nove áreas improdutivas em Pernambuco. Segundo Ceres Hadich, do comando nacional, é urgente “desbolsonarizar” o Incra. “Ao longo dos últimos anos, o instituto passou por um processo de sucateamento. Sabemos que sempre foi alvo de disputas e interesses políticos, e no último período, obviamente, esteve na mão dos bolsonaristas, que lotearam a autarquia e a dividiram de acordo com seus próprios interesses. Isso nos levou a uma situação calamitosa. Hoje, não há orçamento para fins de reforma agrária.” Com o retorno de Lula à Presidência e a recriação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, extinto por Michel Temer, os militantes do MST acreditam ter chegado o momento de pressionar o governo. Apesar das boas relações históricas do MST com o PT, a pressão será feita nas ruas, como sempre foi, garante Hadich.

Há, porém, outros espaços de disputa. A bancada ruralista no Congresso agiu rápido para tentar barrar qualquer forma de avanço dos sem-terra. Há pouco mais de 15 dias, o deputado federal Tenente-Coronel Zucco, do Republicanos do Rio Grande do Sul, protocolou o pedido da CPI do MST. “Vamos investigar invasões em todo o território nacional, e verificar também os financiadores”, afirmou. Segundo a assessoria do deputado, “agora depende apenas do Arthur Lira instalar a comissão”, protocolada com o mínimo de assinaturas necessárias, 171. Ao mesmo tempo, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil ingressou no Supremo Tribunal Federal com um pedido de liminar para coibir as ocupações organizadas pelo movimento e censurar páginas na internet e perfis oficiais nas redes sociais. Segundo Hadich, “a CPI apresenta-se como uma cartada do agronegócio para tentar criminalizar os movimentos que estão se organizando na luta pela reforma agrária, e colocá-los numa situação de isolamento social”.

Alvo preferencial. A presença de Stedile na comitiva à China deu o que falar – Imagem: Rafael Stédile/MST

A jovem campesina Luana Brambilla, de 29 anos, nasceu em um assentamento de sem-terra e garante que esse tipo de ação não vai intimidar o movimento. “A violência institucional sempre existiu. Lidamos com isso diariamente. Quando eu era criança, minha mãe foi presa diversas vezes por ser uma liderança, meus pais sempre foram perseguidos por operações policiais, quem cresceu forjado na luta não vai se abalar com esse tipo de ataque.” Brambilla cresceu no assentamento Pontal do Tigre, em Querência do Norte, no Paraná, e defende que a reforma agrária precisa vir acompanhada de um pacote de políticas públicas capazes de garantir a permanência e a qualidade de vida dos camponeses. “Meus tios são produtores de arroz. Meus primos cresceram aprendendo a fazer isso, e hoje não têm condições de ter um sítio para continuar perto da família fazendo o que sabem. As perspectivas de vida para o jovem do campo nunca foram tão ruins. Toda a perseguição que aconteceu nos últimos anos contra os filhos da reforma agrária nos apresenta um horizonte com pouca perspectiva de dias melhores.”

Segundo dados oficiais do Incra, atualmente existem no Brasil cerca de 1 milhão de famílias assentadas, em mais de 9 mil assentamentos distribuídos em 88 milhões de hectares de terra em todo o território nacional. O MST revela que mais de 90 mil famílias ainda vivem em acampamentos à espera de regularização de terras. “Esses acampamentos precisam de condições de desenvolvimento plenas do território, então é necessário ter água, luz, estradas, cooperativas, agroindústrias, e isso não vem sendo respeitado na maioria dos processos de titulação efetivados nos últimos anos. E muito pouco se avançou em relação às políticas públicas”, afirma Hadich.

Cerca de 90 mil famílias continuam acampadas Brasil afora, à espera de regularização das terras

Um dos acampamentos à espera de regularização fundiária é o Maila Sabrina, no Paraná. “Essas pessoas ocuparam um latifúndio improdutivo da Fazenda Brasileira em 2003, desde então estão à espera. No acampamento elas trabalham, produzem alimentos saudáveis, têm escola, posto de saúde, toda uma estrutura, mas os camponeses ainda vivem com medo do despejo e o clima de tensão que o agronegócio promove no campo”, conta a dirigente.

A incerteza faz aumentar a insegurança. Como mostra o relatório da Comissão Pastoral da Terra, a violência disparou em 2022, quando foram registrados 47 assassinatos de camponeses decorrentes de violações e invasões de territórios por pistoleiros e grileiros. Com relação a 2021, houve aumento de 86% no número de ocorrências de ações de grilagem de terra e pistolagem contra mais de 30 mil famílias no território nacional. “Os dados indicam que a prática de pistolagem emerge em contextos de ausência de mediação ou atuação do Estado para solucionar ou mitigar os conflitos no campo”, descreve o relatório.

A burguesia agrária brasileira, afirma Hadich, “sempre se caracterizou por um nível muito alto de violência e truculência”. Ela recorda com tristeza o fatídico episódio do Massacre de Eldorado dos Carajás, no Pará, quando 21 sem-terra foram assassinados pela Polícia Militar durante uma marcha em defesa da reforma agrária. “São mártires da nossa luta.” Para a dirigente, os dados do último relatório da CPT revelam o resultado de uma “política armamentista e de organização de milícias”, promovida pelo governo Bolsonaro. “Nós, que estamos no campo, sentimos que há um crescente de violência nos últimos anos, especialmente com a organização de grupos paramilitares e a ­chegada da milícia em territórios longínquos.”

Contra-ataque. A bancada ruralista insiste em uma CPI do MST. A CNA pediu ao Supremo que impeça as ocupações e censure o movimento na internet – Imagem: Redes sociais e Leonardo Milano/MST

Hadich lembra que, quando o MST nasceu, em janeiro de 1984, enfrentou a truculência da União Democrática Ruralista, que perdeu espaço com o fortalecimento do agronegócio. Mas o discurso violento de Bolsonaro e a facilitação ao acesso às armas, principalmente por meio dos clubes de tiro, os CACs, promoveram, segundo ela, a rearticulação dos grupos armados ligados a grandes fazendeiros. Para reverter essa situação, acredita Hadich, a reforma agrária é o ponto central. “Não é algo saudosista, ao contrário. É a única forma de pagar uma dívida história que vem da nossa formação social como povo. Uma reforma justa deve partir do princípio da função social da terra.” Esse conceito está ligado às formas de bem-viver. Ou seja, de convivência em harmonia com a natureza, e não uma prática de exploração do solo e expansão da monocultura. Segundo a dirigente, a reforma agrária é um dos pilares para resolver a questão da fome que hoje assola milhares de famílias no País. “Não falta alimento, o que falta é vontade política para dar condições de produção saudável e distribuição justa.”

Com o passar dos anos, o MST passou a dedicar-se cada vez mais à produção de alimentos orgânicos e a defender a alimentação saudável como meio de tornar o Brasil autoridade no debate ecológico. Brambilla, que vive em um sítio de produção agroecológica, conta que aprendeu a se relacionar com a terra com os pais e avós. “Temos conhecimentos muito ricos que são passados de geração a geração, são formas de extrair o nosso sustento sem agredir a terra. Quanto mais surgem denúncias de trabalho escravo promovido pelo agronegócio, mais acreditamos que a agroecologia é a saída para a construção de um mundo mais justo, porque promove o trabalho sadio e a boa relação do trabalhador com o campo.” •

Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Velho fantasma’

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