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Um brasileiro no Olimpo

Luiz Davidovich recebe prêmio da Academia Mundial de Ciências por suas contribuições à física quântica

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“Precisamos de ‘projetos da Lua’ aqui no Brasil”, afirma, em referência ao programa espacial dos EUA nos anos 1960 – Imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Após enganar a morte em duas ocasiões, Sísifo recebeu uma punição exemplar dos deuses do Olimpo: foi condenado a empurrar eternamente uma gigantesca pedra montanha acima, apenas para vê-la rolar de volta sempre que se aproximava do topo, derrotado pela força irresistível do peso que carregava. A alegoria do esforço inútil, resgatada por autores como Albert ­Camus, tem sido frequentemente associada à trajetória da ciência no Brasil, marcada por avanços frustrados por cortes orçamentários e pelo desprezo de governos que não reconhecem seu valor estratégico. Ainda assim, há quem desafie essa lógica. Ao menos um cientista brasileiro parece ter conseguido vencer a gravidade e levar sua pedra até o cume: o físico Luiz Davidovich, professor emérito da UFRJ e ex-presidente da Academia Brasileira de Ciências, que acaba de receber o Prêmio TWAS Apex 2025, uma das mais altas distinções concedidas a pesquisadores de paí­ses em desenvolvimento.

A láurea, concedida pela Academia Mundial de Ciências (TWAS), foi entregue a Davidovich na quinta-feira 2, durante a 17ª conferência geral da instituição, no Rio de Janeiro. O prêmio de 100 mil dólares reconhece as contribuições do brasileiro na área de ciência quântica, por pesquisas que “ampliaram o entendimento sobre a interação de sistemas quânticos com o ambiente, base para tecnologias como computação, comunicação e sensores quânticos, que podem revolucionar áreas da saúde, logística e meio ambiente”. Se tivesse nascido no Leste Europeu, região de origem de sua família, possivelmente Davidovich daria autógrafos nas ruas. No Brasil, o quase octogenário cientista e professor vive um cotidiano longe dos holofotes, mas de uma intensa relação com a ciência que já dura 56 anos.

A aproximação com a ótica quântica ocorreu em circunstâncias inesperadas. “Em 1969, no fim do primeiro semestre do mestrado, fui expulso da universidade por participar de manifestações contra a ditadura”, relembra Davidovich. O Decreto 477, conhecido como “AI-5 dos Estudantes”, impedia os punidos de ingressar em qualquer instituição de ensino no Brasil por três anos. “Como a expulsão aconteceu em julho, após o prazo de inscrições em universidades estrangeiras, dependi da solidariedade de professores que intercederam junto a colegas no exterior”, explica.

Davidovich acabou aceito na Universidade de Rochester, em Nova York, referência em ótica quântica, onde também atuava o físico brasileiro Moysés ­Nussenzveig. “Ele interveio para garantir minha matrícula fora do prazo e tornou-se meu orientador de doutorado, além de autor de uma das obras fundamentais na área. Essa experiência foi decisiva para a minha trajetória”, conta. Além do orientador nos EUA, Davidovich vai mais atrás para prestar outra reverência. “Foi na ­PUC–Rio que tive aulas com o professor Pierre Henri Lucie, cujos dedicação e brilhantismo me inspiraram a optar definitivamente pela Física já nas primeiras semanas.”

Indagado sobre as dificuldades enfrentadas em seu percurso científico, ­Davidovich diz ser mais justo testemunhar, antes, o que contribuiu para o seu sucesso. “As agências de fomento CNPq, Capes e Faperj tiveram papel crucial. Graças aos seus programas, foi possível construir, no Instituto de Física da UFRJ, um laboratório de ótica quântica que alcançou resultados de repercussão internacional.” Iniciativas como o Pronex, os Institutos do Milênio e os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia foram fundamentais para o fortalecimento da infraestrutura de pesquisa no País, ressalta. “A colaboração de estudantes e colegas também foi determinante. A ciência é cada vez mais um empreendimento coletivo, e aprendi imensamente com os jovens pesquisadores e pares com quem trabalhei.”

“CT&I e educação de qualidade ainda não são tratadas como políticas de Estado”, lamenta o professor da UFRJ

A principal dificuldade – agora, sim, Davidovich se sente à vontade para expor – é a instabilidade do financiamento científico e universitário no Brasil. “Ciência, inovação e educação de qualidade ainda não são tratadas como políticas de Estado. Os recursos oscilam de acordo com os governos e raramente são prioridade parlamentar”, revela. Outro problema é a precariedade da infraestrutura das universidades federais e dos institutos. “Houve um avanço importante com o fim do contingenciamento do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológi­co no governo Lula, mas esses recursos ainda representam apenas 0,1% do PIB”, lamenta. Em 2024, o Brasil, investiu apenas 1,2% do PIB em P&D, muito abaixo de países como China (2,68%), Estados Unidos (3,45%) e Coreia do Sul (5%).

Davidovich afirma que o avanço da ótica quântica e das tecnologias correlatas no Brasil depende de projetos nacionais estratégicos, com financiamento consistente, que permitam dar um salto rumo à construção de dispositivos quânticos para sensores, comunicação e computação. “É uma urgência diante das restrições internacionais à exportação de equipamentos e componentes de ponta, o que exige capacidade tecnológica própria”, alerta.

Apesar dos percalços, acrescenta o professor, o Brasil tem excelentes cientistas na área quântica, e várias universidades se destacam nas pesquisas sobre suas aplicações. Ele menciona a própria UFRJ, além da Unicamp, USP, UFMG, UFPE e o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). “No cenário internacional, o Brasil tem se destacado nas publicações, tanto teóricas quanto experimentais, que têm aparecido em excelentes revistas científicas como Physical Review Letters, Nature e Science.”

Para Davidovich, o avanço científico depende de foco e escala. Ele defende a identificação de quatro ou cinco projetos estratégicos para o País, capazes de articular pesquisa, desenvolvimento sustentável e inclusão social. Um exemplo, afirma, é a sociobiodiversidade, que envolve o uso responsável dos recursos naturais da floresta, aliada à valorização das comunidades locais. A transição energética é outro eixo prioritário. “O Brasil tem um sistema de energia limpa fantástico. O que falta, realmente, é a ação decisiva do Estado para explorar essas questões de forma sustentável”, destaca.

O professor sugere que o País adote uma agenda ambiciosa, inspirada no programa espacial norte-americano lançado por John Kennedy em 1960. “Aquele projeto mudou o perfil industrial dos EUA e incentivou uma educação mais criativa. Acho que precisamos de ‘projetos da Lua’ aqui no Brasil. Um deles é o da sociobiodiversidade, mas há outros. Não posso deixar de falar nas tecnologias quânticas, pois o mundo inteiro está apostando nisso, e nós não podemos ficar de fora. Precisamos centrar esforços na criação de startups e de empresas de tecnologia profunda.” Recado de quem conhece. •

Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um brasileiro no Olimpo’

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