Entrevistas

‘O Ministério da Economia está destruindo a ciência brasileira’

O físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências, manifesta preocupação com novos cortes no Orçamento para 2022

O físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências,(Foto: Divulgação)
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Presidente da Academia Brasileira de Ciências, o físico Luiz Davidovich é uma das vozes que têm se levantado contra o desmonte técnico e orçamentário do setor de Ciência e Tecnologia promovido pelo governo de Jair Bolsonaro. Ainda que critique o ministro Marcos Pontes, contudo, ele vê como grandes causas do atual estado de abandono científico a postura do presidente e a política que emana do Ministério da Economia comandado por Paulo Guedes.

“O MCTI sofre as consequências de uma política econômica equivocada, que alia uma contabilidade de planilha excel a interesses eleitoreiros de curto prazo”, diz.

Os maiores exemplos do desmonte em curso, cita Davidovich, são cortes nos orçamentos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o FNDCT, e do CNPq. A liberação imediata dos 2,7 bilhões de reais que a União deve ao Fundo (“uma migalha”, diz) é uma necessidade imediata para desafogar minimamente o setor de CT&I brasileiro. “Esse valor corresponde a um sexto das emendas do orçamento secreto”.

CartaCapital, ele também manifesta sua preocupação com novos cortes que eventualmente serão incluídos no Orçamento para 2022, comenta a renúncia coletiva de 114 servidores da Capes e pede que o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia volte a se reunir, algo que nunca aconteceu no atual governo.

Confira a seguir.

CartaCapital: Qual o balanço desses três anos de governo Bolsonaro no que diz respeito à Ciência, Tecnologia e Inovação?

LD: A postura do governo federal e a política econômica vigente em relação à Ciência, Tecnologia e Inovação prejudicaram extremamente a gestão do MCTI. Veja o que está ocorrendo com o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. O Ministério da Economia, usurpando funções do Conselho Deliberativo do FNDCT, alocou 50% da arrecadação do fundo para crédito, o que não interessa à indústria, pois as taxas de juros são altas. Portanto, esses recursos não serão utilizados e serão recolhidos ao Tesouro no final do ano. Ou seja, o Ministério da Economia dá com uma mão para tirar com a outra. Os 50% restantes, fora uma parte que foi liberada para o enfrentamento da covid-19, encontram-se retidos, paralisando a pesquisa e a inovação. É um prejuízo enorme para o país.

CC: Os cortes vão além do FNDCT?

LD: Recentemente, o PLN-16, enviado pelo governo ao Congresso Nacional e que contemplava recursos para o CNPq, foi alterado na véspera da reunião da Comissão Mista do Orçamento, a pedido do Ministério da Economia. Os recursos prometidos para o CNPq foram simplesmente desviados para outras finalidades, impedindo a realização de programas importantes para o desenvolvimento nacional. Devemos atribuir isso a uma gestão deficiente do MCTI ou do CNPq? Não! Devemos, isso sim, apontar que os responsáveis por essa situação calamitosa são o Ministro da Economia e os demais componentes da Junta Orçamentária: os ministros da Casa Civil e da Secretaria de Governo. São eles que estão destruindo a ciência brasileira, que estão debilitando a indústria inovadora. O Congresso Nacional também tem responsabilidade nisso, pois aprovou o desvio de recursos do FNDCT para crédito e a mudança no PLN-16.

CC: Qual a necessidade mais imediata do setor?

LD: Estamos brigando agora pela liberação de R$ 2,7 bilhões devidos ao FNDCT. Veja a situação precária em que estamos: isso corresponde a US$ 500 milhões, uma migalha se comparada com os US$ 450 bilhões que o governo norte-americano estará investindo em ciência e inovação, superados pelo investimento da China em CT&I. Aliás, esses recursos pelos quais batalhamos correspondem a cerca de um sexto das emendas do relator, aquelas que têm sido chamadas de orçamento secreto.

O Brasil está perdendo terreno no jogo de campeões mundiais em torno das novas tecnologias, do 5G, da biotecnologia, da nanotecnologia, das novas vacinas, de novas fontes de energia como a célula de combustível de hidrogênio. Estamos caindo para a segunda ou terceira divisão. Apesar de o Brasil estar entre as maiores economias do mundo!

CC: Quais as perspectivas da CT&I brasileira em relação ao Orçamento de 2022?

LD: A Academia Brasileira de Ciência, a SBPC e outras entidades têm apresentado propostas ao Congresso Nacional através da Iniciativa de Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br) no sentido de proteger o FNDCT e corrigir o Orçamento para 2022. É uma tentativa de mitigar o processo de destruição da ciência nacional. Temos nos manifestado também junto ao ministro Marcos Pontes, ressaltando a importância de recuperar os recursos do FNDCT e valorizar a participação das comunidades acadêmica e empresarial nos órgãos deliberativos na área de CT&I.

Nesse caso se enquadram o Conselho Diretor do FNDCT, cujas decisões recentes têm sido tomadas com votos contrários dos representantes das comunidades científica e empresarial. E também o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT), o qual, de acordo com a legislação vigente, deve ser presidido pelo presidente da República. A última reunião desse órgão foi no governo Michel Temer.

CC: Dá para contar com Marcos Pontes?

LD: O ministro está promovendo reuniões das Câmaras Técnicas do CCT, preparando uma reunião desse Conselho, que reúne diversos Ministérios, além de representantes da comunidade acadêmica e empresarial. Pode ser um passo importante para a elaboração de uma estratégia de CT&I para os próximos anos. Mas, a permanecer a política econômica vigente, essa estratégia corre o risco de ser uma peça de ficção.

O MCTI sofre as consequências de uma política econômica equivocada, que alia uma contabilidade de planilha excel a interesses eleitoreiros de curto prazo. Nessa batalha difícil e desgastante pelo desenvolvimento científico e tecnológico do país é importante ter um foco preciso, apontando os verdadeiros responsáveis pelo desmonte do sistema nacional de ciência e tecnologia.

CC: Diversos cientistas devolveram a Ordem do Mérito Científico em protesto à cassação do prêmio de profissionais considerados esquerdistas ou críticos ao governo. Existe hoje um quadro de perseguição política no setor?

LD: Esse episódio inédito certamente envolveu perseguição política, atingindo dois pesquisadores que foram retirados da lista de homenageados porque suas atividades, baseadas na evidência científica, contrariavam a ideologia e o negacionismo do governo federal. Demonstrar que a hidroxicloroquina não funciona contra a covid-19 virou motivo de perseguição política!

CC: Diante dos sucessivos cortes, qual o quadro do ensino superior hoje no Brasil?

LD: As universidades federais foram depauperadas, sem recursos para manter minimamente a infraestrutura dessas instituições. A pós-graduação está sendo prejudicada também, pelos valores das bolsas de mestrado e doutorado, que estão 60% abaixo dos valores de 2014 corrigidos pela inflação. É o desmonte de um sistema construído ao longo de décadas e que teve um papel extremamente relevante no desenvolvimento do país.

CC: Como você avalia o recente episódio de renúncia coletiva na Capes?

LD: A renúncia de mais de cem consultores da Capes foi motivada pela determinação do Ministério Público de interromper a avaliação quadrienal da pós-graduação. Essa avaliação está estreitamente ligada ao progresso da pós-graduação nacional, permitindo separar o joio do trigo, valorizar o mérito acadêmico e expandir a pós-graduação, reduzindo as disparidades regionais.

Entre 2010 e 2018, o aumento de cursos de pós-graduação no Brasil inteiro foi de 52%. Já no Norte esse índice chegou a 79% no mesmo período. O número de programas considerados de excelência passou de 234 na avaliação concluída em 2007 para 482 na avaliação de 2017, o que evidencia o impacto da avaliação na qualidade dos programas.

Por decisão judicial, a avaliação pode agora continuar, mas a divulgação dos resultados ainda não foi autorizada. Há ainda a preocupação de que os cursos de educação à distância, com qualidade variável, sejam corretamente avaliados. A avaliação deve ser retomada com urgência, com o pleno funcionamento das comissões de área. Isso inclui o retorno dos que renunciaram e a liberação dos resultados, que devem ser públicos e transparentes.

CC: O orçamento executado em 2020 pelo MCTI foi de R$ 7 bilhões, mesmo valor executado em 2006. Como reverter esse atraso?

LD: Reverter esse atraso exige uma mobilização grande de vários setores da sociedade brasileira, que precisa ser conscientizada da importância da CT&I para a saída desta crise sanitária, social e econômica. O Congresso Nacional precisa apoiar os investimentos estratégicos, que moldam o futuro do país, para além das propostas de curto prazo, que não compõem um projeto nacional de desenvolvimento. Esse tema tem que estar presente em 2022, que é um ano eleitoral. Se ele não comparecer nos debates, o país continuará no atraso.

A pandemia mostrou a relevância de ter uma comunidade científica competente, fruto do investimento feito ao longo de décadas por órgãos como CNPq, Capes, Finep e as Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa. É a competência instalada graças a esse sistema que permite ainda ter esperança que a ciência brasileira vai sair do buraco em que se encontra.

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