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Turista em apuro

Exposto pelo aliado Valdemar Costa Neto e acuado pelo genocídio do povo Yanomâmi, Bolsonaro tenta prolongar a permanência nos EUA

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Sincericídio. A declaração de Costa Neto complicou ainda mais a situação jurídica do capitão refugiado na Flórida - Imagem: Paul Hennessy/Anadolu Agency/AFP e Valter Campanato/ABR
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Estrelado por personalidades das artes, do esporte e da política, entre outras, o mercado de palestras nos EUA é dinâmico e chega a render algumas dezenas de milhares de dólares por uma única apresentação. Novato no circuito, Jair Bolsonaro arriscou sua primeira palestra em solo norte-americano na segunda-feira 30, em Orlando, cidade que escolheu para morar ainda antes de terminar seu mandato na Presidência da República. O evento, segundo aliados, marcou o início de uma nova fase na qual Bolsonaro buscará consolidar seu papel de liderança da direita e principal nome da oposição a Lula no Brasil. No entanto, a cotação dos ingressos – o mais barato custava 10 dólares e o mais caro, 50 – mostrou que as ideias do ex-capitão não estão valendo muito nem mesmo no estado fetiche do “padrinho” Donald Trump. Fiel a si mesmo, Bolsonaro voltou a minimizar atos golpistas e a fazer declarações cifradas e ofensivas à democracia: “Se o governo (Lula) continuar na linha que demonstrou nesses primeiros 30 dias, não vai durar muito”, disse aos ouvintes, sem detalhar sua tese.

A declaração já faz parte das investigações sobre a participação de Bolsonaro nos atos golpistas de 8 de janeiro e se soma à postagem feita horas depois da invasão dos Três Poderes, quando replicou que Lula “havia sido escolhido pelo STF”. O avanço das investigações no Brasil é uma Espada de Dâmocles sobre a cabeça do ex-capitão e deixa seu ­entourage apreensivo quanto a um possível pedido de prisão, em caso de retorno ao País. Na opinião de juristas, a situação de Bolsonaro agravou-se nos últimos dias com as revelações sobre a farra de gastos irregulares com o cartão corporativo da Presidência e a conivência de seu governo com o extermínio do povo ­Yanomâmi. Não bastasse, Valdemar Costa Neto, presidente do PL, partido de Bolsonaro, virou alvo de investigações após declarar que “todo mundo” possuía documentos semelhantes à minuta encontrada pela Polícia Federal durante batida na casa do ex-ministro Anderson Torres. O documento decretava um inconstitucional “Estado de Defesa” no Tribunal Superior Eleitoral, com a anulação das eleições e da vitória de Lula.

Na madrugada da quinta 2, o senador Marcos do Val afirmou ter sido coagido pelo ex-presidente a participar de um golpe de Estado

Na madrugada da quinta-feira 2, o senador Marcos do Val, do Podemos do Espírito Santo, bolsonarista de quatro costados, forneceu novos elementos sobre as intenções do ex-presidente. Segundo o parlamentar, Bolsonaro teria tentado convencê-lo a dar um golpe de Estado, proposta por ele recusada. “É lógico que denunciei”, declarou Do Val, que na sequência anunciou a intenção de renunciar ao mandato e voltar a viver nos Estados Unidos. “Não adianta ser transparente, honesto e lutar por um Brasil melhor, sem os ataques e as ofensas que seguem da mesma forma.” O capixaba tem sido chamado de “traidor” pelos apoiadores do ex-capitão.

Na terça-feira 31 de janeiro, Alexandre de Moraes determinou que a PF tome o depoimento de Valdemar para que este esclareça o que disse: “Suas declarações devem ser esclarecidas notadamente no que diz respeito à adesão, por terceiras pessoas, de eventual intenção golpista”, afirmou o ministro do Supremo Tribunal Federal. A determinação teve origem em uma representação do senador Fabiano Contarato, líder do PT no Senado, a apontar a prática do crime de supressão de documento, previsto no artigo 305 do Código Penal: “O presidente nacional do partido de Bolsonaro admitiu que triturou provas da trama golpista e criminosa para anular as eleições, manter um fascista no poder e impedir a posse de Lula. O STF julgará este grave fato com o rigor da lei e inspirado pelos pilares que regem a nossa Constituição”. Contarato acrescentou que Costa Neto “lança mão de uma das táticas mais manjadas do bolsonarismo” ao vulgarizar uma tentativa de golpe. “Faz um esforço descompensado para normalizar o absurdo a partir de alegações vazias, desprovidas de qualquer evidência.”

As palavras de Costa Neto sugerem a existência de uma conspiração com o envolvimento de integrantes da cúpula bolsonarista, além do próprio Bolsonaro. “É necessário investigar todos os que estão envolvidos de alguma forma. Não se pode poupar ninguém, porque foram crimes gravíssimos contra a democracia, não houve apenas dano ao erário público. Houve atentado contra os Poderes. E também o crime de tentativa de produzir um golpe de Estado. O quebra-quebra foi executado com a intenção de mobilizar uma intervenção militar que seria a materialização do golpe”, avalia Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da PUC de São Paulo, que coordenou o grupo de juristas responsável pela elaboração do projeto da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. Colunista de CartaCapital, o especialista diz que as condutas devem ser investigadas para que se entenda a extensão do caso: “Foram várias práticas que indicam a existência de uma organização criminosa para a produção desse golpe. A mera cogitação por si só não é crime, mas essas minutas de decreto podem, sim, ser provas importantes, dependendo de como se articulam com outros fatos”.

Fantasmas. O temor de uma delação de Anderson Torres e o escândalo do MEC, sob o comando do pastor Milton Ribeiro, tiram o sono de Bolsonaro – Imagem: Alan Santos/PR e Arquivo/MJSP

O Grupo Prerrogativas, a reunir advogados progressistas, fez na segunda-feira 30 um pedido para que Costa Neto seja incluído nas investigações dos atos golpistas: “É muito grave que um homem público experiente, presidente de um partido político, diga que todo mundo tinha em casa documentos golpistas. É inconcebível, e certamente Valdemar será chamado a depor para explicar que documento ele tinha em casa, quem o entregou, quem mais tinha acesso”, afirma o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay. Ainda não se pode falar, porém, que existia um plano a envolver toda a cúpula bolsonarista ou mesmo Bolsonaro: “Não podemos fazer uma presunção de culpabilidade, mas o líder do PL disse que várias pessoas ligadas a ele tinham esses documentos golpistas e terá de se explicar. O mais importante, agora, é que haja uma investigação sobre o que tem realmente de verdade nessa fala do Valdemar e quem são as pessoas envolvidas. Poderá ou não chegar a Bolsonaro”.

No mesmo dia, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, determinou a apuração da eventual participação de autoridades do governo anterior no suplício imposto aos Yanomâmis. As investigações podem chegar a Bolsonaro: “Havia um quadro de absoluta insegurança dos povos indígenas envolvidos, bem como a ocorrência de ação ou omissão por parte de autoridades federais, agravando a situação”, disse o magistrado, em despacho à PF, ao MPF, à Procuradoria-Geral da República e ao Ministério Público Militar. Um relatório preliminar do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania apontou que, entre 2019 e 2022, período em que a pasta foi comandada pela agora senadora Damares Alves, ocorreram 22 casos em que o governo omitiu dados de violência ou deliberadamente ignorou alertas feitos por entidades da sociedade civil e organismos internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Barroso, do STF, determinou a apuração das responsabilidades do governo anterior no genocídio do povo Yanomâmi

A caracterização do envolvimento de Bolsonaro dependerá das investigações, avalia Serrano. “Não só Bolsonaro, como também os outros agentes públicos que tenham tido algum tipo de participação nesse crime, nos termos do Artigo 29 do Código Penal, podem e devem responder por isso. Por enquanto, não dá para afirmar nada, as investigações mal começaram.” O jurista é categórico ao afirmar, porém, que desta vez não há exagero ao se tipificar o crime de genocídio: “Na pandemia, não existia a figura do genocídio porque não havia o recorte étnico. No caso dos Yanomâmis, a materialidade e a tipicidade do delito estão mais do que demonstradas. Não passaram jogando ­Napalm na floresta para matar os indígenas, mas se sabia que as condutas do governo federal necessariamente levariam à morte daquela população. Não há dúvida que existe enquadramento no Inciso C do artigo 6º do Estatuto de Roma”. Para Serrano, as atitudes do então governo “expandiram brutalmente o sacrifício dos Yanomâmis”.

Kakay avalia que o genocídio dos ­Yanomâmis ganhou dimensão mundial e sugere investigações mais amplas. “O senador Sergio Moro atuou, enquanto ministro da Justiça, para desestruturar a Funai. Dom Phillips e Bruno Pereira foram mortos exatamente por aqueles beneficiados pela ação leviana e irresponsável do Ministério da Justiça. Hoje já se tem a comprovação de que quem os matou foi o líder da máfia de pescadores ilegais. Tudo isso terá de ser investigado e processado.” O advogado diz que Bolsonaro, seus assessores e parte de sua família “certamente sofrerão processos criminais tanto pelos atos ocorridos durante o mandato quanto pelo que ocorreu depois”. A começar pela invasão golpista de 8 de janeiro: “Bolsonaro incentivou isso diretamente e deverá, sim, ser responsabilizado ao fim da investigação”.

Com medo do que lhe pode aguardar no Brasil, o ex-capitão permanece nos EUA. Segundo o jornal londrino ­Financial Times, o ex-presidente pediu às autoridades norte-americanas um visto especial com duração de seis meses. Para tanto, alegou, como fazem os refugiados, precisar “se defender de uma situação perigosa” em seu país. Cientes de qual perigo ameaça Bolsonaro, quase meia centena de parlamentares americanos, incluindo republicanos, exorta o governo Biden a abreviar a permanência do aliado de Trump na terra do Mickey. O periódico traz uma declaração do advogado Felipe Alexandre, sócio do escritório AG ­Immigration, que estaria auxiliando Bolsonaro em sua tentativa: “Acho que a Flórida será seu lar temporário longe de casa. Neste momento, com a situação dele, acho que precisa de um pouco de estabilidade”.

Farra. Os gastos do cartão corporativo, usado até mesmo nas motociatas do eterno candidato, implodiram o mito do caçador de mamatas do Planalto – Imagem: Alan Santos/PR

Segundo os especialistas, mesmo que volte ao Brasil, Bolsonaro não deverá ser preso. Ao menos, não imediatamente. “Embora os fatos sejam gravíssimos, não acredito que haja motivo para uma prisão neste momento. Salvo se houver um dos requisitos que exigem uma prisão cautelar preventiva. Acho que, se Bolsonaro voltar, responderá ao processo aqui com amplo direito de defesa e todas as garantias constitucionais postas. Deverá ser preso se condenado, e acho que será, ao fim e ao cabo do processo legal com todos os direitos constitucionais, inclusive a presunção de inocência”, afirma Kakay. Serrano segue na mesma toada: “Não seria correto Bolsonaro ter a prisão decretada. Há no Brasil uma banalização e o uso indevido da prisão preventiva. Temos cerca de 40% de nossa população carcerária presa preventivamente, ou seja, sem direito prévio à defesa. Acho que não se deve repetir esse tipo de prática nem com relação ao ex-presidente nem com relação a ninguém”.

Serrano pondera que, se Bolsonaro procurar permanecer nos EUA, “em aparente tentativa de se evadir das investigações e dos processos no Brasil”, aí sim pode se justificar a sua prisão preventiva. Ele ressalta, no entanto, que Bolsonaro não é um foragido da Justiça, pois saiu do Brasil em condições absolutamente legítimas e tinha total liberdade de ir aos EUA: “Lá, ele pediu a transformação de seu visto atual para outro tipo de visto, o que é algo possível. O fato de estar nos EUA não é, porém, impeditivo para que haja investigações sobre sua conduta”. Por via das dúvidas, o capitão vai ficando onde está, como atesta o filho Zero Um, senador Flávio Bolsonaro: “Ele pode voltar amanhã, pode ser daqui a seis meses, pode não voltar nunca”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1245 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE FEVEREIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Turista em apuro”

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