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Transfobia velada

Primeira professora trans do Instituto Federal do Ceará é vítima de demissão arbitrária

A recolocação profissional das pessoas transgênero é sempre mais difícil – Imagem: Fernando Frazão/ABR
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Êmy Virgínia de Oliveira Costa começou o ano com uma notícia desagradável: em 8 de janeiro, foi notificada sobre sua demissão do Instituto Federal do Ceará, onde leciona há oito anos. Sem acreditar no resultado do processo administrativo aberto em 2019, compartilhou a informação com colegas e alunos através de grupos no WhatsApp. A reação imediata foi de choque e consternação. No mesmo dia, estudantes organizaram um abaixo-assinado contra a demissão que, em menos de 24 horas, contava com mais de 400 assinaturas. “Bateu o desespero. Só conseguia pensar em como iria encontrar um novo emprego, como conseguiria me manter sem o salário. A recolocação no mercado de trabalho é sempre difícil, mas para uma pessoa transgênero é ainda mais.”

Primeira professora trans do IFCE, Êmy Virgínia acredita que a punição foi desproporcional, movida por transfobia e perseguição política. Aos 36 anos, ela é servidora pública desde os 18. Dedicou toda a vida adulta à sala de aula e afirma que em nenhum outro ambiente se sente tão confortável. “Nasci para lecionar, compartilhar o que sei, o que sempre estou aprendendo”. A universidade pública, mantida com recursos da União, acusa a docente de “inassiduidade habitual”. Segundo o processo administrativo, ela ausentou-se durante 78 dias intercalados, que resultaram na penalidade máxima aplicada contra um servidor, a demissão.

O problema é que as aulas foram repostas antes mesmo de ser perdidas. Quando foi aprovada para cursar o doutorado em Linguística na Universidad de La ­República de Uruguay, a professora pediu autorização ao instituto e ao coordenador do curso para remanejar algumas aulas, de forma que pudesse viajar a Montevidéu e cumprir a carga horária da pós-graduação. De acordo com ela, a decisão foi tomada em comum acordo com os estudantes, que toparam adiantar os estudos para não perder o calendário do ano letivo. Dessa forma, semanas antes de embarcar para o Uruguai, Êmy Virgínia ministrava as aulas, com o aval da instituição.

O clima começou a ficar hostil após a professora iniciar a transição e se apresentar como mulher – Imagem: Redes sociais

O IFCE diz ter recebido uma denúncia anônima de que a professora estaria faltando e abriu investigação em 2019. Cinco anos depois, foi apresentado o veredicto. O advogado Paulo Fernando Espíndola da Silva, que assumiu o caso de Êmy Virgínia no início deste ano, explica que o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) é inconsistente e incoerente. Primeiro, porque a professora não faltou, apenas remanejou as aulas. Além disso, para chegar à contagem de 78 dias, a instituição levou em conta sábados, domingos e feriados, dias que a docente não precisa estar presente no campus. Se fossem descontados esses dias, a soma seria de 56 dias, e não poderia justificar a demissão, aplicada ao servidor ausente por mais de 60 dias. “O curioso é que, nos diá­rios do IFCE, as aulas foram registradas. Os alunos receberam as notas, avançaram de série, e ainda assim a instituição alega falta, isso é uma contradição gritante”, diz o advogado.

Colega da professora no campus Tianguá, Samantha Macedo Lima é testemunha de sua dedicação aos alunos. “Certa vez, no horário do almoço, vi a Êmy dando aula para apenas dois estudantes. Perguntei o motivo e ela esclareceu que aquele era o único horário que eles podiam fazer a reposição”, afirma a docente, que diz ter presenciado situações de “transfobia velada” por parte de chefes e alguns colegas. “Nunca ninguém se atreveu a dizer nada, mas a gente sentia o clima hostil contra ela.”

Sentindo-se discriminada, Êmy Virgínia pediu transferência para o campus de Baturité, a 80 quilômetros de Fortaleza. Como ela respondia ao processo administrativo, a reitoria tentou impedir a mudança, só garantida por decisão judicial. “As coisas começaram a ficar mais difíceis em 2019, ano em que iniciei minha transição de gênero. Até então, eu era o professor ‘viado’. Quando apareci mulher, parece que foi uma dose de feminilidade alta demais. Algumas pessoas talvez não quisessem conviver com isso.”

Êmy Virgínia é acusada de reunir 78 faltas, mas as aulas foram repostas com antecedência

A chegada em um novo campus, onde os colegas não sabiam do processo administrativo, ajudou-a a restabelecer a saúde mental, abalada devido ao preconceito da pós-transição e aos problemas com a universidade. “Com as professoras mulheres, a conexão foi imediata. Os alunos também foram muito acolhedores, sempre me trataram bem. Mas com os homens… Percebia um distanciamento, um silêncio que antes não existia.”

Oriunda de uma família pobre da zona rural do Ceará, Êmy Virgínia começou a trabalhar aos 16 anos para ajudar a mãe diarista, que cuidava sozinha de dois filhos. “Ser uma criança ‘viada’ nesse ambiente era assustador, e acabei encontrando nos livros um refúgio. Foi assim que nasceu o amor pela literatura e a linguística”, recorda. Aos 18 anos, passou em seu primeiro concurso e ingressou na universidade. Aos poucos foi se tornando “Virgínia”, nome inspirado na escritora britânica Virginia Woolf, por quem Êmy é apaixonada a ponto de ter uma tatuagem no braço.

A demissão injusta não afeta apenas a professora. “Sou a pessoa com o maior salário da minha família, a única com estabilidade profissional. Não tenho a quem recorrer para pedir ajuda. Ao contrário, sou eu quem ajuda minha mãe e minha irmã”, explica. A arbitrariedade gerou uma onda de solidariedade não somente de colegas e alunos, mas de muitos setores da sociedade civil. A professora Maria Artemis Ribeiro Martins, coordenadora do Sinasefi, o sindicato dos servidores da rede federal de ensino, colocou uma equipe jurídica à disposição de Êmy Virgínia e se dispôs a pagar uma ajuda de custo equivalente ao valor do salário dela, até que a questão seja resolvida na Justiça. “Nós temos plena confiança de que essa decisão será revertida, inclusive porque a demissão foi anunciada no dia 8, mas até agora não foi publicada no Diário Oficial”, afirma.

A docente pediu transferência do campus Tianguá após notar o distanciamento de colegas – Imagem: IFC- Campus Tianguá/CE

A onda de solidariedade extrapolou os muros do instituto, relata a aluna Brena Távora Uchôa, que está no último ano do curso de Letras e é orientanda da professora Êmy Virgínia em seu trabalho de conclusão. “A professora despertou em mim uma paixão pela Linguística. Ela é uma inspiração, uma referência, não a escolhi como orientadora por acaso.”

Carlos Henrique Moura Barbosa, doutor em História e colega de Êmy Virgínia em Baturité, explica que o clima político começou a pesar depois de 2017. “Esse movimento reacionário do ‘Escola Sem Partido’ foi o estopim. Vimos crescer uma espécie de ação policialesca velada sobre os docentes”, comenta. “É simbólico que uma professora que tenha se ausentado para ampliar sua qualificação esteja passando por isso, justo ela, que analisa o discurso bolsonarista em uma de suas pesquisas.”

Na sexta-feira 19, alunos, professores, servidores e representantes de movimentos sociais pretendem realizar um ato de repúdio à decisão do IFCE na Praça Gentilândia, em Fortaleza. O evento foi batizado de “Bloco da Êmy, a alegria vai vencer a transfobia”. “Queremos denunciar essa injustiça e ganhar mais vozes nessa luta, porque é uma situação inaceitável”, explica Fabiana dos Santos Lima, atual coordenadora de Êmy Virgínia no campus de Baturité. O professor e ex-reitor da UFRJ, Roberto Leher, somou-se à luta e afirma que “ainda é possível corrigir esse ato injusto e eticamente inaceitável”. Parlamentares da Bancada Feminista do PSOL em São Paulo, além da deputada federal Érika Hilton, também se colocaram à disposição e pretendem denunciar o caso no Congresso.

Nota oficial do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará

A Reitoria do IFCE vem a público explicar os fatos relacionados à docente deste Instituto, os quais ganharam, recentemente, repercussão na mídia.

Inicialmente, cumpre destacar que é dever da Administração Pública apurar denúncias que sejam protocoladas formalmente e que, somente diante de indícios de autoria e materialidade, instaura-se Processo Administrativo Disciplinar. Este, por sua vez, segue todo o rito previsto na legislação em vigor, observados os princípios da legalidade e impessoalidade, bem como o direito ao contraditório e à ampla defesa, os quais foram amplamente garantidos à docente em questão, no processo que apurou sua conduta no IFCE.

Nesse sentido, informa-se que a docente se ausentou, injustificadamente, de suas atividades laborais por mais de 60 (sessenta) dias intercalados no período de 12 (doze) meses, sem amparo legal, razão pela qual sua conduta foi enquadrada como inassiduidade habitual, em observância ao previsto na Lei nº 8.112/90, a qual não faz distinção de pessoas no tocante ao cumprimento dos deveres nela previstos.

O processo em questão foi instruído com documentos e testemunhos comprobatórios que materializaram a mencionada infração. Diante disto, verificou-se na forma do art. 139 da Lei nº 8.112/90, conduta passível de penalidade, cujo critério de sanção é objetivo, não havendo margem para nenhuma outra forma de interpretação ou discricionariedade da gestão. O processo, por sua vez, foi submetido à Procuradoria Federal junto ao IFCE, órgão de assessoramento jurídico vinculado à Advocacia Geral da União, que atestou a regularidade de todo o processo administrativo disciplinar. Neste ponto, reitera-se que a Lei 8.112/90 é taxativa ao estabelecer, para os casos de inassiduidade habitual, a demissão como penalidade.

É inegável que o desdobramento de uma demissão gera impactos, tanto no âmbito pessoal, quanto no institucional. Entretanto, não é permitido a nenhum órgão se esquivar de fazer cumprir a lei, principalmente quando se está diante de fatos irregulares e incontestáveis. Tanto que ao longo dos últimos 05 (cinco) anos, outros 05 (cinco) servidores foram demitidos do IFCE pelo mesmo fundamento legal de inassiduidade habitual.

Saliente-se, ainda, que o IFCE conta com uma política de capacitação que possibilita aos servidores se afastarem para cursar pós-graduação. Para isso, existem instrumentos institucionais, com base na legislação vigente, instituídos pela Resolução do Conselho Superior nº 3/2018 (atualizada pela Resolução nº 37/2021). Atualmente, existem cerca de 100 (cem) servidores afastados para pós-graduação, e todos se submeteram às normas em vigor para concessão desse tipo de afastamento. Essa medida possibilita ao IFCE, especialmente, no caso de docentes, a contratação de professores substitutos para garantir a manutenção e a regularidade das atividades acadêmicas.

Reitera-se que o IFCE é uma instituição que abraça a diversidade, respeita as diferenças e trata sua comunidade de forma isonômica e respeitosa, tendo a questão da inclusão e da diversidade como política, com núcleos instituídos, programas e projetos na área, os quais são contemplados pelo Ensino, Pesquisa e Extensão. Em 2022, foi aprovada a Resolução nº 78, de 13 de dezembro de 2022, criando os Núcleos de Gênero e Diversidade Sexual (Nugeds), tendo atualmente 13 (treze) núcleos instituídos. Em março de 2023, foi criada a Coordenadoria de Gênero e Diversidade na Diretoria de Assuntos Estudantis e, desde então, foi ampliada a participação do tema em encontros pedagógicos e encontros sistêmicos institucionais.

Por fim, o IFCE reforça que os processos administrativos na instituição ocorrem de forma imparcial, zelando pela isonomia, sem preconceitos de origem, etnia, gênero, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, e reafirma o seu compromisso com o combate e o enfrentamento a qualquer tipo de assédio e violação à diversidade.

Publicado na edição n° 1294 de CartaCapital, em 24 de janeiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Transfobia velada’

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