Justiça

‘Militares continuam pautando o governo Lula em matéria de Defesa’

Para Manuel Domingos Neto, autor de ‘O Que Fazer Com o Militar?’ as evidências de apoio fardado a um golpe bolsonarista não surpreendem, mas reforçam a urgência de reformas estruturais nas Forças Armadas

Paranoia. Bolsonaro e o general Heleno encomendaram arapongagem contra bispos brasileiros que colaboravam com a preparação do Sínodo.
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Às vésperas do aniversário de 60 anos do Golpe de 1964, o envolvimento de militares de alta patente em uma nova trama e tentativa de golpe, desta vez contra o presidente eleito Lula, evidenciou o que muita gente já sabia: parte do comando das Forças Armadas brasileiras continua a agir com agenda própria, de costas para o interesse da maioria dos brasileiros ou das camadas mais carentes da população.

A operação da Polícia Federal e a postura firme do Supremo Tribunal Federal em identificar os líderes da trama golpista significam o fim da tradição de impunidade contra militares, ferida ainda não cicatrizada em seis décadas? O que a denúncia significará na já difícil relação do Executivo com as Forças Armadas?

Para responder essas e outras perguntas, CartaCapital conversou com Manuel Domingos Neto, doutor em História pela Universidade de Paris e autor do livro O Que Fazer Com o Militar? Anotações para uma nova Defesa Nacional.

CartaCapital: Desde seu início, o governo Lula buscou construir pontes com os militares, mas essa relação sempre foi tensa. Após a operação da Polícia Federal, algo mudará? haverá uma mudança?

Manuel Domingos Neto: Não creio. Lula lhes concede o que nunca tiveram: além da total liberdade de formular as diretrizes da Defesa Nacional, sólido amparo material. As reações poderão vir dos que não estão no serviço ativo, ou seja, não tem a responsabilidade de conduzir os empreendimentos em curso. O atual governo não mostrou disposição para alterar as orientações da Defesa Nacional e, consequentemente, reformar instituições militares ineptas para dizer não ao estrangeiro hostil e aptas ao controle da sociedade. O militar continua pautando o governo em matéria de Defesa. O ministro José Múcio assume com todas as letras sua condição de “representante” das Forças Armadas, abdicando da condição de integrante da corrente política sufragada nas urnas.

Difícil imaginar homens arrogantes e truculentos, como Heleno e Braga Netto resignando-se ao cárcere

CC: É possível dizer que o setor golpista nas altas patentes das Forças Armadas foi neutralizado? Sua influência no “chão da caserna” permanece?

MDN: Tenho dificuldade para identificar este “setor golpista”. A unidade política e ideológica prevalece talvez como em nenhum outro momento da história republicana. Há, certamente, os mais afoitos, mas o conjunto esteve predisposto a endossar os comandantes, que operaram objetivamente no açulamento do movimento antidemocrático. O exemplo mais evidente foi a admissão dos acampamentos diante dos quartéis. Todos os comandantes de unidade prevaricaram, no mínimo.

CC. Tudo o que aconteceu no governo Bolsonaro, culminando nas invasões do 8 de Janeiro, revelou como ainda é forte nas Forças Armadas uma espécie de “espírito da ditadura”. Como se livrar dessa assombração?

MDN: Precisamos de uma reforma militar, que deve ser orientada por uma nova política de Defesa. Mudando as diretrizes da Defesa, a reforma virá fatalmente. Por exemplo, a prioridade ao inimigo externo terá diversas consequências, sendo a primeira delas a redução da Força Terrestre. Haveria uma redistribuição territorial dos efetivos. Um esforço de autonomia operacional implicaria em maiores investimentos em armas e equipamento de fabricação própria. Apenas com reformas estruturais os militares deixarão de exaltar o golpe de 64. A supressão do conceito de “inimigo interno” seria o primeiro passo neste sentido. Aí, a iconografia castrense seria revisada. Tiradentes seria mais importante do que Caxias.

Todos os comandantes de unidade prevaricaram

O atual governo assegura a continuidade de práticas corporativas que garantem a priorização do combate ao “inimigo interno” em detrimento da capacidade de dizer não ao potencial agressor estrangeiro. O Brasil continua sustentando extensas fileiras terrestres e evitando priorizar sua capacidade aeronaval; persiste sem instrumentos de força para respaldar decisões soberanas em política externa. As Forças Armadas brasileiras continuam integrando oficiosamente o vasto esquema militar comandado pelo Pentágono.

CC: Até que ponto o fato de o Brasil jamais ter julgado os crimes da ditadura contribuiu para o 8 de Janeiro? Você acredita que a tradição de “varrer para debaixo do tapete” será quebrada desta vez?

MDN: A tradição de impunidade, sem dúvida, estimulou os golpistas. Agora, essa investigação pode tomar rumos surpreendentes. Está mais difícil botar pano quente. Os comandantes sabiam da impossibilidade de sair incólumes depois da aventura em que se meteram ao apadrinhar Bolsonaro e respaldar seus desmandos. Afinal, atuaram em favor da prisão de Lula e confraternizaram com baderneiros reunidos diante dos quartéis. Em sua trágica aventura, envolveram o conjunto das corporações.

Mas nada garante que o jogo de cena em curso se desenvolva de forma exitosa. Os oficiais hoje investigados aceitarão ser punidos solitariamente, preservando a imagem das fileiras? Eis uma hipótese remota, se considerarmos a conduta do coronel Mauro Cid, que forneceu elementos preciosos aos investigadores. Difícil imaginar homens arrogantes e truculentos, como os generais Augusto Heleno e Braga Netto resignando-se ao cárcere.

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