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Tiro no pé

O PT acomodou-se na relação com a mídia, deixando o caminho livre para a extrema-direita nas redes, alerta João Feres Júnior

Bolsonaro sabe como se comunicar com a sua base eleitoral – Imagem: Marcos Corrêa/PR
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O que mudou no jogo político um ano após Jair Bolsonaro deixar o poder? Na avaliação do cientista político João Feres Júnior, coordenador do Monitor da Extrema Direita e do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública da Uerj, o bolsonarismo não sofreu grandes abalos após o “Mito” ser desalojado do Palácio do Planalto ou mesmo depois de ficar inelegível, pois a espinha dorsal do movimento, a indústria de fake news, continua operando a todo vapor. Nesta entrevista à repórter Fabíola Mendonça, o especialista analisa o comportamento dos bolsonaristas no primeiro ano de Lula, faz críticas ao PT por não enfrentar a máquina da desinformação e discute o futuro da extrema-direita.

CartaCapital: Que análise o senhor faz do movimento bolsonarista ao término de 2023, um ano após a saída de Jair Bolsonaro da Presidência?
João Feres Júnior: O bolsonarismo continua forte e organizado, porque conseguiu preservar a sua estrutura de comunicação. Ele consegue, a partir de um centro, comunicar narrativas que passam para pessoas apoiadoras em toda a sociedade. A gente não sabe direito como isso funciona, inclusive a missão do meu trabalho é desvendar esse aspecto. Mas a difusão de fake news para essa base está tão forte quanto no período da campanha. A única diferença é que a central da desinformação, o “gabinete do ódio”, estava enraizada no Poder Executivo, mobilizando funcionários do aparato estatal. Isso foi desmontado, mas não feriu de morte esse sistema de comunicação. Ao contrário, eles conseguiram montar canais alternativos.

CC: Como os bolsonaristas lidaram com a derrota de Bolsonaro?
JFJ: Lidaram mal, tanto os radicais quanto os moderados. Acham que ele foi vítima de perseguição política, inclusive ao ser declarado inelegível por oito anos. Nesse aspecto há um consenso. Ambos os grupos se irmanam na percepção de injustiça.

CC: A indústria das fake news sofreu algum abalo pós-eleições?
JFJ: Pelo relatório do “Observatório de Redes”, no qual a gente monitora o debate político no Instagram e no Facebook, a indústria das fake news não perdeu o poder, continua funcionando de maneira eficaz. Neste trabalho, a gente escolhe um assunto e vê como foi a reação dos bolsonaristas. Na eleição da Argentina, para citar um exemplo, eles se agarraram à narrativa mentirosa de que o governo Lula havia doado 1 bilhão de dólares para Sergio Massa na tentativa de impedir a vitória do Javier Milei. É uma distorção (o Brasil apoiou a concessão de um empréstimo à Argentina pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina e a decisão foi mantida após a vitória de Milei), mas os bolsonaristas deitaram e rolaram, ganharam grande visibilidade nas redes. Mesmo quando as notícias são favoráveis ao governo Lula, eles alimentam narrativas negativas e ganham o debate. Ganham na interação, eles sempre estão na frente. As narrativas do governo têm efeito quase nulo. Os bolsonaristas contam, inclusive, com a ajuda da mídia, utilizam notícias para produzir as suas próprias interpretações dos fatos.

CC: Como os bolsonaristas estão vendo o primeiro ano do governo Lula?
JFJ: Olhando pela perspectiva do Monitor da Extrema Direita, vemos uma certa divisão. Os bolsonaristas convictos, mais radicais, não reconhecem virtude alguma do governo Lula. Tudo o que é feito está errado. Já os moderados conseguem reconhecer um ou outro acerto do governo. A repatriação dos brasileiros que estavam em Gaza, por exemplo, foi vista como uma coisa positiva. O que parece separar convictos e moderados é o hábito de consumir notícias, esta é a minha hipótese. Os radicais só consomem informações políticas de canais bolsonaristas, não apenas nas redes sociais, mas também na Record, na Jovem Pan, em canais da mídia tradicional que também são bolsonaristas.

CC: Como foi a reação dos bolsonaristas ao 8 de Janeiro?
JFJ: Os moderados não apoiaram o vandalismo. Os convictos dizem que o quebra-quebra foi uma armação da esquerda.

Os meios de comunicação tradicionais também ajudam a construir narrativas para o bolsonarismo

CC: E a inelegibilidade de Bolsonaro?
JFJ: Ambos acham que o Bolsonaro é vítima de perseguição política, mas os moderados sempre dizem que, se há acusações, elas precisam ser investigadas. Os moderados têm uma postura antipolítica mais acentuada que a dos convictos. Se todo político é ladrão, Bolsonaro também pode ser. É uma turma mais lavajatista.

CC: Isso se manteve nas denúncias sobre a apropriação das joias sauditas?
JFJ: Para os convictos, não há ilegalidade, essa coisa das joias é uma trama da esquerda para derrubar Bolsonaro. Os moderados se dividem: alguns não veem problemas, outros dizem que precisa investigar.

CC: E a eleição do Milei na Argentina?
JFJ: Os convictos o enxergam como um aliado, um parceiro, um irmão do Bolsonaro. Os moderados têm uma posição mais cautelosa em relação a ele.

CC: O bolsonarismo chega forte para eleger um grande número de aliados nas eleições municipais do próximo ano?
JFJ: Sim. Boa parte do espectro político partidário percebeu que Bolsonaro tem uma capacidade de angariar votos muito grande. A direita brasileira sempre teve um problema sério de apelo popular. Conseguia ganhar algumas eleições, mas precisava modular o discurso. Bolsonaro ofereceu, para a direita brasileira, uma narrativa moralista, ultrarreacionária e conspiracionista. Pode parecer um absurdo total, um amontoado de baboseiras e mentiras, mas funciona, rende muitos votos.

CC: Qual o futuro da extrema-direita? Terá vida longa?
JFJ: Não acredito na longevidade da extrema-direita. Primeiro, por ter uma doutrina antissocial que instiga o conflito. Hoje, é a esquerda que tem um projeto de pacificação. Mas, no curto e médio prazo, eles têm combustível para queimar, sobretudo por sua notável capacidade de comunicação. Como o governo Lula não fez nada significativo para combater isso, a extrema-direita continua aí. O PT voltou ao poder e acomodou-se na relação com a mídia. Eles acham que a cobertura não está tão negativa como esteve nos tempos da Lava Jato, do impeachment de Dilma Rousseff. Acho que isso é um tiro no pé, porque os meios de comunicação tradicionais não apenas tem a sua própria agenda econômica, bastante distinta daquela do governo, como também ajudam a construir narrativas para o bolsonarismo. O PT comunica-se com as pessoas por meio de políticas públicas, o que é maravilhoso. Mas nem sempre isso funciona, é preciso explorar outros caminhos.

CC: Qual seria o melhor antídoto?
JFJ: É preciso combater o bolsonarismo no âmbito da comunicação, que é a espinha dorsal desse movimento. Bolsonaro construiu uma rede de comunicação independente da grande mídia. Chegou a hostilizar a toda poderosa Rede Globo. O bolsonarismo não é um movimento social clássico. Eles atuam na opinião pública, que depois se consolida e gera um efeito eleitoral. Eles não precisam fazer manifestações ou piquetes. As últimas mobilizações de rua do bolsonarismo foram pífias, mas eles quase venceram no voto. •

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.

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