Política
Tiro no pé
A declaração xenófoba de Romeu Zema é um erro político e histórico, diz João Azevedo, governador da Paraíba


Governador da Paraíba no segundo mandato e presidente do Consórcio Nordeste desde o fim do ano passado, João Azevedo não poupa críticas ao colega Romeu Zema, de Minas Gerais, que, em mais uma declaração xenófoba, comparou o Nordeste e o Norte a “vaquinhas que produzem pouco” e recebem um tratamento privilegiado, em detrimento do Sul e Sudeste. Em entrevista às repórteres Fabíola Mendonça e Marina Verenicz, no programa Direto da Redação, Azevedo considerou um tiro no pé a declaração de Zema. Segundo ele, o discurso não está à altura de Minas Gerais. A íntegra da entrevista pode ser assistida no canal do YouTube de CartaCapital.
Zema e Minas
A declaração é extremamente preocupante para um gestor, um governador de um estado com a história de Minas Gerais. Acho que não foi à altura do próprio estado. A tradição de Minas na política é completamente diferente. Pregar o separatismo, a hegemonia de uma região sobre outra, é desconhecer a necessidade de se empenhar para que o Brasil cresça de forma única, unida, e para que a gente consiga, ao contrário do que Zema disse, fazer com que as diferenças regionais impostas pelo modelo de desenvolvimento possam ser minimizadas. O governador demonstra desconhecimento do processo de desenvolvimento do País e do que o Nordeste verdadeiramente produz. Alguns têm a falsa ideia de que o Nordeste é aquele de 50 anos atrás, da seca permanente, das frentes de emergência. A região não é mais assim, tem um potencial enorme e tem crescido de forma extremamente importante na sua infraestrutura. Se você analisar a malha viária do Nordeste, é muito maior do que aquelas do Sudeste e do Sul, proporcionalmente em termos de atendimento. O PIB do Nordeste de 2019 a 2022 cresceu mais que o do Brasil e o do Sudeste e Sul. Entendemos que a declaração ainda é resquício do resultado das eleições do ano passado. Zema tenta marcar uma posição política para se credenciar a uma futura disputa eleitoral. Não quero crer que outros governadores do Sul e Sudeste tenham a mesma leitura. Torço para que esta seja uma posição isolada de alguém com interesse de se projetar politicamente, de tentar agradar a um segmento da direita e da extrema-direita.
Preconceito e xenofobia
Em 2019, criamos o Consórcio Nordeste para fazer com que experiências exitosas entre os estados pudessem ser compartilhadas e, nos momentos difíceis, pudéssemos nos unir ao País, unir a região, em defesa dos interesses dos nordestinos. O maior exemplo foi durante a pandemia, quando a unidade gerou resultados importantes para a população, tivemos o menor índice de letalidade do Brasil. Quando você toma como exemplo uma vaca que produz mais, que produz menos, e você leva essa comparação para um povo, para uma região, é absolutamente xenofóbico e preconceituoso. Não podemos estimular a disputa nesse nível. Foi uma declaração desnecessária, não constrói absolutamente nada.
Tiro no pé
Existe um grupo que pensa dessa forma, que tem preconceito em relação ao Nordeste. Mas faço uma leitura, depois de ver tudo que se passa na mídia e nas redes sociais: foi um tiro no pé. Ele não conseguiu a adesão imaginada ao fazer uma declaração tão preconceituosa. Estimulo o Sul e Sudeste a formarem um consórcio, mas sem esse lampejo separatista. Queremos que os consórcios de todas as regiões se reúnam em torno daquilo que é importante e possa fazer bem à população.
Os estados do Sul e do Sudeste “foram beneficiados com recursos públicos” ao longo das décadas
Privilégios
O Brasil teve 32 presidentes do Sul e do Sudeste. Por causa disso, os estados dessas regiões receberam mais recursos públicos, em detrimento de outras regiões. Se os recursos tivessem sido distribuídos de forma igualitária, não teríamos hoje essas diferenças regionais. É uma obviedade. São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro foram, toda a vida, beneficiários de recursos públicos para ter o desenvolvimento atual. Não há de nossa parte nenhuma intenção de reescrever a história do desenvolvimento do Brasil. Você não volta no tempo. Entretanto, é possível adotar um modelo de desenvolvimento que considere o Nordeste como parte do processo e não como um problema. O Nordeste, por todo o seu potencial de geração de energia eólica e solar, na relação do turismo, na industrialização, na infraestrutura, tem demonstrado elevada capacidade de geração de emprego, renda e produção. A região tem quatro grandes portos operando fortemente.
Reforma tributária
A reforma tributária prevê a criação de um Fundo Regional de Desenvolvimento. E aí vem a discussão sobre a partilha desse fundo, em que os estados do Sul e Sudeste querem também entrar na distribuição dos recursos. Ora, o fundo está sendo criado e pensado para que, por meio das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste, possamos diminuir as diferenças que a história toda gerou. A reforma tributária precisa acontecer para o País como um todo, começar a se desenvolver em números e porcentuais iguais aos de outras nações. Com a atual legislação tributária, fica muito difícil. Precisamos aproveitar a reforma para minimizar essa diferença que existe entre as regiões. A alegação de que no Sul e Sudeste também tem pobreza, claro, é verdadeira, mas também é nessas regiões que estão as maiores dívidas públicas deste país. O Sul e o Sudeste receberam investimentos por parte de bancos de desenvolvimento em porcentuais que ultrapassam 80%, em detrimento das outras regiões, que receberam menos de 20%. É esta a história que precisamos recolocar nos trilhos, para termos ideia do verdadeiro desenvolvimento de um país, e não apenas de uma região. Enquanto existirem essas diferenças regionais tão acentuadas, este país não será justo para o seu povo e vamos viver sempre nessa condição de não conseguirmos promover desenvolvimento adequado para todos. A reforma tributária vai permitir que todos recebam investimentos, não agora, porque a reforma não tem efeito imediato. Vai ter efeito quando eu nem mais for governador, mas sei da importância para o futuro deste país. •
Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tiro no pé’
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