Justiça
STF: Do ‘perdoar sem condenar’ os militares de 64 aos alertas contra anistia ao 8 de Janeiro
Para o cientista político Rodrigo Lentz, o Judiciário optou historicamente por medidas autoritárias sem perceber que sofreria as consequências


“Só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos é capaz de sobreviver”: essas foram as palavras do ministro Cezar Peluso, então presidente do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de 2010 em que a Corte rejeitou um pedido da Ordem dos Advogados do Brasil para rever a Lei da Anistia, de 1979.
O objetivo da OAB era anular o perdão a agentes do Estado (policiais e militares) acusados de praticar atos de tortura na ditadura militar. Por 7 votos a 2, o STF negou a solicitação — ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Ayres Britto.
Mais de 14 anos depois, nesta quinta-feira 14, o atual presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, criticou a articulação de parte do mundo político para anistiar golpistas envolvidos no 8 de Janeiro de 2023. “Querem perdoar sem antes sequer condenar”, disse o magistrado na abertura da sessão plenária. Foi exatamente isso o que fez o Supremo com os militares que cometeram crimes na ditadura, afirmou a CartaCapital o professor de Ciência Política Rodrigo Lentz, pesquisador do Instituto Tricontinental e conselheiro da Comissão de Anistia.
Barroso e Alexandre de Moraes dispararam nesta quinta contra a possibilidade de perdoar os crimes contra a democracia, um dia depois de a Praça dos Três Poderes ser palco de mais um atentado. Francisco Wanderley Luiz, ex-candidato a vereador pelo PL de Jair Bolsonaro em Rio do Sul (SC), detonou uma série de artefatos na área em frente ao STF e morreu no local.
“Historicamente, há uma tendência dos ministros de optar por medidas autoritárias sem perceber que depois sofrerão as consequências na pele”, avalia Lentz. “O STF deu a interpretação de constitucionalidade da Anistia de 1979, que perdoou sem condenar os militares da ditadura.”
O cientista político explicou haver três sentidos principais para o instrumento da anistia na história brasileira:
- democrático: quando há um perdão aos condenados de forma arbitrária por um Estado autoritário;
- de impunidade: quando na transição de regimes os agentes do Estado que cometeram crimes no exercício autoritário do poder estatal se autoanistiam; e
- de moeda política: quando há uma formação de alianças entre as elites políticas em torno de uma ideia de pacificação, conforme as correlações de forças do momento.
Em alguns precedentes históricos, como o da anistia de 1979, os três aspectos se misturam. No caso de um eventual perdão aos participantes do 8 de Janeiro, por outro lado, não haveria o componente democrático. Entre os investigados está Bolsonaro, na condição de possível autor intelectual dos ataques.
“Vemos uma mistura da moeda política, com uma composição entre elites, e a busca de autoanistia de uma série de agentes do Estado, incluindo o ex-presidente”, enfatiza Lentz. Para ele, uma consequência direta do fato de o Brasil não ter punido militares é a permanência de uma cultura autoritária que normaliza atos antidemocráticos de forças estatais e da própria sociedade, sob o manto da certeza de impunidade.
Atos golpistas de 8 de Janeiro de 2023. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Com as explosões desta quarta, porém, seria possível cravar o enterro do projeto de lei que anistia os personagens do 8 de Janeiro?
“A economia vai ditar pra que lado essa possibilidade vai andar”, arrisca Rodrigo Lentz. Conforme essa visão, portanto, a conjuntura política se sobrepõe à repulsa imediata ao atentado.
Existe, por fim, um obstáculo no caminho dos golpistas que não houve na anistia pós-ditadura: o Supremo.
“É muito difícil quando chega ao Judiciário — e agora, de novo, foi na direção do Judiciário — que os seus membros aceitem um pacto de não agressão em troca de impunidade dos que têm sido os seus algozes. Desta vez, parece ser menor a chance de uma de pactuação em torno de um grande acordo de impunidade em relação ao 8 de Janeiro.”
Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes, os mais poderosos ministros do STF no momento, parecem confirmar essa projeção.
Disse o presidente da Corte logo após repudiar a tentativa de perdoar antes de condenar: “A gravidade do atentado de ontem nos alerta para a preocupante realidade de que persiste no Brasil a ideia de aplacar e deslegitimar a democracia e suas instituições, numa perspectiva autoritária e não pluralista de exercício do poder, inspirada pela intolerância, pela violência e pela desinformação. Reforça também, e sobretudo, a necessidade de responsabilização de todos que atentem contra a democracia”.
Moraes, relator das principais investigações sobre ataques à democracia, foi ainda mais direto ao discursar em um evento do Ministério Público: “Não existe possibilidade de pacificação com anistia a criminosos. Nós sabemos, e vocês que atuam no Ministério Público sabem, que um criminoso anistiado é um criminoso impune, e a impunidade vai gerar mais agressividade, como gerou ontem”.
A investigação sobre o atentado de quarta-feira está a cargo da Polícia Federal, a exemplo dos inquéritos sobre o 8 de Janeiro, as Fake News e as Milícias Digitais. É da PF, ainda, a responsabilidade pela apuração, já em fase de conclusão, sobre a conspiração para impedir a posse de Lula (PT). Também neste caso, após as prováveis denúncias da Procuradoria-Geral da República, caberá ao STF, Moraes à frente, a decisão sobre perdoar ou não os golpistas.
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