Política
Sopro de esperança
Cinco anos após a bárbara execução a tiros, uma delação revela detalhes sobre o cerco a Marielle Franco


Em 22 de fevereiro, a Polícia Federal passou a investigar o assassinato de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, por ordem do ministro da Justiça, Flávio Dino. À época, o crime estava prestes a completar cinco anos sem qualquer pista sobre os mandantes. Cinco meses depois do reforço nas apurações, uma reviravolta no caso reaviva as esperanças de familiares e amigos da vereadora executada a tiros. Após notar uma mudança de comportamento do ex-PM Élcio Queiroz, preso há quatro anos por envolvimento no crime, agentes federais o convenceram a fazer uma delação, na qual ele confessa ter dirigido o Cobalt usado na emboscada, para que o comparsa Ronnie Lessa efetuasse os disparos com uma submetralhadora Heckler & Koch MP5, roubada meses antes do paiol do Bope.
Segundo o delegado Jaime Cândido, o delator topou falar após a revelação de que a PF encontrou rastros de uma pesquisa feita por Lessa na internet, dois dias antes do crime, para descobrir o endereço de Marielle e outras informações pessoais. Lessa havia jurado ao comparsa que não teria cometido um erro tão crasso, capaz de fazer ruir qualquer alegação de inocência em juízo. Além disso, a mulher do atirador, Elaine Lessa, mudou a versão apresentada à polícia e negou que o marido e seu amigo estavam em casa no início da noite de 14 de março de 2018, quando Marielle foi morta. Não bastasse, os repasses mensais de Lessa para custear o advogado e auxiliar a família de Queiroz foram escasseando com o tempo. As mentiras e promessas não cumpridas foram determinantes para o rompimento do pacto de silêncio dos assassinos, que se conheciam há mais de 30 anos.
Com a perspectiva de uma condenação certa, Queiroz topou confessar o envolvimento na trama para gozar dos benefícios de um acordo de cooperação com a Justiça, entre eles a possibilidade de redução da pena. As informações passadas contribuíram para recompor todos os passos do duplo homicídio, do planejamento à ocultação de provas. Só faltou revelar o mandante, mas sobre isso a polícia também recebeu uma pista preciosa.
O pacto de silêncio dos assassinos foi rompido, deixando pistas para a polícia descobrir o mandante
Queiroz acusa Maxwell Simões Corrêa, conhecido como Suel, de ter participado do planejamento do crime. O ex-bombeiro teria feito campanas para investigar os hábitos da vereadora e foi o condutor de um veículo usado numa emboscada anterior. Uma pane ocorrida em seu carro levou, porém, ao adiamento da execução do plano. Desconfiado, Lessa achou que o comparsa havia inventado a história da falha mecânica para se esquivar da tarefa, razão pela qual escalou Queiroz para a missão de dirigir outro automóvel clonado para matar Marielle. O convite teria sido feito no Réveillon de 2018.
No dia do crime, após receber instruções por um aplicativo que destrói as mensagens logo após a visualização do receptor, o delator dirigiu-se à casa de Lessa, no Condomínio Vivendas da Barra, o mesmo onde vivia o então deputado Jair Bolsonaro. Queiroz deixou seu carro na garagem, com os aparelhos celulares da dupla no seu interior. Com o carro pessoal do anfitrião, ambos se dirigiram a um local nas imediações do condomínio, onde havia um veículo clonado à espera, o Cobalt usado na execução de Marielle.
Ao anoitecer, com o automóvel estacionado próximo à Casa das Pretas, onde Marielle participava de um ato político, Lessa começou a se preparar. Pediu ajuda a Queiroz para passar ao banco de trás sem sair do veículo – o atirador tem uma perna amputada e usa prótese. Na sequência, vestiu um casaco preto, tirou a metralhadora de uma bolsa, colocou o silenciador na arma e passou a monitorar o movimento com o auxílio de binóculos.
Proteção. Moro colocou a PF para investigar o porteiro do condomínio de Bolsonaro – Imagem: Carolina Antunes/PR
Os criminosos esperaram Marielle entrar no carro, na companhia do motorista e da jornalista Fernanda Chaves, única sobrevivente da emboscada. Iniciou-se uma perseguição a distância, com momentos de hesitação até o bote final. Finalmente, Lessa deu a ordem para emparelhar o veículo. “Eu só escutei a rajada. Começaram a cair umas cápsulas na minha cabeça e no meu pescoço. Ele falou ‘vambora’. Eu nem vi se acertou quem, se não acertou” , relata Queiroz na delação.
Após o crime, eles fugiram em direção à casa da mãe de Ronnie Lessa, no bairro do Méier. O atirador entregou a bolsa com a metralhadora ao irmão e pediu que ele providenciasse um táxi. De lá, os criminosos foram para um bar na Avenida Olegário Maciel, na Barra da Tijuca. Entre os amigos que aguardavam a dupla, estava Maxwell, que disse a Queiroz saber que eles haviam concluído o plano, pois a mídia não parava de noticiar a morte de Marielle. Beberam até as 3 da madrugada e, depois, retornaram à casa de Lessa no Vivendas da Barra. Ali, o delator afirma ter recebido mil reais do comparsa – não pelo pagamento do crime, e sim como “ajuda de custo”.
Ao comentar a operação da PF, que resultou na prisão de Maxwell e no cumprimento de mandados de busca e apreensão em vários endereços, o ministro da Justiça esclareceu que as cláusulas do acordo de cooperação estão sob sigilo, mas acrescentou que o delator segue preso. “Há uma espécie de mudança de patamar da investigação”, avaliou Dino. “Se conclui a investigação sobre a execução e há elementos para um novo patamar, a identificação dos mandantes. Nas próximas semanas, provavelmente haverá novas operações derivadas das provas colhidas hoje.”
Sobre o mandante propriamente dito, a delação traz uma única pista: Queiroz diz que o homicídio foi encomendado ao sargento da PM Edimilson Oliveira da Silva, conhecido como Macalé, que depois confiou a missão a Lessa. O enrosco é que Macalé não pode confirmar a história, pois foi executado a tiros em 2021, em Bangu, na Zona Oeste do Rio. Anexos sigilosos da delação podem, porém, conter informações sobre outros intermediários.
Como ministro de Bolsonaro, Moro nada fez para esclarecer o crime. Seu único feito foi coagir testemunha
Esta não é a primeira queima de arquivo do caso. Em 2020, Adriano da Nóbrega, apontado como chefe do Escritório do Crime, bando de pistoleiros de aluguel que atuam na Zona Oeste do Rio, foi abatido em um cerco policial no interior da Bahia. Suspeito de ter autorizado a morte da vereadora, o ex-agente do Bope chegou a ser condecorado, em 2005, com a medalha Tiradentes pela Assembleia Legislativa do Rio, por recomendação do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, que também empregou, em seu gabinete, a mãe e a então companheira do policial que virou miliciano.
Com seu costumeiro oportunismo, o senador Sergio Moro tentou explorar o episódio em benefício próprio. “A colaboração premiada, apesar de demonizada pelo PT, revelou as roubalheiras na Petrobras durante o governo Lula, e agora é invocada pelo PT para confirmar o que já sabíamos, que Lessa é o suspeito do assassinato de Marielle. Espero que cheguem no mandante e mordam a língua”, disse à Folha de S.Paulo. Primeiro, o ex-juiz foi confrontado pelo grupo Prerrogativas, a lembrar que Queiroz não foi coagido a delatar ninguém e tampouco ganhou a liberdade assim que assinou o acordo. Da mesma forma, emendam os juristas, a versão do delator é corroborada por diversas provas colhidas pelos investigadores, o que nunca foi o forte da Lava Jato, como atestam os numerosos casos anulados pela Suprema Corte.
Os agentes da PF localizaram, por exemplo, o registro do pedido feito por Denis Lessa, irmão do atirador, em uma cooperativa de táxi por volta das 21h48 – 18 minutos após o crime. Imagens em poder da Delegacia de Homicídios comprovaram ainda um “balanço anormal” no Cobalt identificado nas imediações da Casa das Pretas, a reforçar a alegação de que Lessa passou do assento do carona para o banco traseiro naquele momento.
Diversos parlamentares lembraram ainda que a única contribuição de Moro, como ministro da Justiça, foi coagir Alberto Jorge Ferreira Mateus, o porteiro do condomínio onde moravam Bolsonaro e Lessa. O funcionário havia dito à Polícia Civil do Rio que Queiroz chegou ao Vivendas da Barra, horas antes do crime, dizendo que iria à casa 58, do ex-presidente. Uma pessoa identificada como “Seu Jair” teria liberado a entrada. Imediatamente, Moro ordenou que a PF abrisse um inquérito contra o porteiro, e não para desvendar a morte da vereadora. Ao cabo Mateus desmentiu o depoimento anterior, sob a alegação de ser induzido ao erro por policiais fluminenses. •
Publicado na edição n° 1270 de CartaCapital, em 02 de agosto de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sopro de esperança’
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