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Sinal de alerta

O governo faz consulta ao TCU para descumprir piso da Saúde em 2023 e evitar gasto de 18 bilhões de reais

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Promessa. A partir do próximo ano, o repasse à Saúde será integral, diz Ceron – Imagem: Davidyson Damasceno/IGESDF e Diogo Zacarias/MF
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Nos últimos sete anos, o PT foi enfático ao atacar a Emenda Constitucional 95, conhecida como Lei do Teto de Gastos, aprovada em 2016 pelo governo de Michel Temer. A regra fiscal congelava os serviços públicos por 20 anos, desrespeitando os pisos constitucionais da saúde e da educação, limitando a correção do repasse à variação da inflação do ano anterior. Nesse período houve redução de mais de 20 bilhões de reais no orçamento do Ministério da Saúde, segundo dados do Conselho Nacional de Saúde, contabilizando mais uma perda de 70 bilhões de reais entre 2018 e 2022. Apesar de o teto de gastos ter sido substituído pelo novo arcabouço fiscal que vigora desde o fim de agosto, é grande o risco de contingenciamento para a saúde em 2023.

A decisão está nas mãos do Tribunal de Contas da União, que analisa uma consulta feita pelo Ministério da Fazenda, a cogitar não cumprir as metas fiscais deste ano caso seja obrigado a repassar os 15% da Receita Corrente Liquida (RCL) para a saúde, conforme prevê a Constituição. No documento enviado ao TCU, a Fazenda coloca em dúvida sobre qual regime fiscal seguir no repasse deste ano para as duas áreas, embora o imbróglio no momento seja especificamente acerca da transferência para o SUS, uma vez que há recursos para cobrir os 18% da RCL para a educação. O governo alega que, com a sanção da Lei Complementar 200, que extingue a Emenda 95, “criaram-se complexidades relativas ao processo de execução orçamentária no exercício de 2023”, e que, mesmo com o fim do teto de gastos, ainda não “está incidindo, de forma plena e efetiva, o novo Regime Fiscal Sustentável, o qual terá início prático apenas no exercício seguinte de 2024”.

“O gasto atual da educação já está no piso, o da saúde está um pouco abaixo, teria de complementar. A lei orçamentária vigente foi construída sob o regime do teto de gastos e com um determinado valor para a saúde. E isso não mudou, não tem dentro dela orçamento previsto para o cumprimento de um piso para a área neste ano”, explica Rogério Ceron, secretário nacional do Tesouro. “A discussão que fica é o que fazer quando algo assim acontece, faltando quatro meses para o fim do exercício. Aplica-se ou não a nova regra? E se aplicar, sobre qual base, a receita efetivamente ocorrida ou o que está previsto na peça orçamentária? Essas dúvidas precisam ser esclarecidas”. Segundo o secretário, a partir de 2024 o piso constitucional voltaria a ser seguido.

“A lei orçamentária vigente foi construída sob o regime do teto de gastos”, justifica o secretário do Tesouro

Na consulta ao TCU, o governo reforça que o Regime Fiscal Sustentável só entrou em vigor a partir do fim de agosto e, portanto, “terá início efetivo e se aplicará, de forma integral” apenas em 2024. Classificou como transição o hiato existente entre os dois regimes fiscais, ou seja, o período que vai da data da promulgação da nova regra fiscal e o fim do presente exercício financeiro. “Transcorreram oito meses sob um regime, faltavam quatro meses para terminar o ano quando foi aprovado o arcabouço. Mesmo que se considere a nova lei, ela só está sendo válida para quatro meses do exercício? Conta de forma proporcional? Como é que se faz o cálculo desse complemento? São dúvidas razoáveis que precisam ser esclarecidas. Até para não haver depois questionamentos aos integrantes de governo”, pondera Ceron.

A consulta feita pelo Ministério da Fazenda tem sido interpretada como manobra do governo Lula para driblar o piso constitucional e manter, pelo menos este ano, as regras da Emenda 95 para o SUS. Para o pesquisador José Noronha, professor da Fiocruz e membro da Comissão de Orçamento do Conselho Nacional de Saúde, não resta dúvida quanto ao regime a ser seguido. “Com a aprovação do novo arcabouço, desapareceu o teto de gastos, obrigando, automaticamente, a União a cumprir a Constituição e gastar com a saúde 15% da receita corrente líquida do exercício”, diz o pesquisador, ressaltando que a arrecadação não é estanque, pode ser maior ou menor no decorrer do ano. O orçamento atual do Ministério da Saúde é de 170 bilhões de reais e, com a derrubada da EC 95, haveria um acréscimo de 18 bilhões de reais, totalizando 188 bilhões de reais. “O Conselho Nacional da Saúde quer também que sejam incluídos mais 2 bilhões de reais de restos a pagar, referentes a despesas de anos anteriores.”

O CNS, inclusive, divulgou uma nota questionando a União por tentar burlar a Constituição. Cobra da gestão Lula coe­rência com o programa apresentado na campanha eleitoral. “O atual governo federal demonstrou compromisso com a saúde da população antes mesmo de tomar posse, articulando com o Congresso Nacional um acréscimo de recursos superior a 20 bilhões de reais para o orçamento do Ministério da Saúde de 2023, em comparação à proposta originalmente apresentada pelo governo anterior em agosto de 2022, valor esse calculado a partir da regra constitucional de 15% da Receita Corrente Líquida do respectivo exercício financeiro, que estava suspensa naquela oportunidade pela Emenda Constitucional 95/2016”, diz um trecho da nota.

Empenho. Cotado para o STF, Bruno Dantas quer pautar logo o tema no TCU – Imagem: Arquivo/TCU

Segundo o Ministério da Fazenda, repassar 15% da RCL este ano para a Saúde vai comprometer o regime fiscal sustentável, a prever um crescimento real da despesa que pode variar entre 0,6% e 2,5% acima da inflação, limitado a 70% da variação real da receita apurada no exercício anterior. Se o TCU decidir pelo cumprimento do piso, o governo precisará recorrer a um crédito extra ou contingenciar outras áreas do governo. Líder do governo na Câmara, o petista Zeca Dirceu, relator do Projeto de Lei Complementar que trata da compensação da União a estados e municípios, incluiu na proposta um jabuti, que autoriza a União a repassar para a Saúde um valor inferior ao piso constitucional. O parlamentar incluiu na matéria um artigo que fixa a RCL prevista na Lei Orçamentária, sancionada em janeiro, como a referência para o piso da Saúde em 2023.

A receita para este ano foi estimada em 1,138 trilhão de reais, e 15% desse montante daria 170,76 bilhões, valor maior que os 147,9 bilhões de reais previstos na regra do teto de gastos, mas 18 bilhões a menos do que prevê a Constituição. “Se você utilizar essa regra do Zeca Dirceu, vai gastar uns 4 bilhões a 5 bilhões de ­reais a mais, mas bem abaixo do piso constitucional. A alegação é de que, como o orçamento foi definido antes que o teto de gastos tivesse caído, então você tem de avaliar aquilo que seria receita corrente líquida prevista naquela época”, explica o pesquisador Pedro Paulo Zahluth,­ professor e coordenador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp. O pesquisador admite ser difícil o governo cumprir a meta fiscal neste ano, mesmo que não receba autorização para não repassar os 15%.

“Alguma coisa tem de mudar, porque matematicamente é incompatível o regime fiscal sustentável e os pisos constitucionais da Educação e da Saúde, bem como a política de aumento do salário mínimo”. Segundo Zahluth, esses gastos tendem a crescer acima de 70%, o que poderia comprometer o repasse para outras áreas e o próprio custeio da máquina pública.

“Isso tem um custo político muito grande, mas é um dilema inevitável. Ou você elimina o piso ou elimina a regra de expansão do salário mínimo, ou ainda, claro, elimina o próprio regime fiscal sustentável”, salienta o professor da Unicamp, apontando como alternativa forçar o Congresso Nacional a elevar receitas para evitar uma interrupção na máquina, uma espécie de shutdown. Recentemente, a área técnica do TCU considerou não haver risco de colapso nas contas públicas, caso o governo tenha de cumprir o piso constitucional da Saúde e da Educação. Cabe ao ministro Augusto Nardes apresentar um relatório em resposta à consulta do governo, mas o presidente Bruno Dantas – um dos nomes cotados para assumir a vaga de Rosa Weber no STF – trabalha para que o caso seja votado o quanto antes em plenário, e o parecer seja favorável ao governo.

Com o teto de gastos, o Ministério da Saúde perdeu 70 bilhões de reais de 2018 a 2022

O coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e professor da Faculdade de Educação da USP Daniel Cara considera a iniciativa da União uma contradição em relação ao programa do governo Lula aprovado nas urnas, com o que foi discutido na transição governamental e, principalmente, com a história do PT e do campo progressista. “Os pisos da Saúde e da Educação jamais foram questionados por governos de caráter democrático, é a primeira vez que isso acontece. Esse questionamento só ocorreu em governos autoritários ou ilegítimos, como Bolsonaro e Temer.”

Ex-deputado federal e professor do Departamento de Educação da UFPE, Paulo Rubem Santiago diz que, ao cogitar não pagar o piso para a Saúde este ano, o governo federal pretende agradar ao mercado financeiro, transferindo renda da sociedade para acumulação do capital. “Isso significa que tivemos uma vitória eleitoral e o Bolsonaro, uma derrota. Agora, se a ideia do governo vigorar, Bolsonaro, Paulo Guedes e o mercado sairão vitoriosos.” Os especialistas dizem que, caso o TCU dê o aval para o não cumprimento do piso constitucional, abre-se um precedente para os anos seguintes. Heleno Araújo, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, mostra-se preocupado e cobra mais investimento para o setor.

“Temos uma demanda na área da educação muito alta ainda, com mais de 9 milhões de analfabetos, 74 milhões de pessoas com 18 anos ou mais que não conseguiram concluir a educação básica, 1,8 milhão que está fora da escola, e dos que estão dentro muitos não conseguem permanecer. Você tem uma evasão escolar alta e, para a gente manter esses estudantes nas aulas, precisa de uma escola equipada e em boas condições. Além do mais, temos aí estados e municípios descumprindo a lei do piso. Toda uma situação que não só exige uma boa aplicação dos recursos existentes, mas também requer mais recursos. O governo federal continuar limitando a aplicação do piso significa não garantir ou não colocar uma perspectiva de tempo para garantir o direito à educação para todas as pessoas”, salienta Araújo. •

Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sinal de alerta’

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