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O esquema de muamba do casal Bolsonaro e de assessores militares deixa rastros por todos os lados

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Imagem: Isac Nóbrega/PR
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Por volta das duas da tarde do dia 30 de dezembro de 2022, véspera do fim do mandato, Jair Bolsonaro deixou o Brasil em um avião da Força Aérea rumo à cidade de Orlando, na Flórida. Uma hora e meia antes, no aeroporto de Brasília, do qual decolaria no mesmo voo, o tenente-coronel do Exército Mauro ­Cesar ­Barbosa Cid emitiu do próprio celular um cartão de vacinação no nome do capitão, no qual constava uma injeção da ­Janssen contra a Covid. O cartão baseava-se numa mentira: Bolsonaro não tinha sido vacinado. Cid era o principal ajudante de ordens da Presidência e havia articulado a inserção de dados falsos no sistema do SUS, razão de sua prisão preventiva há três meses. Inserir dados falsos em um sistema público é crime, com pena de 2 a 12 anos de prisão. Antes de ir ao aeroporto, Bolsonaro fez a última transmissão ao vivo na web como chefe da nação. Disse ter procurado “uma saída para isso daí”, mas não tinha obtido “apoios”. A “saída”, estava claro, era impedir a posse de Lula. A viagem livrou-o de passar a faixa ao sucessor, mas não só.

No voo, o capitão levou consigo joias recebidas de presente ao longo do mandato e esta é uma das razões para a Polícia Federal pedir a quebra dos sigilos bancário e fiscal do ex-presidente e da esposa, Michelle. Quando um agente público se apropria de bens e valores sob sua guarda por força do cargo comete crime de peculato. Pena de 2 a 12 anos de cadeia. A coleção de presentes que Bolsonaro recebeu no poder e poderia usar em um acervo presidencial privado continha 1.055 itens. O inventário tinha sido concluído na semana anterior à viagem para Orlando. O responsável pelo serviço foi o então chefe da área de documentação histórica da Presidência, Marcelo da Silva Vieira, capitão da reserva da Marinha. Em 21 de dezembro, Vieira mandou o inventário a Marcelo Costa Câmara, coronel da reserva do Exército lotado no gabinete de Bolsonaro e um dos assessores escolhidos pelo capitão para a equipe de oito funcionários à sua disposição como ex-presidente. Nas 46 páginas do documento não consta a expressão “pedras preciosas”, segundo interlocutores da CPI do 8 de janeiro, destinatários no mês passado de uma cópia da papelada.

Cid, o ajudante de ordens, não parece afeito ao papel de bode expiatório – Imagem: Pedro França/Ag. Senado

A CPI prepara uma devassa na vida do tenente-coronel Cid, em razão da suspeita de ele ser uma espécie de caixa de Bolsonaro. Na condição de, digamos, tesoureiro, poderia ser uma peça da engrenagem que financiou a tentativa de golpe de 8 de janeiro. A pedido da senadora Eliziane Gama, relatora da comissão parlamentar, foram quebrados os sigilos bancário e fiscal de Cid. E, por iniciativa do senador Jorge Kajuru, suplente, o Coaf, órgão federal de combate à lavagem de dinheiro, enviou um relatório sobre movimentações financeiras suspeitas do oficial. CartaCapital teve acesso a alguns desses documentos. O Coaf apontou como atípica, entre outras operações, uma remessa de 70 mil dólares feita por Cid para os Estados Unidos em janeiro deste ano. Relatou ainda duas transferências realizadas por um sargento do time de Cid na Presidência, Luís Marcos dos Reis, uma de 89 mil, de 11 de novembro de 2022, outra de 38 mil, de 16 de junho de 2022. Nos dados enviados pela Receita, vê-se, Cid realizou gastos no cartão de crédito de 20 mil por mês, em média, em 2020, de 23 mil em 2021 e de 32 mil em 2022. Sem ter renda declarada para tamanha despesa. Seu salário era de 21 mil reais.

As descobertas da CPI contribuem para complicar a situação de Cid, enrolado no capítulo “joias”. Seu novo advogado, recém-nomeado, tem repetido que o tenente-coronel apenas cumpria ordens. A existência e o sumiço das joias dadas a Bolsonaro e Michelle despontaram no noticiário em 3 de março deste ano. Soube-se, por meio de O Estado de S. Paulo, que o almirante Bento Albuquerque, então ministro de Minas e Energia, havia participado de um evento na Arábia Saudita em outubro de 2021, trouxera na bagagem mimos dados pela realeza local a Bolsonaro e os escondera da alfândega. Era um kit da marca ­suíça Chopard, com um anel, uma caneta, um par de abotoaduras, um rosário islâmico e um relógio. O kit permaneceu em um cofre do ministério até novembro de 2022, quando foi enviado à Presidência. E estava no avião da FAB que levou Bolsonaro à Flórida em 30 de dezembro, de acordo com a PF. Homens da confiança do capitão tentaram vendê-lo em 8 de fevereiro deste ano, por 120 mil dólares, por meio de uma empresa de Nova York, a Fortuna Auctions. O leilão online fracassou. E era ilegal.

A PF considera mirabolante a versão do advogado Wassef para justificar a recompra do Rolex negociado nos EUA – Imagem: Pedro França/Ag. Senado e Redes sociais

Em 5 de março, Vieira enviou para Cid uma mensagem com informações sobre a Lei 8.394. A lei em questão é de 1991 e define regras sobre o “acervo presidencial privado”, presentes, honrarias e que tais recebidos pelo mandatário no poder e passíveis de ser guardados como registro histórico de seu governo. Estabelece que os acervos são de interesse público e fazem parte do patrimônio cultural do País. No caso de venda, o Estado brasileiro tem preferência na aquisição e o direito de opinar sobre uma transação para o exterior. Escapam à regra itens de uso personalíssimo, como alimentos e roupas, que podem ser utilizados livremente pelo mandatário, conforme uma decisão de 2016 do Tribunal de Contas da União. No embalo do noticiário sobre as joias, o TCU determinou a Bolsonaro a devolução do kit Chopard, chamado pela PF de “kit ouro rosé”. O que aconteceu em 24 de março. Foi tudo entregue à Caixa Econômica Federal.

Em 4 de abril, Bolsonaro devolveu outro conjunto de joias por ordem do mesmo TCU. Um kit batizado pela polícia de “ouro branco”, composto de um anel, um par de abotoaduras, um rosário islâmico e um relógio da marca Rolex, presente da monarquia saudita em outubro de 2019. Essa devolução deu mais trabalho, como se verá adiante, e requereu a intervenção do advogado de todas as horas do clã Bolsonaro, Frederick Wassef, conforme as investigações da Operação Lucas 12:2, realizada pela PF em 11 de agosto para apurar uma organização criminosa formada para que Bolsonaro ficasse com os presentes de forma indevida.

A recompra do “kit ouro branco”, com a participação de Frederick Wassef, é uma das inúmeras trapalhadas

O “kit ouro branco” tinha sido dividido antes da venda. O relógio, um Rolex, foi negociado em junho de 2022, nos Estados Unidos. À época, Bolsonaro havia viajado a Los Angeles, a fim de participar da Cúpula das Américas organizada por Joe Biden. Cid, seu braço direito, acompanhou-o. Mas não voltou ao Brasil com a comitiva presidencial. Ficou nos EUA para cumprir a missão de vender o relógio do “kit ouro branco”. A venda ocorreu em 13 de junho, a uma empresa chamada Precision Watchs, na cidade de Willow Grove, no nordeste dos Estados Unidos. Cid conseguiu 68 mil dólares pelo Rolex e por um segundo relógio, da marca Patek Philipe, presente recebido por Bolsonaro do reino do Bahrein, em novembro de 2021. O dinheiro foi depositado na conta do pai de Cid, o general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, segundo investigações da Polícia Federal. O general é amigo de Bolsonaro, os dois foram colegas de academia militar nos anos 1970. Em seu primeiro ano no poder, o capitão nomeou o amigo para comandar o escritório da Apex, a agência de promoção de exportação, em Miami, capital da Flórida. Cid pai permaneceu no posto durante todo o governo Bolsonaro. Em 28 de fevereiro deste ano, o capitão esteve na casa do general em Miami. A julgar por mensagens de celular do filho do general, o ex-presidente desejava pegar de volta o kit Chopard de 120 mil dólares, cujo leilão tinha fracassado 20 dias antes. Não conseguiu, pois o material “está lá ainda (na Fortuna em Nova York)”, relatou Cid filho em 1° de março a Marcelo Câmara.

Em outra mensagem de celular ao coronel Câmara, de 18 de janeiro deste ano, Cidinho revela que Cidão guardava dinheiro possivelmente de Bolsonaro. “Tem vinte e cinco mil dólares com meu pai. Eu estava vendo o que que era melhor fazer com esse dinheiro, levar em ‘cash’ aí. Meu pai estava querendo inclusive ir aí falar com o presidente (…) E aí ele poderia levar. Entregaria em mãos. Mas também pode depositar na conta (…). Eu acho que quanto menos movimentação em conta, melhor né? (…)”. O teor da mensagem e a preocupação de Cid de evitar o sistema financeiro são pistas de possível lavagem de dinheiro, crime que prevê de 3 a 10 anos de cadeia. O ilícito inicial por trás da “lavagem” seria o possível “peculato” de Bolsonaro: embolsar joias pertencentes ao Estado.

Cid pai, Câmara e Crivelatti, todos militares, participaram do desvio das joias que pertencem ao Estado – Imagem: Roberto Oliveira/Alesp,  Redes sociais e Mario Poirier/Ministério da Defesa do Canadá

No mesmo 18 de janeiro de 2023, Cid sacou 6 mil dólares da conta do pai, aquela pela qual entraram os 68 mil dólares dos dois relógios. É uma conta mantida no BB Americas, instituição subsidiária do Banco do Brasil nos EUA. A PF achou o recibo do saque, juntamente com um maço de 2 mil dólares em dinheiro vivo, no cofre da casa do tenente-coronel, ao realizar uma operação em 3 de maio, a Venire, sobre fraude no cartão de vacina de Bolsonaro. A apuração sobre o cartão de vacina permitiu ao delegado Fábio Alvarez Shor obter mais pistas sobre o que ele chama de “organização criminosa” por trás da negociação das joias. Cometer crime em bando é um ilícito que dá de 3 a 8 anos de detenção. Na operação de maio, a PF prendeu Cid em caráter preventivo e encontrou em sua casa, em um computador, fotos do presente que os asseclas de Bolsonaro tentaram vender sem sucesso (o kit Chopard) e dos dois relógios negociados (o Rolex e o Patek Philippe).

Na ocasião, os federais descobriram ainda um comprovante de saque de 35 mil dólares de uma conta do tenente-coronel nos Estados Unidos. A retirada aconteceu em 27 de março deste ano. Coincide com os esforços bolsonaristas para remontar e devolver ao Brasil o “kit ouro branco”. O conteúdo do kit, exceto o relógio, foi recuperado pelo tenente-coronel em uma loja de Miami, a Goldie’s, de acordo com descobertas da PF. O relógio foi reavido por Wassef na mesma loja que o havia adquirido em Willow Grove, a Precision. O advogado era um dos alvos da operação policial de 11 de agosto, mas a PF não o achou naquele dia. Wassef seria encontrado na quarta-feira 16, em um restaurante, e teve o celular apreendido. Horas antes, tinha dito publicamente que comprara o relógio por iniciativa e dinheiro próprios, sem o pedido de ninguém. E que viajara aos EUA, em março, de férias.

Assim como a PF, o ministro Dino não vê motivo para prender Bolsonaro. Ainda – Imagem: Marcelo Camargo/ABR

Cid acaba de trocar de advogado e as primeiras declarações de seu novo defensor prenunciam dissabores para Bolsonaro. O tenente-coronel, diz o criminalista Cezar Bitencourt, era “assessor” e que “assessor cumpre ordens”, traço reforçado se o indivíduo em questão é militar e preza a “obediência hierárquica”. “É exatamente essa obediência a um superior militar que há de afastar a culpabilidade dele”, afirmou a O Globo na quarta-feira 16. Cid, parece, não quer mais pagar o pato sozinho. Recorde-se o caso do cartão de vacinas. Ao depor à PF em 16 de maio, Bolsonaro disse não saber nada a respeito do documento forjado pelo auxiliar. Não sabia o motivo de o tenente-coronel ter agido e não tinha solicitado o cartão. Dois dias depois, o militar silenciou ao depor também, ou seja, nem assumiu a culpa nem incriminou o ex-chefe. Parecia querer ganhar tempo e buscar uma saída. O tempo aparentemente acabou, no embalo de suas enrascadas.

Vem delação premiada por aí? Na PF há quem diga não haver interesse em um acordo, pois as provas contra Cid são suficientes e será difícil acreditar naquilo que eventualmente venha a dizer. Aliás, também se comenta que não se deve esperar uma prisão iminente de Bolsonaro, em caráter preventivo. O diretor da corporação, Andrei Rodrigues, tem dito em reuniões nas superintendências estaduais que os investigadores, em qualquer caso, precisam ter responsabilidade e se ater à qualidade das provas. Pelo modus operandi do ex-presidente, de deixar seus comandos nas entrelinhas (“vocês sabem o que têm de fazer”), não é provável uma prova do tipo “batom na cueca”, não apenas no caso das joias e do cartão de vacinas, mas na tentativa de golpe em 8 de janeiro. Ou seja, será preciso esperar o curso normal das investigações policiais, uma eventual acusação por parte do Ministério Público e um julgamento. O ministro da Justiça, Flávio Dino, faz análise parecida. Embora em entrevistas recentes tenha apontado a “materialidade dos crimes”, Dino não vê “ainda” razões para a detenção do capitão.

A PF não cogita, por ora, a prisão preventiva de Bolsonaro, apesar da “materialidade” dos crimes

Michelle também foi atrás de um advogado. Contratou o criminalista Daniel Bialski, atual defensor da deputada Carla Zambelli. O delegado Shor queria vasculhar os pertences da ex-primeira-dama juntamente com a turma do esquema das joias na operação de 11 de agosto, mas o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, não deixou. Ainda. A ex-primeira-dama tem motivo para se preocupar. As investigações da PF encontraram pistas contra ela. Em 13 de fevereiro deste ano, o coronel Câmara mandou uma mensagem a Cid: “Já sumiu um que foi com a dona Michelle”. Referia-se a algum presente que o casal Bolsonaro havia recebido e embolsado.

Na véspera do voo de 30 de dezembro para Orlando, um integrante da equipe de Cid na Presidência, o sargento da Marinha Jairo Moreira da Silva, tinha viajado a São Paulo com a missão de tentar reaver um pacote de joias cujo conteúdo era avaliado em 16 milhões de reais. O material estava na alfândega do aeroporto de Guarulhos desde outubro de 2021. Havia sido apreendido pela Receita Federal na mochila de um assessor do almirante Albuquerque. Recorde-se: o então ministro de Minas e Energia entrara no País com um kit Chopard escondido para Bolsonaro, mas a mochila do assessor havia sido vasculhada. Ao saber da revista no subordinado na alfândega, Albuquerque foi aos fiscais para tentar desembaraçar o presente. “Isso tudo vai entrar para a primeira-dama”, disse na ocasião, conforme registro de uma câmera de segurança do aeroporto. O sargento Silva não conseguiu botar a mão no pacote. A julgar pela data, supõe-se que Bolsonaro desejava levá-las para Orlando no dia seguinte. Elas foram entregues pela Receita Federal à PF em abril deste ano.

Eliziane Gama, relatora da CPI dos Atos Golpistas, pediu a quebra dos sigilos fiscal e bancário de Cid. Kajuru, suplente, obteve um relatório do Coaf com as movimentações do tenente-coronel – Imagem: Jéssica Marschner

Depois das operações de maio (cartão de vacinas) e de 11 de agosto (joias), a PF tem celulares, documentos e conteúdos de computador de quatro dos oito servidores escolhidos por Bolsonaro para assessorá-lo como ex-presidente e pagos com verba pública: Câmara, Osmar Crivelatti, Max Moura e Sérgio Cordeiro. Os quatro são militares (Moura é da PM) e haviam ocupado cargos no Palácio do Planalto. Maus presságios para o ex-presidente. E um escândalo para as Forças Armadas. Não à toa, o Exército fará na terça-feira 22 um pregão para contratar uma pesquisa sobre a própria imagem perante os brasileiros.  •

Publicado na edição n° 1273 de CartaCapital, em 23 de agosto de 2023.

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