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Sem trégua

Acioli Cancellier conta a saga por justiça no caso do irmão Luiz Carlos, reitor vitimado pelo lavajatismo

Perserveranca. Acioli (esq.) espera que o despacho do TCU enfim permita a reparação à imagem do irmão, batalha que a família trava há seis anos, desde o suicídio do ex-reitor – Imagem: Pipo Quein/Ascom/UFSC e Acervo Pessoal
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Na manhã de 17 de setembro de 2017, a delegada da Polícia Federal Érika Marena, integrante da Lava Jato e ex-assessora do então ministro da Justiça Sergio Moro, comandou a Operação Ouvidos Moucos. A investigação deteve o ex-reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos ­Cancellier e seis outros professores sem qualquer prova. Além deles, 23 servidores foram indiciados. Mais de cem policiais, helicópteros e viaturas cercaram a universidade e a residência de Cancellier, nas proximidades. Para justificar o estardalhaço, Marena afirmou que a PF agia com responsabilidade e não faria tal pedido se não tivesse “a convicção de sua necessidade”. O ex-reitor foi levado de camburão à Penitenciária da Agronômica, na capital catarinense, onde permaneceria por 36 horas em uma cela na área de segurança máxima. Por determinação da juíza Marjorie Freiberger, que substituiu a magistrada que autorizou a operação, Janaína Cassol, Cancellier acabaria liberado da prisão. Tarde demais. A humilhação o levaria a cometer suicídio 18 dias depois. O acadêmico saltou do último piso de um shopping conhecido de Florianópolis. Em um dos bolsos, um bilhete, espécie de testamento: “A minha morte foi decretada quando fui banido da universidade”.

Passados quase seis anos do trágico desfecho, a verdade começa a vir à tona. O Tribunal de Contas da União concluiu na terça-feira 11, por unanimidade, que o ex-reitor não cometeu nenhuma irregularidade. “Esta manifestação (do TCU) emociona, alegra e dá esperança de que outras supostas irregularidades investigadas pela Ouvidos Moucos se revelem sem fundamento”, afirma Acioli ­Cancellier, irmão do ex-reitor na entrevista a seguir. “Lutamos para que a morte de Luiz ­Carlos não caia no esquecimento.”

‘Não imaginávamos a intensidade do sofrimento ‘do Cau

CartaCapital: Como o senhor recebeu a decisão do TCU?
Acioli Cancellier: Esta manifestação emociona, alegra e dá esperança de que outras supostas irregularidades investigadas pela Operação Ouvidos Moucos se revelem sem fundamento. Que, finalmente, a inocência do meu irmão e outros indiciados seja oficialmente reconhecida. Sempre tive essa certeza. Nenhum deles teve direito ao amplo processo de ­defesa. Foram presos sem ser ouvidos. Poucas horas após a detenção, o site da Polícia ­Federal anunciava que haviam desbaratado uma quadrilha que assaltou a universidade. Atribuíam desvios de 80 milhões de reais, o que não foi comprovado ser real. O montante apurado pelo TCU como passível de irregularidade era de 3 milhões. Desse total, na gestão do meu irmão foi movimentado apenas 9% desse valor. O restante, mais de 90%, era de responsabilidade de outras duas gestões. Mas só ele foi levado à prisão e à morte, sem acusação individualizada, qualificada ou mesmo clara aos advogados.

CC: A Polícia Federal, em algum momento, fez contato com a família?
AC: Nunca.

CC: Poucos dias após a morte do seu irmão, o senhor entregou ao então ministro da Justiça, Torquato Jardim, uma representação, na qual questionava os métodos utilizados pela PF. Qual foi o resultado?
AC: Para ser mais preciso, entreguei a representação contra a delegada da Polícia Federal, Érika Marena, condutora da Operação Ouvidos Moucos, em 31 de outubro de 2017, mas nunca obtive resposta. Por fonte próxima ao Ministério da Justiça soube que a representação foi analisada pelo Corregedor da Polícia Federal em Santa Catarina e este inocentou a delegada. Segundo o corregedor, a operação nada teve de irregular, uma vez que os procedimentos foram os mesmos de outras operações semelhantes no âmbito da Lava Jato.

CC: Nesses quase seis anos, o que a família buscava?
AC: De 2017 até hoje, além da referida representação, a família nada fez de concreto. Não abrimos nenhum processo. O que sempre buscamos foi não permitir que sua morte caísse no esquecimento. Usamos todos os meios para manifestar nossa confiança na inocência de nosso irmão e, sobretudo, confiança de que justiça, ainda que tardia, seria feita.

Regozijo. A delegada Marena, nas conversas com Dallagnol, não escondia a satisfação. “Talvez a gente tenha uma Lava Jato da educação” – Imagem: Luis Macedo/Ag. Câmara e Universidade Federal de Sergipe

CC: Os amigos e colegas descreviam seu irmão como um homem tranquilo, alegre e muito equilibrado. A que o senhor atribui a decisão do suicídio?
AC: Tranquilo, alegre, equilibrado e, sobretudo, prestativo, pacífico, homem de diálogo e solidário. Essas eram as qualidades mais destacadas do meu irmão. O gesto eu credito a uma dor imensa, insuportável, de ser acusado de roubar a universidade que ele amava e ser dela banido como se enxota um animal peçonhento. Cito o poeta romano Juvenal: “Considero como maior infâmia preferir a vida à honra”.

CC: Na semana anterior, os senhores estiveram juntos. Chegou a perceber algum desequilíbrio emocional?
AC: Passei os últimos sete dias de sua vida com ele, em Florianópolis, e notei claramente que estava abalado com o turbilhão. De uma hora para outra, o professor querido, o reitor respeitado, o amigo de todas as horas, ficou isolado, afastado do cargo, banido da universidade e impedido de se comunicar com os amigos mais próximos, todos da UFSC. Ele estava calado, reflexivo. Nem as atividades que eu propunha, como passeios pela ilha, assistir a filmes na tevê ou longas conversas, nada o deixava alegre. Por certo escondeu a dor que o consumia para não nos preocupar. Só não imaginávamos a intensidade desse sofrimento.

CC: Em algum momento o senhor nutriu algum sentimento de vingança, ódio?
AC: No primeiro momento, após a tragédia, fui tomado por uma raiva intensa, figadal, que clamava aos céus por vingança. Mas, ao longo desses quase seis anos que nos separam daquele fatídico 2 de outubro, absorvi o espírito pacífico e conciliador de meu irmão. Também fui impregnado daquela que era uma de ­suas maiores virtudes, como grande jurista que foi, em acreditar na Justiça e no Estado de Direito. Hoje, o que me move é a absoluta confiança na inocência do meu irmão e a busca pelo reconhecimento oficial de que agentes públicos exacerbaram em suas prerrogativas e cometeram erros que contribuíram para a morte dele.

“O que me move é a absoluta confiança na inocência do meu irmão”

CC: A Operação Ouvidos Moucos nasce de uma denúncia anônima. A delegada da PF elaborou um relatório com mais de cem páginas e encaminhou à Justiça. A juíza Janaína Cassol autorizou o seu início. O senhor acredita que possa ter havido, a exemplo da Operação Lava Jato, em Curitiba, um conluio entre a PF, o Ministério Público e o Judiciário?
AC: Não posso e não quero ser leviano. Não tenho formação nem conhecimento jurídico para insinuar conluio entre essas instituições, pelas quais, aliás, tenho muito respeito. Mas nesses últimos anos foram reveladas verdades inconvenientes e relações nem um pouco republicanas a envolver agentes desses mesmos órgãos em operações semelhantes, como a Lava Jato. Prefiro aguardar as apurações do Ministério da Justiça em cooperação com a UFSC, Capes, TCU e Controladoria-Geral da União, para que se jogue luz também na Ouvidos Moucos.

CC: A imprensa divulgou notícias com evidências…
AC: Sim, de fato muito do que se sabe foi noticiado pela imprensa. Há situações nas quais parece haver indícios que os objetivos da Ouvidos Moucos podem ter sido traçados a partir de delírios de uma delegada e um procurador. Foram encontrados diálogos entre a delegada Marena e o ex-procurador Deltan Dallagnol, nos quais ela comenta e aponta suas motivações para tentar justificar a operação. Chegou a dizer que “podemos levar a Lava Jato para a educação”. Insinuou que havia “professores gerindo milhões para “gastos fantasmas”. No parecer recente, o TCU afirma não ter encontrado empresas fantasmas e julgou as denúncias improcedentes.

CC: À época, uma sindicância da PF concluiu que a delegada não teria cometido “nenhuma irregularidade” no processo de prisão dos acusados. O que o senhor espera da determinação do ministro Flávio Dino para apuração de possíveis práticas de abuso?
AC: No dia seguinte à manifestação do Tribunal de Contas, o ministro Flávio Dino declarou que, “com base na decisão do TCU sobre as alegações contra o reitor Luiz Carlos Cancellier, na próxima semana irei adotar as providências cabíveis em face de possíveis abusos e irregularidades na conduta de agentes públicos federais”. Estive com o secretário-executivo do ministério, Ricardo Capelli, e ele reafirmou a disposição em apurar essas responsabilidades. Entreguei uma cópia da representação feita em 2017, bem como um dossiê denso e muito bem fundamentado, de autoria de alguns professores presos em companhia do meu irmão. Espero que sejam de alguma valia.

CC: O que há no dossiê?
AC: Importantes informações, uma cronologia dos fatos e destaques para os abusos, para as acusações infundadas, baseadas em fake news. Tratava-se de questões administrativas inferentes à própria universidade e à Capes que jamais deveriam ter sido personalizadas, pois eram institucionais. Nem o reitor nem os professores tinham acesso aos recursos financeiros geridos por diversos coordenadores. O TCU entendeu essa questão em 2018, quando havia encerrado o processo contra o Cau e os professores presos.

Promessa. O ministro Dino quer levar a fundo a investigação contra os agentes de Estado responsáveis pela humilhação e morte de Cancellier – Imagem: Joedson Alves/ABR

CC: Qual o maior erro cometido pela PF?
AC: Na minha visão, o maior abuso foi deflagrar a operação sem ter ouvido os acusados. Eles teriam explicado o funcionamento do programa. Creio que, se toda essa arbitrariedade tivesse sido evitada, não haveria abuso de autoridade nem morte. O ministro Flávio Dino tem demonstrado imenso apreço pelo Estado de Direito e intolerância a quaisquer afrontas que possam atentar contra a democracia. Tenho absoluta confiança de que ele vai determinar as apurações da maneira mais legítima e adequada possível.

CC: Além do reitor, seis professores foram presos e 20 servidores indiciados. Qual é a situação deles?
AC: Todos ainda sofrem com o processo, com inúmeras consequências, de ordem moral, financeira e psicológica. Eles e seus familiares. Desejamos que, com a decisão do TCU, essa diligência avance e ponha fim a todo esse transtorno.

CC: O senhor esteve recentemente com o presidente Lula. Como foi a conversa?
AC: Desde a morte do Cau, passamos por dois governos cujos presidentes e ministros não mostraram interesse nem fizeram qualquer manifestação sobre a Operação Ouvidos Moucos. Inclusive um dos ministros do último governo, o da Justiça, foi o mentor dessas malfadadas operações midiáticas, punitivas e, segundo revelações recentes, eivadas de irregularidades. Fui recebido pelo presidente Lula em audiência no Palácio do Planalto. Ele reafirmou palavras de solidariedade e prometeu que seu governo, por meio das instâncias adequadas, tudo fará para investigar e punir os agentes que porventura cometeram irregularidades na operação. É admirável quando um governante, um chefe de Estado, apresenta desculpas públicas aos familiares e à sociedade pelos excessos cometidos contra um cidadão por agentes desse mesmo Estado. Desculpas não trazem as vítimas de volta nem reparam prejuízos materiais e psicológicos, mas recuperam a honra e confortam os familiares. •

Publicado na edição n° 1269 de CartaCapital, em 26 de julho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sem trégua’

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