Política
Sem clima
A Assembleia-Geral da ONU, assim como a reunião do G-20, nada produziu de concreto em relação à agenda ambiental


Diante dos atuais prognósticos do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas, que apontam aumento médio da temperatura de 2,4ºC a 2,6ºC para este século, é previsível a reação da comunidade acadêmica e setores progressistas da sociedade em busca de ações mais efetivas por parte dos governos. O verão mais quente da história no Hemisfério Norte está perto do fim, com tragédias na Líbia, Grécia, Eslovênia, Sudão e Hong Kong. Até o Brasil sofreu com eventos climáticos extremos durante o inverno, vide as inundações no Rio Grande do Sul.
A Assembleia-Geral da ONU movimentou Nova York. No último domingo, 17 de setembro, dezenas de milhares de ativistas realizaram a Marcha pelo Fim dos Combustíveis Fósseis pelas ruas centrais da cidade e em frente à sede das Nações Unidas. Pedem a Joe Biden e outros líderes globais, inclusive Lula, a interrupção das perfurações de petróleo e gás. Um dos pontos de reivindicação das manifestações era fazer cessarem os 7 trilhões de dólares de subsídios globais governamentais para combustíveis fósseis. A ex-presidente da Irlanda Mary Robinson afirmou: “Estamos subsidiando o que nos está destruindo”.
Lula foi aplaudido. Com discurso ponderado, enfatizou o novo protagonismo brasileiro em defesa da igualdade humanitária, do combate à fome, da paz entre as nações, de forma coerente com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Além disso, reafirmou a velha demanda dos países emergentes por reformas democráticas no Conselho de Segurança da ONU. Foi uma pena ter aportado em Nova York com a incômoda aposta do Programa de Aceleração do Crescimento, que prevê 273,8 bilhões de reais a projetos de petróleo e gás. O valor representa 61% dos 339,4 bilhões destinados à transição e segurança energética.
O clamor global tem fundamento. Desde 2021, cada novo poço de petróleo aumenta o perigo, pois já estaria fora das metas de aumento da temperatura em 1,5ºC previsto no Acordo de Paris. A postura de extração dos Estados Unidos, segundo um relatório da Oil Change, demonstra que a retórica de Biden sobre a contenção climática não se coaduna com a exploração prevista: um terço das iniciativas globais de extração até 2050.
Os protestos estenderam-se pelo Reino Unido, Alemanha, Senegal, Coreia do Sul, Índia e Bolívia, entre outros. Há também forte cobrança sobre a condução da COP28, em novembro, em Dubai, nos Emirados Árabes, coordenada por um alto executivo do setor petrolífero. Em Nova York, os bilionários fundos de investimento, como Black Rock e Citibank, também foram objeto de protesto, para que deixem de aportar recursos para o setor de combustíveis fósseis. As contradições notadas nos países emissores de gases de efeito estufa são uma mostra de quão arraigada é a cultura e o poderio econômico dos combustíveis fósseis e como será difícil eliminar seus efeitos nocivos.
O governo Lula anunciou seu plano de transição ecológica, depois de iniciar seu mandato prometendo à Argentina financiar, com dinheiro público do BNDES, o gasoduto de Vaca Muerta, na Patagônia Argentina, que vem comprovadamente degradando os territórios da etnia indígena Mapuche.
A guerra na Ucrânia monopoliza as atenções e deixa a urgência climática em segundo plano
No cenário de tanto clamor público foi indesculpável o esvaziamento da Assembleia-Geral da ONU e de sua Cúpula da Ambição Climática, com a ausência dos principais atores. O fato demonstra um mundo dividido pela ausência de paz. Paz, que é a própria gênese e essência da ONU. A guerra da Ucrânia catalisa as atenções e mobiliza prioridades geopolíticas que deixam de lado a própria sobrevivência da espécie humana, a biodiversidade e os ecossistemas vitais do planeta. Em razão dos impasses e desconfortos diplomáticos gerados pelo conflito, os presidentes de China, Rússia e Índia, países que figuram entre os maiores emissores de gases de efeito estufa, deixaram de comparecer à Assembleia-Geral. É imperdoável e causa atrasos políticos nas negociações previstas para novembro na COP28.
Não há como comentar os avanços no combate ao aquecimento global sem falar de um estado de paz entre as nações e a postulação histórica do Brasil sobre a reforma e democratização dos fóruns internacionais de decisão. É preciso considerar o princípio da proibição do uso da força nas relações internacionais que, como disse Lula, os próprios integrantes do Conselho de Segurança da ONU desrespeitam. Reza a Carta da ONU: “O uso das forças armadas por um Estado contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado, ou de qualquer maneira inconsistente com a Carta das Nações Unidas”.
De outro lado, as negociações multilaterais borbulham. O ministro da Economia, Fernando Haddad, que estimula uma agenda verde para captar recursos internacionais, citou, como exemplo de boa parceria, o anúncio da Petrobras e da WEG para a produção de aerogeradores de energia eólica. Também anunciou o lançamento de um sistema de taxonomia sustentável, ou seja, a identificação de atividades que possam ser classificadas por seus objetivos sustentáveis, retomando, portanto, a discussão sobre economia verde instalada a partir da Conferência Rio + 20.
Infelizmente, no âmbito das instituições financeiras brasileiras, nunca passou de uma carta de intenções. Um bom começo para a taxonomia sustentável do Brasil seria deixar de financiar o gasoduto de Vaca Muerta, assim como retirar imediatamente a proposta de exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas.
Haddad citou ainda a possibilidade de perdas para o agronegócio brasileiro, se este continuar no plano da desconformidade ambiental, diante das restrições do mercado internacional a produtos exportados obtidos à custa da degradação do meio ambiente. A Amazônia abriga 89 milhões de cabeças de gado, 40% do rebanho brasileiro. Entre 2018 e 2021 saíram, só das áreas griladas do Pará, nada menos que 91.238 cabeças de gado.
A Cúpula de Ambição Climática das Nações Unidas revela um mundo onde a ciência aponta a severidade futura do clima e os riscos envolvidos. A sociedade civil, consciente e atuante, clama por medidas seguras para o futuro da humanidade. Enquanto isso, o multilateralismo governamental continua dividido em ambições hegemônicas e mergulhado na omissão de posturas contraditórias. •
*Presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental.
Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sem clima’
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