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Seis por meia dúzia

Sem uma regra clara para distinguir usuários de traficantes, descriminalizar o porte de drogas para o consumo é inócuo

Foto: Fernando Frazão/ABR e Carlos Alves Moura/STF
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Com mais de 830 mil presos, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos EUA e da China. Um terço desse contingente foi condenado ou aguarda julgamento por tráfico de drogas. O mais grave é a seletividade no encarceramento. De acordo com o Anuário Brasileiros de Segurança Pública de 2022, 67,4% dos detentos são negros. Não por acaso, Guilherme ­Carnelós, presidente do Instituto de Defesa do Direito à Defesa, observa que o fenômeno também é fruto do racismo institucional. “Se um rapaz branco, num bairro de classe média, for flagrado pela polícia com uma pequena porção de droga, certamente ele será tratado como usuário. Já um rapaz negro, num bairro menos favorecido, pode até portar uma quantidade menor de drogas, mas tende a ser tratado como traficante”, explica o advogado, de forma didática. “Esse é o grande problema. Temos uma legislação que pune severamente o pequeno traficante, ainda que ele não esteja exatamente traficando.”

Não é difícil encontrar casos reais para comprovar o racismo envolvido na aplicação da Lei de Drogas. Em 2017, um homem de 37 anos foi preso com 130 quilos de maconha em Água Clara, Mato Grosso do Sul. Além da droga, a polícia encontrou uma pistola e 199 munições de fuzil. Branco e filho de uma desembargadora, ele passou pouco tempo preso. Colega da mãe, outro desembargador concedeu um habeas corpus para interná-lo em uma clínica psiquiátrica. A defesa alegou que o acusado, preso anteriormente por porte ilegal de armas, sofria de transtorno de borderline, que, segundo especialistas, não chega a comprometer a capacidade de discernir o certo do errado. Outro caso teve um tratamento radicalmente distinto. Em 2022, um jovem negro de 28 anos, preso por portar menos de 10 gramas de maconha, morreu no cárcere, vítima do ­Coronavírus, em Manhumirim, no interior de Minas Gerais. Em primeira instância, ele foi condenado a 5 anos e 4 meses de reclusão. A defesa do rapaz apresentou recursos ao Tribunal de Justiça, mas todos foram negados.

Hoje, as prisões em flagrante são determinadas por critérios subjetivos dos delegados

“O que a gente vê é um determinismo geográfico, onde se parte do pressuposto de que as pessoas que vivem em determinados locais são criminosas, ou potenciais criminosas, e, curiosamente, essas pessoas são, quase na totalidade dos casos, negras”, afirma Carnelós. Ao criminalizar o usuário, a Lei de Drogas também cria obstáculos para o tratamento dos dependentes, acrescenta o advogado. “A descriminalização de qualquer conduta que envolva a saúde pública propicia um diálogo mais aberto. Se a pessoa teme punição do Estado, ela não vai buscar tratamento.”

O Supremo Tribunal Federal agora tem a chance de modificar essa realidade. Na quinta-feira 1º, após o fechamento desta edição, a Corte deve retomar o julgamento sobre a possível descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal. O debate foi retomado pela ministra Rosa Weber em meados de maio, após oito anos de espera. Relator da proposta, Gilmar Mendes defende o fim da punição aos usuários de todas as drogas. Hoje, segundo o artigo 8 da Lei 11.343/06, as penas previstas incluem “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. Luís Roberto Barroso e Edson Fachin acompanharam o voto do relator, mas apresentaram algumas ressalvas. Para o primeiro, o STF deveria liberar apenas a maconha. Já o segundo sugeriu um limite de 25 gramas ou de seis plantas cultivadas para não ser considerado traficante.

O grande nó a ser desatado é justamente o critério para distinguir usuários de traficantes. Modificada em 2006, no primeiro mandato do presidente Lula, a Lei de Drogas não estabelece esse parâmetro, deixando à avaliação subjetiva do delegado a decisão de quem deve ou não ser preso em flagrante. Para José Henrique Rodrigues Torres, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, sem a definição de uma quantidade mínima de droga para caracterizar o narcotráfico, “seria mais eficiente a proibição dos flagrantes”, que empurram dezenas de milhares de réus primários para as cadeias sem haver sequer a análise de um juiz.

Redes sociais – Imagem: Guerra às drogas. As prisões seguem um “determinismo geográfico e racial”

“Para acabar com as injustiças, o ideal seria descriminalizar totalmente a questão das drogas, e passá-la para o âmbito do sistema preventivo”, avalia Torres. Isso significa acabar com a persecução penal e focar em políticas públicas de saúde e educação, por exemplo. A liberação irrestrita, acrescenta o magistrado, também pode favorecer o desenvolvimento de pesquisas científicas e o uso medicinal das drogas.

Ainda que essa discussão esteja distante do Executivo neste momento, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, já expressou sua opinião pessoal favorável à descriminalização para desafogar os presídios. “Temos de tratar isso como uma questão de saúde pública, como uma questão que não se resolve por meio do encarceramento, com prisão e com punição”, disse, em recente entrevista à BBC Brasil. “Temos de pensar seriamente nisso com responsabilidade, com cuidado. Mas eu acho que a guerra às drogas, a forma com que se combatem as drogas, causa um prejuí­zo irreparável na sociedade brasileira.”

Na avaliação de Simone Nacif, juíza titular da 1ª Vara Criminal de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, o principal ganho seria o acolhimento dos dependentes. “Na verdade, o usuário está praticando uma autolesão, que pode equivaler ao uso de cigarro ou de álcool. São substâncias nocivas à saúde, mas que não são criminalizadas”, sustenta. “Quem consome drogas não pode suportar nos ombros o ônus criminal de uma conduta que não fere a saúde pública, atinge somente a sua saúde pessoal.”

Integrante da Associação Juízas e Juízes para a Democracia, Nacif acredita que o STF tem uma “excelente oportunidade de contribuir para o fim do encarceramento em massa no Brasil”, desde que sejam definidos os critérios para distinguir usuários de traficantes. “Nas audiências, vemos diariamente pessoas pobres sendo processadas por tráfico de drogas, devido à posse de um único cigarro de maconha ou de uma trouxinha de cocaína. Com o estabelecimento de uma quantidade mínima de droga apreendida para configurar o narcotráfico, podemos perfeitamente tratar essas condutas de menor lesividade no âmbito da saúde pública, e não do direito penal.”

Especialistas alertam para o risco de flagrantes forjados, caso a quantidade de droga seja o único fator considerado

Na avaliação de Camilo Onoda Caldas, diretor do Instituto Luiz Gama, a decisão do STF, caso seja pela descriminalização, pode colaborar para que “essa lógica de encarceramento contínuo não permaneça como está”. E poderia afetar, inclusive, de forma retroativa pessoas que foram punidas como traficantes devido ao porte de pequenas quantidades de drogas. Mas o advogado diz ser fundamental a Corte estabelecer critérios objetivos para distinção de usuários e traficantes. Caso isso não aconteça, o efeito pode ser parecido ao da mudança da lei em 2006, que pretendia reduzir a população carcerária, mas produziu o efeito contrário. “As nuances de cada caso podem levar os juízes a encontrar fundamentos que façam com que preconceitos com relação à população negra aflorem.”

A advogada Carolina Diniz, da ONG Conectas, alerta, porém, para o risco de haver uma onda de flagrantes forjados caso o STF diferencie usuários de traficantes apenas pela quantidade de droga apreendida. “O trabalho de investigação precisa ser exigido por parte do Ministério Público, que tem a atribuição de fazer o controle externo da atividade policial.” A avaliação é compartilhada por Cristiano Maronna, secretário-executivo da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e autor do livro Lei de Drogas Interpretada na Perspectiva da Liberdade (Contracorrente). “O STF precisa definir um standard probatório necessário para condenação por tráfico de drogas que respeite a presunção de inocência e a regra do ônus da prova. Para condenar alguém por tráfico, é preciso provar que a droga se destinava à finalidade mercantil, e não ao uso pessoal.” •

Publicado na edição n° 1262 de CartaCapital, em 07 de junho de 2023.

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