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Racismo escancarado

Mais uma vez o deputado Renato Freitas precisa reagir à tentativa de cassarem seu mandato por banalidades

Por que o jovem parlamentar negro incomoda tanto? – Imagem: Valdir Amaral/Alep
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Jovem negro e periférico, o ­deputado estadual Renato Freitas, do PT, é alvo de novo processo disciplinar na Assembleia Legislativa do Paraná que pode abreviar a sua carreira política. Quando foi vereador de Curitiba, Freitas foi cassado duas vezes por ter participado de um protesto, dentro da Igreja do Rosário, em repúdio aos assassinatos do congolês Moïse Kabagambe no Rio de Janeiro e do repositor de estoques Durval Teófilo Filho em São Gonçalo – esse último executado por um sargento da Marinha que alega ter confundido o vizinho com um assaltante. À época, a Arquidiocese de Curitiba saiu em defesa do parlamentar, ponderando que a manifestação era justa e ocorreu somente após a realização de uma missa. Ainda assim, seus colegas o destituí­ram. Freitas só conseguiu concluir o mandato após obter duas liminares do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, para quem é “impossível dissociar o ato da Câmara do pano de fundo do racismo estrutural da sociedade brasileira”.

Agora, o parlamentar é alvo de uma reclamação no Comitê de Ética da Assembleia por declarações feitas na tribuna da Casa. Críticas e comentários banais, próprios da atividade legislativa. Nada que se aproxime das ofensas proferidas por um colega bolsonarista que chegou a acusá-lo, sem provas, de envolvimento com o PCC, a facção criminosa que controla os presídios paulistas e paranaenses. “É racismo, uma clara tentativa de me censurar”, reage Freitas. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida a CartaCapital na segunda-feira 10. A íntegra, em vídeo, está disponível no canal da publicação no YouTube.

CartaCapital: Qual é a desculpa da vez para pedirem a cassação de um parlamentar negro, eleito com os votos de quase 58 mil paranaenses?
Renato Freitas: Há uma sucessão de tentativas de cassar meu mandato já na Assembleia Legislativa. A primeira delas teve como propositor o secretário de Segurança Pública do Paraná, o coronel Hudson Leôncio Teixeira, que ficou conhecido na mídia pela leniência no trato com os bolsonaristas que bloqueavam as rodovias após as eleições de 2022. Quando critiquei na tribuna os elevados números de letalidade policial no estado, 483 mortes provocadas pela polícia no ano passado, um dado divulgado pelo próprio Gaeco, o grupo de combate ao crime organizado do Ministério Público Estadual, ele disse que eu estava ofendendo toda a categoria dos policiais e representou contra mim na Comissão de Ética.

Sem provas, Arruda acusou o colega negro de envolvimento com o crime organizado – Imagem: Pedro de Oliveira/ALEP

CC: Que fim levou essa acusação?
RF: Não prosperou, mas logo depois o ­deputado bolsonarista Ricardo Arruda, do PL, apresentou nova queixa contra mim, após eu ter desmentido as fake news que ele costuma falar na tribuna, entre elas a absurda acusação de que o vandalismo nas sedes dos Três Poderes, em Brasília, durante os atos de 8 de janeiro, foi obra de “petistas infiltrados”. À época, eu disse a ele, um missionário, que o Pai da Mentira é o mesmo que deseja a morte dos seres humanos, não é o Deus da Vida. Então Arruda alegou que, por eu ter mencionado o nome dele junto com a palavra morte na mesma frase, eu estava, em tese, ameaçando a vida dele. Uma maluquice. Chegou a registrar um boletim de ocorrência na delegacia, dizendo que eu era de comunidade, envolvido com o crime organizado, um drogado, e usou esse BO para pedir a cassação do meu mandato, sob a alegação de que meu comportamento era indecoroso. Esse pedido também não vingou.

CC: E agora, quais são os fatos ­imputados ao senhor?
RF: Agora, há um processo que passou pelo juízo prévio de admissibilidade. Em resumo, eles alegam que tive postura indecorosa por comentários feitos na tribuna. Dizem, por exemplo, que ofendi o governador do Paraná. De vez em quando, eu me refiro ao Ratinho Júnior e ao seu pai, o apresentador de tevê Ratinho, como “Rato Filho” e “Rato Pai”, mas esses são apelidos que eles próprios se apregoaram, não são obras da minha criatividade. Também incluíram declarações minhas apontando as recorrentes mentiras de Ricardo Arruda. O curioso é que esses debates menores justificaram o pedido de cassação do meu mandato não pelo parlamentar supostamente ofendido, até porque eu não disse nada demais. Quem falou barbaridades foi o deputado Arruda. Ele já me chamou, como se isso fosse demérito, de funkeiro e favelado. Mas também já me chamou de drogado, disse que tenho envolvimento com o crime, que eu era incapaz e o meu lugar não era aquele. Então o deputado Ademar Traiano, atual presidente da Assembleia Legislativa, em vez de encaminhá-lo à Comissão de Ética, preferiu mandar os dois, como se meus comentários fossem equivalentes, com sinal trocado, aos de Ricardo Arruda. Só que o processo contra mim é absolutamente inconsistente, caracteriza um abuso de poder do atual presidente. O objetivo é claro: me censurar.

“Muitos deputados se satisfazem com as acusações levianas de Ricardo Arruda. É uma forma de me deslegitimarem”

CC: Arruda o retrata como bandido por conta de 17 anotações criminais contra o senhor, mas a quase totalidade delas é por desacato ou desobediência à autoridade policial. Alguma vez o senhor foi condenado?
RF: Não apenas não sofri condenação alguma como essas anotações escancaram o racismo institucional nas forças de segurança do Paraná. Certa vez, a polícia abordou 16 pessoas numa praça, um único jovem carregava um cigarro de maconha, mas fui detido com ele. À época, eu não era vereador nem deputado, ficava à mercê dessas abordagens. Já tinha um alvo nas costas, por ser militante de causas sociais. Em outro episódio, resisti à violenta repressão a uma manifestação e carrego até hoje a marca do disparo de bala de borracha que um guarda municipal efetuou à queima-roupa (neste momento, Freitas mostra a cicatriz na mão esquerda). Já tomei tiro nas costas, fui diversas vezes agredido por policiais. E, claro, por ser advogado e mestre em Direito Penal, eu faço valer os meus direitos fundamentais, como o direito de ir e vir, e de permanecer em locais públicos. Por isso, tenho tantas anotações por desacato e desobediência.

CC: O senhor não sofreu qualquer condenação, mas o deputado Arruda o acusa de ter envolvimento com o crime organizado, com o PCC. É uma acusação grave. Como seus colegas na Assembleia se portam diante desse tipo de infâmia?
RF: Vivo num ambiente de hostilidade generalizada. Os deputados, de modo geral, se incomodam com a minha presença, porque sou voto vencido, mas não me calo. Fui um dos poucos parlamentares que resistiram, por exemplo, ao escândalo da venda da Copel, uma privatização repleta de irregularidades, e a outros conchavos políticos que acobertam casos de corrupção. Vim da Câmara Municipal já com essa fama, de quem incomoda os que estão no poder. E estes, por sinal, se satisfazem com as acusações levianas de Arruda. É uma forma de me deslegitimarem, atribuindo rótulos e estereótipos para me diminuir perante a sociedade.

Após o protesto na Igreja do Rosário, Freitas chegou a ser recebido pelo papa Francisco – Imagem: Malik Fotografia/Mandato Renato Freitas

CC: Em maio, o senhor foi o único passageiro retirado de uma aeronave no aeroporto de Foz do Iguaçu, para ser revistado pela Polícia Federal. O que motivou essa abordagem?
RF: Esse episódio foi de um racismo gritante. Faltavam poucos minutos para o meu embarque e passei rapidamente pela fila do raio X, mas reparei que uma funcionária do aeroporto ficou desconfiada, me olhou de cima a baixo. Ela pediu para eu passar novamente e a máquina não apitou. Então, ela me deixou passar, mas não tirou os olhos de mim. Deve ter achado que eu era traficante, sei lá. Quem é negro sabe muito bem o que significa aquele olhar. Entrei no avião, guardei minha mochila e já estava acomodado, quando um comissário me informou que havia policiais federais na porta do avião. Fui até eles, preocupado em perder meu voo. Só fiz questão de registrar a abordagem em vídeo com meu celular. Os agentes fizeram uma revista completa, eu com as mãos na nuca, as pernas abertas. Quem é preto como eu sabe como é, temos pós-graduação em tomar geral. Quando um deles viu os meus documentos, se espantou: “O senhor é ­deputado?” Depois disso, repetiu umas cinco vezes que a abordagem era “aleatória”.

CC: No voo do senhor, havia muitas pessoas negras?
RF: Só tinha pessoas brancas. Coincidentemente, a amostra aleatória pegou o único passageiro negro. Essas coincidências acontecem muito no Brasil. •

Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital, em 19 de julho de 2023.

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