Política

Quando um presidente recomenda um medicamento que não serve, é um ato criminoso, diz especialista

No Brasil, reações adversas pelo uso da cloroquina tiveram um aumento de mais de 560%

Pílula de Hidroxicloroquina - Foto: GEORGE FREY/AFP
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O presidente do Grupo de Especialistas em Imunização da Organização Mundial da Saúde (OMS), o mexicano Alejandro Cravioto, falou com a RFI sobre as estratégias de combate à pandemia de Covid-19 na América Latina, além do uso de vários medicamentos que não apresentam eficácia comprovados. Para o especialista, a postura de um governante que incentiva o uso de medicamentos é ‘um ato criminoso’.

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro incentivou o chamado ‘tratamento precoce contra a Covid-19’, que utiliza  medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença.

O uso teve um aumento significativo no País e as reações à cloroquina, por exemplo, tiveram um aumento de 560%.

Leia a entrevista completa:

RFI – Nesta semana, todo o planeta está na expectativa dos resultados do estudo realizado pelo Grupo de Especialistas em Imunização da OMS sobre as vacinas chinesas da Sinovac e da Sinopharm. Sabe-se que dia será publicado o comunicado ou já sabemos se o uso emergencial delas será autorizado?

Alejandro Cravioto – A resposta é ainda não. O processo está caminhando tanto para uma autorização emergencial por parte da Organização Mundial da Saúde para essas duas vacinas como para as recomendações que faz o grupo estratégico para qualquer um desses produtos. O que temos feito, por razões de idiomas, é realizar uma sequência de reuniões com as duas companhias chinesas através de nosso grupo de trabalho para revisar essas vacinas contra a Sars-CoV-2. O que fazemos é que a companhia vai nos apresentando seus dados de segurança primeiro e, depois, de eficácia, à medida que os estudos clínicos vão se completando. No caso da vacinas chinesas, há resultados em uma série de países onde as vacinas foram testadas em ensaios clínicos controlados com um número suficiente de indivíduos para que os resultados sejam válidos, no sentido de ver a segurança e a eficácia das vacinas. Quando o processo de autorização para o uso emergencial na OMS se completar, então, nas 48 a 72 horas seguintes, nos reuniremos para realizar as recomendações específicas para o uso destas vacinas. Entendemos a pressa, entendemos que há muitos países, incluindo o meu, que estão usando essas vacinas. Mas, sim, temos que seguir o procedimento estabelecido. Ou seja, primeiro precisa-se ter uma autorização de uso de emergência pela OMS ou por alguma das agências reguladoras, para depois podermos emitir recomendações.

RFI – Para explicar para nossos leitores e para que saibam a importância desta notícia sobre as vacinas chinesas, por enquanto, a OMS autoriza o uso emergencial das vacinas anticovid da Pfizer/BioNTech, Janssen (Johnson & Johnson) e AstraZeneca/Oxford (neste caso, somente as remessas fabricadas em associação com a sul-coreana SK Bio e o instituto indiano Serum). A inclusão de vacinas na lista da OMS é importante porque as autorizadas por vocês podem então fazer parte do programa Covax de distribuição de doses a países em desenvolvimento. Quantas vacinas estão na lista de espera de estudos da OMS?

Alejandro Cravioto – Temos também contato com a agência russa Gamaleya, estamos analisando a vacina Sputnik V. Também temos seguido o mesmo processo com a vacina da China. Fizemos entre três ou quatro reuniões com cada um dos laboratórios, começando pela Pfizer e a Moderna, para podermos estar seguros de que a informação que eles têm é suficiente para poder dar recomendações.

RFI – O sr. tem a impressão, como muitas outras das pessoas, de que a campanha de vacinação está sendo mais lenta do que o esperado?

Alejandro Cravioto – O problema que temos é de abastecimento, não é tanto o programa de vacinação. Porque, na maior parte dos países, no momento em que chegam as vacinas, elas são aplicadas. O problema é que não temos produção suficiente de vacinas e alguns países decidiram ficar com toda a produção para o uso interno. Outros países aceitaram que suas fábricas compartilhem o produto com outras nações, sobretudo com o Covax, que é o sistema de cooperação internacional para que todos os países do mundo, independentemente de seu nível econômico, tenham acesso a essas vacinas, ao menos para cobrir 20% de sua população, que seriam os profissionais da saúde. É essencial que eles estejam protegidos para que possam continuar trabalhando e evitando que mais gente morra.

RFI – Outra questão que interessa o mundo inteiro é a segurança da vacina anticovid fabricada pela AstraZeneca devido a registros de alguns casos de coágulos sanguíneos. Como tranquilizar as pessoas sobre isso?

Alejandro Cravioto – Primeiro de tudo é preciso ter um sistema de detecção que imediatamente vê que existe um problema e se comece a estudá-lo. Se você vir os registros, é no norte da Europa onde mais houve casos – Alemanha, Noruega, Suécia, Finlândia. Fizemos uma reunião no domingo [4 de abril] com todo o grupo da OMS e ficou claro que precisamos de mais informação de todo o mundo. Já se está reunindo dados para ver se isso acontece em outros países onde também se está usando a vacina. Sei que na França houve casos, mas tem havido muitos poucos ou quase nenhum registrado na Espanha ou na Itália. Temos que ver porque isso está acontecendo, porque pode estar relacionado a outros fatores que, associados à vacina, podem estar gerando esse tipo de sintomas. O importante é, primeiro, que os países que estão usando a vacina da AstraZeneca tenham um sistema de vigilância de efeitos colaterais que permita detectar se isso é possível ou não. E, segundo, que vejamos realmente quantos indivíduos estão apresentando o problema. Pode ser que alguém pense que 23 casos sejam muitos, mas se olharmos isso em relação às milhões de pessoas vacinadas, então a proporção é muito menor do que o esperado. Acredito que as decisões precisam ser tomadas com muita segurança, mas também com muito cuidado para não afetar o uso da vacina que está sendo de alta proteção para muitos países e sendo produzida em lugares como a Índia e a Coreia do Sul, de onde estão chegando essas vacinas ao Covax, para que possam ser enviadas a outras partes do mundo. O que nos preocupa é continuar vendo se as vacinas que estamos usando são úteis contra as variantes. Já temos três: a britânica, a sul-africana e a brasileira, que são as que estamos acompanhando. No caso da sul-africana, a vacina da AstraZeneca tem um nível menor de proteção, não para a morte, mas para casos menos graves.

RFI – Sem dúvida, as vacinas estão no centro das atenções nesta pandemia, mas também vale a pena falarmos dos medicamentos que estão sendo fabricados e que nos permitirá reduzir a gravidade dos sintomas de pacientes. Como está o avanço pela busca destes fármacos? Isso é uma prioridade de muitas empresas farmacêuticas agora? 

Alejandro Cravioto – Exatamente. Tudo o que temos visto foi para ser usado contra casos muito severos, como o Remdesivir. Ou uma proteção direta como seria o uso de anticorpos que, com as variantes, pouco parece ser eficaz. O que é preciso ser levado em conta é que temos uma série de medidas de proteção não farmacêuticos, como o uso de máscara, lavagem das mãos, manter um distanciamento social, que foi provado que funciona para reduzir a trasmissão do vírus de um indivíduo a outro e que precisamos continuar colocando em prática para podermos continuar nos protegendo. Os lockdowns servem, mas, em um determinado momento, há muita gente que tem que sair de casa para trabalhar, para alimentar seus filhos, para poder sobreviver e por isso não podem simplesmente se manter trancados em suas casas sem sair e ver ninguém. Então, as medidas de proteção não farmacêuticas são comprovadamente eficazes para que se possa ter uma vida economicamente ativa, para poder abrir nossas escolas, entre outras coisas. Todo mundo tem que cooperar e, infelizmente, em alguns países isso foi convertido em um problema social e político de recusa destas medidas, simplesmente porque as pessoas já estão cansadas de não poder ter uma vida normal.

RFI – Falando um pouco de América Latina, vocês se preocupam também que em muitos países da região estão usando a ivermectina em pacientes contaminados pelo coronavírus. Nesta região circula a ideia de que esse medicamento pode ajudar a diminuir os sintomas quando a pessoa é infectada: uma teoria que foi completamente descartada pela comunidade científica. Como frear essa fake news?

Alejandro Cravioto – Foi uma obsessão a recomendação da ivermectina e sobretudo que isso venha de um nível político muito alto. Quando o presidente ou o primeiro-ministro de um país recomenda um medicamento que não serve, isso é um ato criminoso. Isso não nos ajuda em nada. O mesmo aconteceu com a cloroquina e com outras coisas que seguem receitando e utilizando, apesar de que foi dito claramente em todos os países latino-americanos que esses medicamentos não funcionam e não servem contra a Covid-19. É um gasto completamente desnecessário, que não oferece aos pacientes [contaminados pelo coronavírus] nenhum benefício de nenhum tipo. As pessoas acreditam que ao tomar essas coisas estarão protegidas, o que é um verdadeiro erro. Isso significa um gasto em saúde porque esse remédio, mesmo que seja barato, tem um custo e um custo alto para as pessoas que têm poucos recursos. A Organização Panamericana de Saúde e os grupos técnicos na maior parte dos países latino-americanos foram muito claros ao dizer que isso não funciona e não serve. A ivermectina pode ser usada em alguns ensaios clínicos controlados para observar se, no caso de ser associada a outro tipo de medicamento, ela pode servir. Mas tudo o que sabemos até esse momento é que ela não é um medicamento adequado, nem para controlar, nem para diminuir os sintomas causados pelo vírus da Covid-19.

RFI – O que mais o preocupa hoje, como o presidente do Grupo de Especialistas em Imunização da OMS?

Alejandro Cravioto – Duas coisas. A primeira é solucionar o problema da vacina da AstraZeneca que é tão importante para o Covax. Necessitamos analisar claramente os dados para tomar uma decisão sobre como vamos utilizá-la. O segundo é, sinceramente, o tempo de vacinação e o controle da pandemia. Creio que depois de um ano todo mundo está desesperado, mas esse não é o momento de baixar a guarda. As vacinas estão funcionando. Estão distribuindo os imunizantes aos países mais pobres. Precisamos ter paciência, proteger nossos profissionais de saúde e nossos idosos.

(Com informações da RFI)

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