Editorial

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QI em baixa

De súbito, o governo se dispõe a uma faxina profunda e um raio de sol ilumina o cenário

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Ao sair do depoimento prestado na PF, Bolsonaro mais uma vez engana seu povo – Imagem: Ton Molina/AFP
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Só falta saírem os ratos do bueiro da capa, a começar pelas ratazanas da política e os figurões da casa-grande, sem esquecer dos frequentadores das redes sociais, na emissão e na recepção. Enfim, os responsáveis pelo atraso brasileiro cada vez mais escancarado à luz de qualquer análise desabrida e honesta. O tempo galopa e os dados, os números do retrocesso, apontam inexoravelmente para a desgraça, a fermentar de um tempo a outro.

Somos o segundo país mais desigual do mundo, de acordo com um estudo do Banco Mundial, e ainda o segundo, ao sabor do mesmo enfoque, de um relatório publicado pelas Nações Unidas em 2019. No primeiro caso, somos ultrapassados apenas pela África do Sul, país do ­Apartheid e, no outro, pelo Catar, campeão mundial em concentração de renda. Para a turba dos xeques médio-orientais também perdemos no confronto: 1% da população brasileira concentra 28,3% da renda total do País, enquanto, por lá, o 1% privilegiado embolsa 29% da renda.

Quanto às redes sociais, o governo anuncia a intenção de submetê-las a um regulamento, ao imitar um controle já exercido em países do chamado Primeiro Mundo. E logo surge no horizonte e se aproxima perigosamente a onda dos protestos daqueles que se apresentam como defensores da liberdade de informação. E o País não hesita em nutrir a sua enorme coleção de absurdos.

Chico recebe seu prêmio, os presidentes de Portugal e Brasil batem palmas – Imagem: Patricia de Melo Moreira/AFP

Há coisas piores: o Brasil ainda não foi capaz de se livrar do ex-capitão Jair Bolsonaro, o presidente fajuto a exibir a cada lance sua incurável demência, a recomendar sua imediata internação em hospital psiquiátrico. Sobram razões para uma rápida operação destinada a condenar de vez o genocida, o que seria, no caso, a solução correta. E tem mais: os autores de um crime cometido contra o próprio Direito e o senso comum, ao condenar Lula sem provas e aprisioná-lo por 580 dias, hoje estão livres e soltos, de lugar cativo nas duas casas do Congresso Nacional.

Agiram com apoio maciço da mídia nativa, com graves danos até para a indústria nacional e, durante o longo processo desfechado da República de Curitiba, contaram com o extraordinário aval do STF, sentinela da Constituição. Seriam possíveis fatos deste porte nos já citados países democráticos e civilizados? Enquanto isso, em detrimento de qualquer veleidade democrática, os chamados poderes da República desconhecem por completo a missão para a qual foram convocados. Trata-se de entidades postas a girar como engrenagens desencaixadas, cada qual por sua conta.

O mesmo gênero de ignorância manifesta-se nas casernas, onde se ignora que a tarefa essencial é defender as fronteiras do País e nunca interferir nos destinos internos. Não apareceu até hoje quem esclarecesse o povo a respeito destas condições indispensáveis ao cumprimento de uma democracia autêntica. Deste e de tantos outros pontos de vista o povo brasileiro vive em um limbo atroz. Resultado: desencadeia-se uma crise geral do quociente de inteligência, conveniente à casa-grande, ainda de pé, para impor sua lei à senzala e manter uma tardia, nefanda Idade Média, destinada a aparecer na mente da maioria como natural normalidade, aceita como tal passivamente, igual à determinação divina.

O agronegócio avança e incendeia florestas para oferecer espaço à soja e à boiada. O Brasil ainda é exportador de ­commodities, sem excluir minério de ferro, usado pelo importador para construir trilhos de repente empregados para as ferrovias nacionais. Em contraposição, contamos com o Judiciário mais exibicionista do mundo, a oferecer diariamente à visão do País a incompetência dos seus togados, fato único no mundo, onde os Supremos agem em silêncio protetor.

Os poderes da república agem como engrenagens desencaixadas, cada uma por conta própria, enquanto a caserna ainda acredita na sua função “moderadora”

Graças ao doutor Ulysses Guimarães e à sua Constituinte de meio período, o Brasil, desde 1988, conta com uma Constituição digna da contemporaneidade e da democracia, mas miseravelmente traída por quem haveria de defendê-la. Quanto ao Legislativo, este sofre a influência do presidente da Câmara, Arthur Lira, bolsonarista até agora, mas, sobretudo, voltado para o cumprimento dos seus interesses pessoais. Anódino o desempenho do Senado.

O cidadão que viu as imagens da invasão do Palácio do Planalto talvez tenha dado sua aprovação à ideia de que os populares desvairados vandalizaram a esmo o ambiente do Palácio. Seria recomendável, no caso, desculpar-se com o povo vândalo, humilhado pela prepotência do Império Romano, enquanto a horda nativa atuou a seu bel-prazer. Vimos cenas de raiva delirante, sem outro significado da violência pela violência. Vimos também um general aturdido desempenhar o papel do bom samaritano. No quadro nada inclina a impressão do desvario, da confusão antes de mais nada mental de todos os envolvidos na grotesca encenação.

Os togados do STF gostam de aparecer, os invasores do Planalto não deixam por menos – Imagem: Arquivo/STF e Marcelo Camargo/ABR

Não é por acaso que o panorama cultural atingiu um estágio abaixo da mediocridade. Buscar exemplos redentores é tempo perdido. Lula foi buscar em Portugal o prêmio conferido a Chico Buarque, que o energúmeno demente se recusou a entregar. Não é que faltem outros poetas, de Dorival Caymmi a Tom Jobim, dos baianos de longo curso a Noel Rosa e Orestes Barbosa. Hoje, espalham-se no ar as notas da música sertaneja.

Muitas as figuras políticas que se amoitam embaixo do bueiro. Quais seriam as responsabilidades do povo? Vítima de si mesmo e da prepotência da casa-grande, quando pode come o que lhe é servido. Seria capaz, provavelmente, de acreditar em Papai Noel, assim como acredita em inúmeras outras lorotas, ministradas deliberadamente para mantê-lo longe da realidade. Já o rico, enfatiotado, vai ao restaurante carregando uma bolsa de couro cru capaz de guardar duas garrafas de vinho tinto de 3 mil dólares cada, para servi-lo em copos adequados, antes vasculhados com a ponta do nariz, para aspirar o aroma.

Ao cabo sobra uma esperança: há sinais de que o governo se dispõe a uma salutar faxina, de sorte a pôr as coisas no lugar devido. •

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

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