Artigo

Projeções, frustrações, raiva, indignação. Esta é uma eleição visceral

É preciso respirar fundo, acalmar os ânimos e deixar o espírito livre para encontrar refúgio no coração

O ex-presidente Lula (PT) e a esposa Janja, durante ato no Teatro da PUC, em São Paulo. Foto: Ricardo Stuckert
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O mês de outubro começou com reviravoltas nas expectativas eleitorais de toda parte. De um lado, apoiadores do candidato à reeleição, convictos de seu argumento irrevogável de fraude nas urnas. Do outro, apoiadores da frente ampla formada em oposição ao atual governo, frustrados ao ver a vitória imediata sinalizada pelas pesquisas eleitorais escoar pelo ralo. De ambos os lados, ideações, projeções e frustrações, traduzidas em raiva e indignação. Esta é uma eleição, sobretudo, visceral.

Depois de uma longa pandemia que nos lançou a um estado quase permanente de luto e insegurança, rim e fígado assumem o comando desse processo decisório um tanto às avessas, ou melhor, às entranhas. Sendo órgãos de proteção e de reação, mantêm-nos na retaguarda, ressabiados e, ao mesmo tempo, agressivos, com os nervos à flor da pele. No rim, estão guardados o medo, os traumas, a apreensão. No fígado, a raiva, o ódio, a irritação. Um congela, outro ferve – ambos paralisam, gerando trincas por onde escorre o pior de nós.

Fosse uma eleição guiada por outras vísceras, os comportamentos seriam outros. O cérebro exigiria que as intenções de voto se comportassem com lastro em evidências, em análises históricas, em feitos de cada gestão. O coração nos faria lembrar dos valores mais profundos de respeito à vida, de nossos sonhos, nossos planos individuais e coletivos para o futuro. O pulmão pediria novos ares ou ao menos um alento – e que não morrêssemos sufocados, literalmente. Mesmo o intestino aportaria mais: a sabedoria de discernir o que absorver e o que descartar. E de compreender que não se trata de opostos iguais.

O fascismo sabe disso. A propaganda nazista focava justamente nos pavores profundos de sua classe média. Dialogava com eles e os fazia ressurgir de maneiras perversas no seio de vizinhanças e famílias. Em paralelo, insuflava o ódio, a ponto de defender o indefensável e petrificar pessoas diante do extermínio dos considerados diferentes. Oitenta anos depois, o Brasil vem ilustrar o inconcebível: como foi possível dizimar 6 milhões de pessoas a olhos nus? A fórmula se repete: um clima de constante instabilidade política gerado propositalmente, o ataque à credibilidade das instituições, a promoção do medo por meio de contra-informação, a demonização das forças de oposição, o recrudescimento do autoritarismo e o controle sobre corpos e mentes. Assim opera a extrema direita brasileira: inverte, manipula, confunde, ataca. Acusa o outro de pretender fazer aquilo que já está em curso e que se quer mascarar. Distorção sobre distorção, perde-se de vista a verdade. E então importam mais boatos do que fatos. O faro se embota. Enquanto isso, o outro lado tenta se reposicionar, desmentir fake news, mas o efeito do conserto nunca é o mesmo. É muito mais fácil destruir do que construir.

É o que tem mostrado esta rodada eleitoral. A votação do primeiro turno comprova que o eleitorado não reage mais à qualidade da gestão realizada ou dos programas de governo. Nem mesmo à percepção sobre sua própria qualidade de vida, que nos últimos quatro anos só piorou. Análises se descolaram do concreto e partiram para o plano da imaginação, onde também residem os temores. Mas, puxando pelo fio da esperança, não é palpável crer que os 43,2% dos votos de Jair Bolsonaro no primeiro turno tenham se amparado conscientemente num fascismo à brasileira. Enquanto alguns partidários fiéis de fato ecoam os gritos de ódio e espelham seu líder, outra grande parte foi e está sendo guiada pelo terror, que embaralha a percepção e nos torna impermeáveis aos dados. Quando o terror fabricado se torna bússola cotidiana, somos empurrados para um abismo que ameaça a nossa própria existência. E de olhos vendados.

Desde as eleições de 2018, com a crescente descredibilização da imprensa e dos órgãos de fiscalização e denúncia, as fontes passaram a ser memes, áudios de WhatsApp, fofocas e ameaças ventiladas à meia voz. O tom é peculiar, como se se desvelasse um segredo, um plano macabro arquitetado silenciosamente. Dizem lhe salvar do engano. Mas é o medo de ser enganado que faz se deixar enganar. Num mundo de terror e pânico, tornamo-nos vulneráveis e buscamos um salvador. É quando “mitos” tomam lugar.

Para “desmistificar” crenças e libertar sonhos, portanto, é preciso apurar os sentidos e acionar outras faculdades corporais e mentais. A começar pela razão, que se alimenta de fatos. Num mar de mentiras, é preciso tomar fôlego e nadar com força para vencer as ondas de notícias mastigadas e distorcidas que movelimentam as redes sociais. Diferente da última eleição presidencial, quando Bolsonaro ainda era desconhecido do grande público, agora temos quatro anos a dar provas do que foi, para sinalizar o que virá. O que foi ou não priorizado? O que foi deixado de lado? Que valores circularam em falas oficiais que mais lembravam uma mesa de bar? O mesmo vale para a coalizão formada em torno de Lula: olhando mais atrás, temos três gestões petistas e, ainda antes, as de Fernando Henrique Cardoso, unidos num pacto republicano que se propõe a conter o avanço fascista, restabelecer bases democráticas e reconstruir sobre a terra arrasada. Como foram essas gestões? Qual projeto de nação foi executado? As pessoas enriqueceram ou empobreceram? Como avançou a agenda de direitos? Essas perguntas devem preceder qualquer projeção e servem para desmontar medos irracionais. O futuro não se descola do passado e as bases do que serão os próximos anos vêm sendo lançadas desde 2002, basta olhar.

Houvesse de fato um projeto comunista em gestação pela esquerda, não teria sido esse o marco dos anos em que esteve no poder? Contaria com o apoio de partidos historicamente liberais uma ideologia como tal? Foram catorze anos contra os quatro a serem decididos agora, tempo de sobra para redirecionar rumos. Mas não foi o que ocorreu. Economicamente, o país cresceu em média 4% ao ano, os lucros dos bancos triplicaram, bem como do setor empresarial, que mais ganha quando o poder de compra das classes mais baixas se amplia como resultado de políticas redistributivas e de geração de renda. A inflação se estabilizou, a moeda se fortaleceu e o país chegou a ocupar a posição de sétima economia mundial. Do ponto de vista social, houve redução da pobreza e da desigualdade – fontes reais de violência e criminalidade: 36 milhões de pessoas saíram da linha da pobreza e 42 milhões passaram da classe D para a C. Politicamente, as instâncias de participação se multiplicaram, bem como a transparência e o controle social, com a criação de conselhos e conferências e a aprovação da Lei de Acesso à Informação. Os ministérios não foram inundados de militares como na Venezuela e no Brasil de Bolsonaro. Foram diversos instrumentos normativos a assegurar a liberdade religiosa e a laicidade do Estado. As instituições de investigação para o combate à corrupção se fortaleceram, daí o aumento das notificações e prisões, diferente do que ocorre agora, com os órgãos atacados e silenciados.

Já a gestão Bolsonaro reabriu feridas profundas, acirrando contrastes que ele finge não existir. A priorização do mercado externo em detrimento do interno tem elevado preços de itens essenciais, empobrecendo a mesa do trabalhador e gerando fome. Com a inflação a 7,2% , o aumento da informalidade e a precarizaçâo dos empregos autorizadas pela reforma trabalhista, nega-se a dignidade a milhares de pessoas, enquanto uma pequena parcela segue enriquecendo e concentrando renda. A miséria cresceu, o salário mínimo se desvalorizou e a educação e a pesquisa nunca tiveram orçamentos tão baixos. A criminalização das manifestações e dos movimentos sociais e a perseguição a oponentes remontam ao período ditatorial que o presidente insiste em louvar. Desde 2019, este governo aprofundou preconceitos contra a diversidade, aumentando a violência contra indígenas, LGBTQIA+ e mulheres. O extermínio de indígenas e a invasão de suas terras cresceram sensivelmente, chegando a 355 casos de violência registrados apenas em 2021, autorizados pelo desmonte da Funai.

Embora alegue que sua política ambiental defende o Brasil dos interesses internacionais, na prática, ela foi destruída em prol dos interesses de quem desmata e invade visando apenas o próprio lucro. Nos últimos quatro anos, o desmatamento cresceu em 73%, contrastando com os 82% de queda das gestões anteriores. Estamos cada vez mais próximos do ponto de não retorno, que é quando as florestas começam irreversivelmente a desertificar. Como alerta Noam Chomsky, ao permitir a destruição da Amazônia, Bolsonaro comete um crime não somente contra os brasileiros, mas contra a humanidade. A possibilidade de reeleição acelera esse processo e dá novo impulso à extrema direita no mundo, mantendo todos de cabelos em pé.

Para coroar, temos a trágica gestão da crise pandêmica, que escracha sua inabilidade político-administrativa e o descaso pela vida. Somos o segundo país em números de mortes pela Covid-19, não fosse a negligência e o deboche com que foi tratada. Todo brasileiro que perdeu alguém para a pandemia conhece a dor de uma morte que poderia ter sido evitada caso a vacina tivesse chegado antes, como no restante do mundo.

Diante da impossibilidade de contornar tais fatos, Bolsonaro opera através de sucessivas cortinas de fumaça e com a promoção do caos. Aposta na instabilidade, no apelo aos costumes tradicionais e a um moralismo hipócrita, no medo da falta e da perda e no horror à criminalidade e ao empobrecimento para que seu vazio não seja escancarado. Neste segundo turno, a violência atinge patamares inéditos: seus apoiadores espumam ódio e ameaçam a integridade de pessoas e instituições, como o fatídico atentado de Roberto Jefferson contra a Polícia Federal. Bolsonaro ameaça vidas e incentiva o extermínio de quem ameaça seu projeto de poder.

Para disputar valores no campo dos sentidos em que ele costuma jogar, é preciso respirar fundo, acalmar os ânimos e deixar o espírito livre para encontrar refúgio no coração, que insiste em sonhar com tempos melhores e menos desiguais. Se fígado e rim patinam entre a acidez e o amargo do regurgitar, os demais órgãos podem restabelecer o equilíbrio necessário para que recuperem as funções centrais de filtrar, metabolizar, desintoxicar. O tempo é curto, mas o caminho é válido para conter a barbárie e recuperarmos a civilidade, o discernimento, a criticidade, a abertura para a escuta atenta e o diálogo desarmado, resgatando o sentido de coletividade. Integridade e integralidade são chave para enfrentar o fascismo e para enfim voltarmos a andar com os próprios passos. Pela frente, há um longo caminho a re-esperançar.

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