Justiça
Prisão quatro estrelas
A detenção de Braga Netto é mais um passo para desvendar todos os detalhes da conspiração golpista


Na eleição de 2022, o PT de Lula tinha 499 milhões de reais de fundo público de campanhas e o PL de Jair Bolsonaro, 286 milhões. O então presidente e seu partido achavam necessário diminuir a vantagem financeira da oposição. A saída era buscar doações privadas. Não seria difícil. Muitos empresários torciam abertamente pelo capitão, em especial a turma do campo. Bolsonaro conseguiria dez vezes mais contribuições do que Lula, 90 milhões e 9 milhões de reais, respectivamente. De início, seu comitê destacou dois nomes para passar o chapéu no empresariado: o senador Flávio Bolsonaro, filho de Jair, e o chefe do PL, Valdemar Costa Neto. Não eram interlocutores que dessem segurança de que o dinheiro doado seria bem usado. Flávio tinha um passado com acusação de “rachadinhas” e Costa Neto, uma condenação por “mensalão”. Acertou-se que mais um integrante da equipe correria atrás de doações. O general Walter Braga Netto, vice na chapa reeleitoral.
Consumada a derrota de Bolsonaro nas urnas, o general estava inconformado. Em 12 de novembro de 2022, seu apartamento em Brasília foi palco de uma reunião conspiratória, segundo a Polícia Federal. Discutiu-se um plano, batizado de “Copa 2022”, para reverter a vitória de Lula. O plano previa o uso da força, com a captura do presidente do Tribunal Superior Eleitoral à época, Alexandre de Moraes. Um dos participantes do encontro pertencia às Forças Especiais do Exército, o major Rafael Martins de Oliveira, vulgo Joe. Dois dias após a reunião, Joe mandou uma mensagem de celular ao tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, chefe dos ajudantes de ordens de Bolsonaro na Presidência, outro presente na reunião. Joe pedia-lhe 100 mil reais para bancar certas atividades. “O dinheiro foi entregue (a Joe) numa sacola de vinho”, disse Cid à PF em 21 de novembro passado. Quem entregou? Braga Netto, segundo o tenente-coronel.
O general fazia a ponte entre financiadores privados, conspiradores da caserna e Bolsonaro
O relato recente de Cid, um ano e dois meses depois de sua delação ter sido validada pelo Supremo Tribunal Federal, fará Braga Netto passar o Natal e o Réveillon no cárcere. A prisão preventiva do general foi solicitada pela PF, endossada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, e autorizada pelo STF via Moraes. O motivo? Obstrução das investigações sobre a tentativa de golpe. Ter buscado saber sobre o teor da delação de Cid é o principal indício. Trata-se do primeiro caso no Brasil de um general quatro estrelas, último degrau da patente, ir em cana por ordem judicial. Braga Netto foi chefe do Estado-Maior do Exército em 2019, segundo posto na hierarquia verde-oliva. Foi ministro da Casa Civil entre 2020 e 2021. E da Defesa até 2022. Até que não pode reclamar do cárcere, digno de um hotel cinco estrelas. Há ar-condicionado, geladeira, armário, tevê e banheiro. É a sala do Estado-Maior de uma das divisões do Exército no Comando Militar do Leste, sediado no Rio de Janeiro.
“Temos uma série de questões dos Três Poderes, e o Exército, como instituição do Estado, passa por uma angústia pelos caminhos que as coisas vão tomar”, declarou na terça-feira 17 outro quatro estrelas, Guido Amim, ao despedir-se do Comando Militar do Sudeste, localizado em São Paulo. Amim era do Alto Comando do Exército em 2022 e opôs-se ao complô tramado por Bolsonaro e seus fardados fiéis. Acaba de ser indicado por Lula para o Superior Tribunal Militar. O que disse no discurso e em seguida a jornalistas mostra o tamanho da encrenca para as Forças Armadas. “Se não houver algum tipo de reação, a tendência é aumentar a escalada” e “o próximo alvo da escalada” será Bolsonaro. Palavras de um general quatro estrelas da reserva, Maynard Santa Rosa, em uma live no YouTube no dia da prisão de Braga Netto. Santa Rosa foi secretário de Assuntos Estratégicos de Bolsonaro em 2019. “Não é possível aceitar. Não sei como nem quando, mas será necessário fazer uma correção de rumo bastante forte.” Clamor por golpe?
O Cid do vice. O coronel Peregrino era uma espécie de ajudante de ordens do ministro – Imagem: Redes Sociais
Nas três investigações contra Bolsonaro (comércio de joias, cartão fajuto de vacina e tentativa de golpe), a PF incriminou 62 envolvidos, dos quais 35 são militares. O ministro da Defesa, José Múcio, costuma repetir a batida frase de que é preciso separar os CPFs dos golpistas do CNPJ das Forças Armadas. Será? O historiador Francisco Teixeira, coautor do livro Como (Não) Fazer um Golpe de Estado no Brasil, vê as Forças Especiais do Exército, por exemplo, “bastante contaminadas” pelo golpismo.
O número total de incriminados pela PF foi atingido após a polícia complementar, em 11 de dezembro, o relatório final encaminhado ao Supremo no fim de novembro sobre a tentativa de golpe. Ali, os federais indiciaram mais três fardados. Um é Aparecido Andrade Portela, tenente da reserva do Exército e suplente da senadora Tereza Cristina, do PL de Mato Grosso do Sul. O outro é o coronel Reginaldo Vieira de Abreu, chefe de gabinete do general da reserva Mário Fernandes na Secretaria-Geral da Presidência. Fernandes é aquele que imprimiu no Palácio do Planalto os planos “Copa 2022” e “Punhal Verde Amarelo”, ambos de teor muito similar. O terceiro é o tenente-coronel do Exército Rodrigo Bezerra de Azevedo, participante da campana contra o juiz Moraes em 15 de dezembro de 2022, na companhia de Joe.
Indiciados. Portela, Abreu e Azevedo aderiram aos planos golpistas e agora vão se ver com a Justiça – Imagem: Redes sociais
Para a PF, os 100 mil reais pedidos por Joe e Cid foram usados para bancar a campana. De onde teria saído o dinheiro, providenciado, segundo Cid, por Braga Netto? “Do agronegócio” é um bom palpite. As investigações policiais esbarraram na palavra “churrasco” como código para alguns lances da conspiração. “Churrasco” seria a designação de alguma agitação nas ruas destinada a tirar do muro militares hesitantes em aderir ao golpe. Do mesmo modo, o codinome “festa da Selma” foi usado no planejamento do 8 de Janeiro de 2023.
No dia 9 de dezembro de 2022, Cid mandou ao então comandante do Exército, general Marco Antônio Freire Gomes, uma mensagem de áudio a relatar intestinos do complô tramado. “A pressão que ele (Bolsonaro) recebe (para assinar o decreto golpista) é de todo mundo. Ele está… É cara do agro. São alguns deputados, né?” No dia seguinte, um bolsonarista chamado Rodrigo Ikezili enviou um áudio ao general Fernandes. “A gente tá indo lá pra Esplanada (dos Ministérios), pra manifestação da Esplanada, ok? Eu preciso falar urgente com o senhor, sobre aquela… Aquele churrasco.” Era antevéspera de uma depredação em Brasília causada pela prisão de um indígena. José Acácio Serere Xavante pregava resistência violenta à posse de Lula. Sua detenção fora requerida pelo chefe da segurança de Lula à época, delegado Andrei Rodrigues, atual diretor-geral da PF. Em 26 de dezembro de 2022, o tenente Portela escreveu a Cid: “O pessoal q colaborou c a carne, estão me cobrando se vai ser feito mesmo o churrasco. Pois estão colocando em dúvida, a minha solicitação”. Cid responde: “Vai sim! Ponto de honra! Nada está acabado ainda da nossa parte!”
Falta identificar a turma do agro que bancou a tentativa de golpe
A CPI do 8 de Janeiro criada no Congresso em 2023 apontou 16 financiadores do levante, 13 ligados ao agronegócio. Um deputado que foi da CPI e é de um estado com grandes plantações de soja desconfia que os fazendeiros têm agido para manter caro o preço dos alimentos com o objetivo de sabotar o apoio popular a Lula. O campo foi um grande doador da campanha de Bolsonaro. A terceira maior contribuição ao capitão (1,2 milhão de reais) partiu de um ruralista, Hugo de Carvalho Ribeiro, do Grupo Amaggi, de Mato Grosso. A sexta veio de Cornélio Ribeiro Sanders, sojicultor do Grupo Progresso (1 milhão). Recorde-se: a Aprosoja, associação dos produtores, bancou parte de uma manifestação bolsonarista, em Brasília, em 7 de setembro de 2021. Caminhoneiros chegaram a acreditar que Bolsonaro tinha dado o golpe e decretado Estado de Sítio. Desfecho similar ao tramado pelo capitão e seus fardados após a derrota na eleição.
Por trás das maquinações golpistas pós-eleitorais, havia uma interpretação bem própria do artigo 142 da Constituição, a respeito do papel das Forças Armadas. Por essa visão, o artigo abençoaria o decreto redigido para anular a eleição. O comandante do Exército no fim do governo Dilma e no governo Temer, general Eduardo Villas Bôas, perguntou certa vez ao juiz Gilmar Mendes, do Supremo, se a interpretação era correta. Sinal do grau de disseminação do olhar golpista nos quartéis. Ao dar uma batida na sede do PL em fevereiro de 2023, a PF encontrou um papel manuscrito intitulado “Operação 142”. Era um passo a passo sobre o que teria de ser feito até o fim desejado: “Lula não sobe a rampa”. Estava na mesa de um antigo colaborador de Braga Netto, o coronel Flávio Botelho Peregrino.
Desconforto. Paiva, comandante do Exército, precisa lidar com o constrangimento nas casernas – Imagem: Mateus Bonomi/Agif/AFP
Na mesma mesa, a polícia achou um documento com perguntas e respostas sobre a delação de Cid, selada em setembro de 2023. Outra pista usada no pedido de prisão preventiva de Braga Netto por tentativa de obstruir as investigações. O general e Peregrino tiveram os sigilos comunicacionais quebrados e os equipamentos eletrônicos (celular, laptop, pen drive), apreendidos. Quando a PF terminar a perícia nos equipamentos e descobrir seus conteúdos, Braga Netto será interrogado.
O general é o primeiro quatro estrelas do Exército preso por ordem da Justiça no Brasil, mas é da Marinha o primeiro fardado a cumprir pena pelo quebra-quebra de 8 de janeiro de 2023. Em março de 2024, o suboficial Marco Antônio Braga Caldas foi condenado a 14 anos de prisão. Os recursos de seus advogados esgotaram-se agora em dezembro. Sua sentença começou a ser cumprida dia 12, em uma cidade catarinense de 27 mil habitantes, Balneário Piçarras.
A Marinha foi a força mais golpista. Seu comandante no fim do governo Bolsonaro, almirante Almir Garnier, apoiava a conspiração. Foi o que disseram seus colegas de Exército e Aeronáutica à polícia. Ele negou-se a transmitir o cargo ao sucessor escolhido por Lula, Marcos Olsen. Sob Olsen, a Marinha divulgou nas redes sociais um vídeo a ironizar o pacote fiscal do governo. Compreensível: o pacote ataca privilégios das Forças Armadas, como a inexistência de idade mínima para se aposentar, a livre transferência de pensões entre filhas e viúvas de fardados e a manutenção de pagamentos às famílias de militares mesmo que eles sejam expulsos da caserna. A proposta foi enviada ao Congresso na terça-feira 17, dia em que a Marinha tirou o vídeo do ar.
Quando os deputados decidiriam se o Brasil teria voto impresso, 10 de agosto de 2021, a Marinha botou tanques de guerra para desfilar em Brasília, num gesto de pressão pela aprovação da lei. Não deu certo. Ao contrário. O presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco, ainda no cargo, fez um discurso em defesa da democracia: “Nada nem ninguém haverá de intimidar as prerrogativas do Parlamento”. E colocou para votar no Senado a lei que serviu de base para a PF ter incriminado 40 investigados por tentativa de golpe. Essa lei, a 14.197, de 2021, revogou parte do entulho autoritário legado pela ditadura, a Lei de Segurança Nacional.
Firme. Com o aval dos colegas, Moraes ainda tem muito trabalho pela frente – Imagem: Andressa Anholete/STF
A história daquele 10 de agosto de 2021 é relembrada no início de um livro que Pacheco, do PSD de Minas Gerais, lançará em janeiro ou fevereiro, intitulado Ecos da Democracia. Em 1º de fevereiro, os senadores elegerão novo presidente. O favorito é Davi Alcolumbre, do União Brasil do Amapá. Alcolumbre fará avançar umas medidas de aperto à farda, postas na mesa pelo MDB em troca de voto na sucessão de Pacheco? Entre essas medidas estão a proibição de militar ser ministro da Defesa e de usar o cargo em eleições e a imposição de pena de prisão de 6 a 24 meses para aqueles que a ostentarem em atividade político-partidária.
No Supremo, Flávio Dino topou dar uma cutucada nos quartéis. Defende abrir uma brecha na Lei de Anistia e punir fardados envolvidos com a morte de perseguidos pela ditadura. Votou a favor de que tenha alcance geral uma decisão que a Corte terá de tomar no futuro a respeito de um caso de morte e ocultação de cadáver, cujos réus são dois militares. Ao externar sua posição, escreveu que esconder cadáver é crime permanente, portanto, posterior à anistia. É o que acha a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, conforme sentença de setembro. A posição de Dino foi tornada pública no dia seguinte à prisão de Braga Netto, em um julgamento virtual.
Alexandre de Moraes, mantido pelos pares à frente dos inquéritos, estará a postos em janeiro
Em outro julgamento virtual, este na véspera da prisão do general, o STF rejeitou a alegação de Bolsonaro de que Moraes deveria ser afastado da relatoria do caso da tentativa de golpe. O capitão diz que o juiz seria personagem dos fatos investigados, em razão do plano para capturá-lo. Respaldado pelos colegas, Moraes estará de serviço em janeiro, apesar do recesso do Judiciário. Idem Gonet, único autorizado a propor uma ação penal no Supremo. Estão com ele as conclusões policiais nos inquéritos do comércio de joias, do cartão fajuto de vacina e da tentativa de golpe. O ano novo promete começar com Bolsonaro, Braga Netto e associados rumo ao banco dos réus. •
Publicado na edição n° 1342 de CartaCapital, em 25 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Prisão quatro estrelas ‘
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