Política

Primeira-dama de Sergipe usou empresa da filha para captar água para haras da família

Licença para irrigação de haras foi concedida e renovada pelo governo estadual de Fábio Mitidieri; uso de CNPJ fora do ramo agrícola levanta questionamentos

Primeira-dama de Sergipe usou empresa da filha para captar água para haras da família
Primeira-dama de Sergipe usou empresa da filha para captar água para haras da família
A primeira-dama de Sergipe, Érica Mitidieri, ao lado do esposo Fábio - Reprodução/Haras Esperanza no Instagram
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A primeira-dama de Sergipe, Érica Mitidieri, utilizou uma empresa de seguros cuja sócia principal é sua filha para obter, do governo estadual (chefiado pelo marido, Fábio Mitidieri), uma outorga de captação de água destinada à irrigação de uma propriedade rural da sua família, no interior sergipano.

O aval foi dado pela secretaria estadual de Meio Ambiente em abril de 2023, segundo documentos consultados por CartaCapital. Em 15 de abril de 2025, a pasta renovou a licença em nome da M Cavalcante & Seguros por mais dois anos. Entre as atividades declaradas pela empresa à Receita Federal, porém, não há nenhuma menção a operações rurais ou agrícolas.

Especialistas em Direito ouvidos sob reserva pela reportagem afirmam ser incomum que a concessão da outorga esteja vinculada ao CNPJ da M Cavalcante, ao invés de estar ligada à Fazenda Haras e Parque Esperanza, no município de Itaporanga D’Ajuda (a 32 quilômetros de Aracaju), onde os recursos hídricos seriam utilizados.

Procurada pela reportagem, Erica Mitidieri – que também é secretária estadual de Assistência Social do estado – negou irregularidades e possível conflito de interesses. Em nota, disse que a solicitação se deu em nome da empresa pelo fato de ela ser a proprietária do imóvel – o que, segundo a primeira-dama, estaria em conformidade com a legislação estadual.

A legislação brasileira estabelece que água é um recurso natural de domínio público: pertence à sociedade e, por isso, não pode ser apropriada sem controle. Assim, quem deseja usá-la para irrigar plantações, abastecer indústrias ou criar animais, por exemplo, precisa de autorização legal para evitar o uso indiscriminado e garantir que o recurso seja compartilhado de forma justa.

Em Sergipe, cabe à secretaria de Meio Ambiente, Sustentabilidade e Ações Climáticas autorizar ou não o uso dos recursos hídricos. Quem quer usar a água em larga escala precisa entrar com um pedido, apresentar documentos, mapas da área, justificativas técnicas e, em alguns casos, licenças ambientais.

A Semac avalia se há água suficiente disponível naquela região, se o uso é adequado e se não vai prejudicar outras pessoas que dependem da mesma fonte hídrica. Caso esteja tudo certo, a pasta publica uma portaria de outorga, definindo quanto de água pode ser usado, para qual finalidade, por quanto tempo e sob quais condições.

Os recursos hídricos chancelados pela secretaria advêm do riacho Tabocas, um afluente da bacia hidrográfica do Rio Vaza Barris, que atravessa os estados de Bahia e Sergipe, desaguando no litoral deste último. A primeira licença concedida à M Cavalcante & Seguros em abril de 2023 constava apenas o nome da primeira-dama e continha uma tarja sob o espaço destinado ao CNPJ da solicitante.

A primeira autorização foi dada pela Semac em 14 de abril de 2023, mas a portaria publicada no Diário Oficial censurou o CNPJ através do qual a solicitação foi feita.

A segunda portaria da Semac, no entanto, retirou o borrão, sendo possível identificar a utilização da empresa para a solicitação da outorga. Somente com a primeira autorização seria possível retirar aproximadamente 39,210 mil metros cúbicos – o equivalente a 16 piscinas olímpicas cheias d’água, conforme as medidas da Federação Internacional de Natação.

Com esse volume também seria possível garantir o consumo de ao menos 52 mil pessoas por um mês, considerando o consumo médio de 75 litros ao dia por pessoa (padrão da Organização das Nações Unidas, a ONU, para necessidades básicas). Em ambos os documentos há a recomendação para que seja elaborado um plano de monitoramento da vazão captada para fins de fiscalização.

A área do Haras Esperanza foi comprada em 2021 do empresário Beto Chamusca, segundo uma publicação feita à época no perfil oficial da empresa no Instagram. “É assim que a família Mitidieri supera uma das fases mais difíceis e inesperadas que o mundo vem enfrentando – a pandemia da COVID-19”, diz o post, que também ressalta a paixão do clã por cavalos de raça.

Sua abertura oficial, porém, ocorreu em novembro de 2023, de acordo com informações da Receita Federal. Pouco tempo depois, em março passado, a empresa foi extinta por “encerramento – liquidação voluntária”. Este é um processo no qual há o encerramento das atividades por iniciativa própria, acompanhada pela partilha de saldo e bens entre os sócios.

Ou seja: o Haras Esperanza não estava formalmente ativo no momento da primeira outorga de uso de água. E também já havia encerrado suas atividades quando a licença para explorar os recursos hídricos foi renovada pela Semac.

Sobre isso, Erica Mitidieri acrescentou em nota que a empresa F C Mitidieri Haras FM, encerrada neste ano, nunca foi titular da outorga nem da propriedade, tendo atuado na área por cessão de uso. “A baixa do CNPJ foi uma decisão administrativa sem relação com o processo de outorga, que permanece vinculado à empresa proprietária ativa”, diz o comunicado. O texto pontua ainda que a documentação sobre a solicitação de uso da água está “disponível para consulta pública”, mas CartaCapital não conseguiu acessá-la no portal da Semac, apesar de diversas tentativas.

Após a publicação da reportagem, a Semac informou que o processo de concessão da outorga “seguiu as etapas formais exigidas, com análise criteriosa da solicitação e comprovação do cumprimento das condicionantes para autorização”. Em nota, afirmou ainda que a tarja sobre o CNPJ da primeira portaria deve-se à Lei Geral de Proteção de Dados.

“Essa medida é padrão em publicações oficiais, não interfere na legalidade do ato administrativo e visa exclusivamente resguardar informações sensíveis, sem prejuízo ao acesso aos demais dados do processo”, diz o texto, no qual a Semac também reafirma o “compromisso com a gestão responsável dos recursos hídricos e com a estrita observância da legislação”.

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