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Porta giratória

Servidores que deram aval a projetos de mineração agora atuam em consultorias e escritórios de advocacia contratadas por grandes mineradoras

Imagem: Adão de Souza/Prefeitura de Belo Horizonte
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Nos últimos anos, o Brasil passou a liderar o ranking mundial de mortes causadas por rompimento de barragens, segundo um relatório da Agência de Meio Ambiente das Nações Unidas. As maiores tragédias ocorreram em Minas Gerais – Itabirito (2014), Mariana (2015) e Brumadinho (2019) – e ceifaram ao menos 289 vidas. De lá para cá, pouco ou nada foi feito para prevenir novos desastres e o estado segue na liderança do número de barragens classificadas como de alto risco, segundo relatório da Agência Nacional de Mineração de maio deste ano. Há décadas, a população mineira convive com o medo de morrer ou perder tudo em um tsunami de lama tóxica, mas isso não abala a indecorosa teia de relações entre mineradoras, consultorias e o governo de Minas. O aparelhamento dos conselhos envolvidos no processo de licenciamento dos projetos de mineração é público e notório. Só não vê quem não quer.

Na madrugada de 30 de abril, um sábado, após 19 horas de deliberação, o Conselho Estadual de Política Ambiental, conhecido pela sigla Copam, aprovou um megaempreendimento da Taquaril Mineração S.A., a Tamisa, para explorar a Serra do Curral. Foram oito votos a favor e quatro contrários na Câmara de Atividades Minerárias, uma das repartições do Copam. O órgão tornou-se uma verdadeira máquina de aprovar licenças para atender aos interesses de mineradoras. Um relatório da Controladoria Geral do Estado, de 2019, mostra que a Câmara votou favoravelmente aos empreendimentos de mineração em 90% das vezes em que foi consultada.

Na iniciativa privada, eles prestam serviço para as mesmas companhias que antes fiscalizavam

Responsável pelo relatório do projeto da Tamisa na Serra do Curral, Carlos Eduardo Orsini, representante da Sociedade Mineira de Engenheiros, em nenhum momento se sentiu constrangido ou impedido de participar da votação, mesmo sendo administrador de uma empresa do setor, a Scorpio Mineração, cujo capital social é de apenas 20 mil reais, segundo documentos obtidos na Junta Comercial do Estado. Orsini também é sócio majoritário YKS Empreendimentos e Participações Ltda., empresa de consultoria ambiental que, segundo a mesma, atendeu mais de 300 clientes e possui capital social de 200 mil reais. Além dele, chama a atenção a participação da Federação das Indústrias de Minas Gerais, parceira da Vale, empresa que depende do conselho para liberar projetos, e do Sindicato das Indústrias Extrativas de Minas Gerais (Sindiextra), que possui mineradoras associadas e mantém parcerias com empresas do setor.

Todos os representantes do governo de Romeu Zema votaram favoravelmente ao megaempreendimento, a prever a retirada de 31 milhões de toneladas de minério de ferro da Serra do Curral, a despeito das recomendações contrárias do Ministério Público Federal e até mesmo de uma ação civil pública interposta pela Promotoria ­estadual. A estratégia foi acelerar a liberação do projeto enquanto o governo segurava o processo de tombamento da região. Há poucos dias, Zema publicou o decreto que reconhece a importância cultural, ambiental e artística da região e determinou o prosseguimento do processo. Zema sempre defendeu o empreendimento da Tamisa, mas agora diz ser “nem contra, nem a favor”.

Pai e filho. Dirigente e financiador do PL em Minas atuam em favor das mineradoras – Imagem: Gustavo Lima/Ag.Câmara e Redes sociais

“Antes, o Ministério Público e a Polícia Ambiental tinham assentos no Copam. Com a reformulação de 2016, eles foram retirados e criou-se uma falsa paridade. O conselho precisa ser reestruturado logo. Caso contrário, vão continuar passando o trator, sempre pelo placar de 8 a 4”, comenta Felipe Gomes, engenheiro ambiental, ex-servidor da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento e ex-assessor da presidência da Fundação Estadual do Meio Ambiente, que acompanhou o recente processo de liberação do empreendimento. Até mesmo a empresa que advoga para a Tamisa faz parte de uma teia de relações com o Poder Público, incluindo a chamada “porta giratória”, quando servidores que atuam no alto escalão migram para a iniciativa privada para ­atuar “do outro lado do balcão”.

É o caso de Leonardo Tadeu ­Dallariva Rocha, ex-superintendente regional de Meio Ambiente que, durante a gestão, fiscalizou e atuou em projetos de mineração da Tamisa, incluindo a primeira versão do projeto Serra do Curral, segundo a Agência Pública. Agora, ele é sócio sem capital do escritório de advocacia Santana de Vasconcellos, que cuidou do processo de licenciamento do projeto da Serra do Curral da Tamisa e atende a Vale no caso do rompimento da barragem em Brumadinho.

Medo. A população mineira convive com o temor de novos desastres em barragens – Imagem: Suamy Beydoun/Agif/AFP

Leonardo foi chefe de gabinete de Bernardo Santana, um dos sócios do escritório, quando este ocupava a Secretaria de Desenvolvimento Social, no governo do petista Fernando Pimentel. Recentemente, o deputado federal Rogério Correia, do PT, levou o contrato firmado entre o escritório e a ­Tamisa, no valor de 5 milhões de reais, até o Ministério Público para apurar se houve alguma ilegalidade. “A empresa receberia 300 mil reais de pró-labore e mais 4,7 milhões de reais caso as licenças fossem autorizadas. Qualquer órgão ambiental sabe muito bem que não é tão caro fazer esse ajuste jurídico”, afirmou ao protocolar a denúncia. Santana interpelou o parlamentar judicialmente: “Afinal, o interpelado está, de fato, atribuindo ao interpelante a intermediação de pagamento de propina através de seu escritório de advocacia e respectivo contrato de honorários?”

Na empresa, também figura como sócio José Santana, pai de Bernardo e presidente estadual do PL, o partido de Jair Bolsonaro. Advogado das mineradoras, Bernardo Santana chegou a presidir o PL, mas deixou a direção do partido para seu pai. De toda forma, ele figura como o principal financiador individual do PL em Minas, segundo dados do TSE. O deputado estadual Gustavo Santana, irmão de Bernardo, chegou a fazer a defesa da Tamisa em uma audiência como membro efetivo da Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

“Todos os profissionais, sejam sócios e associados que compõem os quadros do escritório, são devidamente habilitados, não existindo em relação a eles, nem hoje nem nunca, quaisquer conflitos de interesse”, afirma Santana em nota. Ele também rechaçou qualquer ligação com a atuação do irmão Gustavo, que segundo ele atua “de acordo com suas convicções” e sem qualquer relação com as empresas da família.

Imagem: Alan Santos/PR

Zema retardou o tombamento da Serra do Curral para favorecer a Tamisa, acusam ambientalistas

Outro exemplo de porta giratória pode ser observado na Alger Consultoria Socioambiental. O nome é um acrônimo de Alceu Torres Marques e Germano Gomes Vieira, ambos ex-secretários de Meio Ambiente de Minas. Desde janeiro deste ano, o ex-presidente do Instituto Estadual de Florestas, ex-superintendente e ex-secretário adjunto da ­Semad, Antonio Malard, é sócio da Alger. No Poder Público, ele também deu parecer favorável ao projeto da Tamisa, apesar da oposição unânime dos conselhos consultivos do instituto. Malard chegou a ser cotado para assumir a Secretaria de Meio Ambiente devido, principalmente, ao bom trânsito que tem junto a deputados da Assembleia Legislativa.

“Estamos falando de servidores que ocuparam cargos de chefia no alto escalão no governo e, logo depois, foram contratados ou entraram como sócios em escritórios de advocacia e consultorias que atuam nos mesmos projetos que eles liberaram”, observa Gomes. “Além do conflito de interesses, esses servidores tiveram acesso a informações privilegiadas.”

Há também aqueles que deixam o sistema de Meio Ambiente do estado para constituir as suas próprias mineradoras. É o caso de Hildebrando ­Canabrava Neto, que foi secretário-executivo da Semad até outubro de 2020. No ano seguinte, ele tornou-se sócio de duas mineradoras, a Brava e a Verdecal Mineração, além de possuir duas consultorias na área ambiental. A atual secretária de Meio Ambiente e Desenvolvimento, Marília Carvalho de ­Melo, também teve a sua cota de polêmica quando presidiu o Instituto de Águas de ­Minas Gerais. Documentos mostram que, durante sua gestão, a empresa de consultoria ambiental Crono Engenharia, registrada em nome da mãe e de seu padrasto, e que também presta serviços para grandes mineradoras, como a CSN e a Vale, foi contratada pela autarquia por meio dos consórcios Ecoplan/Lume­ e Ecoplan/Skill. Melo deixou o Instituto de Águas em setembro de 2020 para assumir a Semad. Procurados por CartaCapital, o governo do estado e o Copam não retornaram o contato até a conclusão desta reportagem. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1215 DE CARTACAPITAL, EM 6 DE JULHO DE 2022.

[ATUALIZAÇÃO: Em manifestação posterior ao fechamento dessa reportagem na edição impressa, o governo de Minas Gerais enviou a seguinte resposta:

“No Poder Executivo do Estado de Minas Gerais, que engloba o Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos – Sisema, aplica-se a “quarentena”, nos termos do Decreto nº 46.644, de 06 de novembro de 2014, que dispõe sobre o Código de Conduta Ética do Agente Público e da Alta Administração Estadual.

De acordo com o art. 34 do Código de Ética, aplica-se o prazo de quatro meses, contados da saída da Administração Pública do Poder Executivo Estadual, para o período de interdição para atividade incompatível com cargo, função ou emprego público anteriormente exercido.

Durante esse prazo de quatro meses, autoridade pública não pode aceitar cargo, emprego ou função de administrador ou conselheiro, ou estabelecer vínculo profissional com pessoa física ou jurídica com a qual tenha mantido relacionamento oficial direto e relevante nos seis meses anteriores à da saída do Poder Executivo e também não pode intervir, em benefício ou em nome de pessoa física ou jurídica, junto ao órgão ou entidade da Administração Pública Estadual com que tenha tido relacionamento oficial direto e relevante nos seis meses anteriores à da saída do Poder Executivo.

Esse período de interdição aplica-se aos gestores públicos da Alta Administração. Neste sentido, no Sisema, são os servidores ocupantes dos cargos de Secretário de Estado, Presidente, Diretor-Geral, Subsecretário, Chefe de Gabinete, Secretário Executivo, titulares de unidades administrativas ligadas diretamente ao dirigente máximo ou o subsecretário e equivalentes hierárquicos.

Em complemento a demanda, informamos que no Poder Executivo Estadual aplica-se também a “quarentena” para situações que configuram conflitos de interesse após o exercício de cargo, emprego ou função na Administração Pública direta e indireta, nos termos da Resolução Conjunta CGE/AGE/OGE nº 01, de 13 de março de 2000.

Por fim, informamos que, a partir de 1º/07/2022, entrará em vigor o Decreto nº 48.417, de 16 de maio de 2022, que dispõe sobre situações que configuram conflito de interesses envolvendo os agentes públicos ocupantes de cargo ou função, no âmbito da Administração Pública direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo.”]

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