Política
Pontos cegos
Apesar dos esforços do governo federal, os garimpeiros continuam a invadir as terras Yanomâmi


Lá se vão seis meses da operação para conter a crise humanitária nas terras Yanomâmi em Roraima. A situação melhorou de forma considerável, mas continua longe do ideal. Apesar dos esforços da força-tarefa criada para expulsar os 20 mil garimpeiros ilegais e cuidar da saúde da população indígena, remanescem áreas de conflito e abandono. Segundo relatório divulgado pela Hutukara Associação Yanomâmi, Associação Wanasseduume Ye’kwana e Urihi Associação Yanomâmi, várias comunidades sofrem com a fome e doenças e há um retorno do garimpo em áreas sem supervisão federal.
De janeiro a junho, aponta o documento, o garimpo avançou em 219 hectares, aumento de 4% em relação a dezembro de 2022. O ritmo de crescimento está, porém, abaixo daquele do mesmo período do ano passado, que chegou a 30%. Os garimpeiros continuam presentes nas imediações das aldeias Parafuri, Xitei, Haxiu (perto do Yamasipiu), Homoxi (nas comunidades Xereu e Tirei) e Kayanau (em Couto Magalhães). Edinho Macuxi, do Centro Indigenista de Roraima, cobra da Justiça punição aos criminosos. “Os garimpeiros continuam insistindo, são tirados de lá, são presos em flagrante, mas quando chegam na cidade a Justiça solta e eles voltam. Estão bem organizados, são financiados e aliados do tráfico, do PCC.” Macuxi não deixa, porém, de reconhecer os esforços recentes do governo federal. “É muito cedo pra gente dizer que resolveu, mas está caminhando. O problema é que não tem uma estrutura forte de proteção, porque retira, mas os caras voltam. A logística deles é grande. Falta um plano mais estruturado.”
Entre janeiro e junho, o garimpo avançou em 219 hectares, aponta um relatório
Júnior Hekurari, uma das lideranças Yanomâmi e presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena da etnia, confirma a resistência dos garimpeiros, mas garante que mais de 90% dos criminosos foram expulsos da terra indígena e classifica como positiva a ação da força-tarefa na contenção da crise humanitária. “A população acreditava que ia morrer durante o governo Bolsonaro. Queriam matar as crianças, cortaram recursos de medicamento, muitas crianças morreram por falta de remédio. Hoje, a gente recebe tratamento diferente. Os profissionais de saúde estão nas comunidades”, compara. “Agora estamos voltando a ter esperança, de levantar de novo, de cuidar das famílias. Nosso problema não acabou, mas a gente vê que a água está se recuperando, a floresta renascendo fortemente, o perfil das crianças mudando para melhor. Eu sei que tem muitas comunidades onde a saúde ainda não chegou, mas a gente vê que há um trabalho para a população.”
As aldeias perto da fronteira com a Venezuela, afirma Hekurari, ainda sofrem com a ação dos garimpeiros. É nessa região que se concentram os maiores números de doenças como a malária, disseminadas exatamente pela presença dos criminosos nos locais. Nas últimas semanas, acrescenta, a Polícia Federal e as Forças Armadas intensificaram as buscas por garimpeiros na região. O Ministério Público Federal com sede em Roraima tem acompanhado a situação e também publicou um relatório. O documento não deixa dúvidas a respeito do impacto da ação criminosa dos garimpeiros, com a conivência do Poder Público e de setores da iniciativa privada que financiam a mineração ilegal. “Pela generalidade e sistematicidade das ações em um contexto político de alinhamento entre atores públicos e privados para o favorecimento da mineração em terras indígenas, parece factível aventar a hipótese de tipificação subsidiária de crime contra a humanidade no plano internacional, na medida em que as ações de garimpeiros ilegais e a omissão aparentemente dolosa dos agentes públicos possam revelar, no decorrer das apurações, seu caráter de ato desumano apto a ter causado grande sofrimento e afetado gravemente a integridade física e mental dos povos Yanomâmi e Ye’kwana”, descreve um trecho do relatório.
Cobiça. Sem vigilância permanente das autoridades, as terras indígenas não se verão livres do garimpo – Imagem: Arquivo/MMA
Alisson Marugal, procurador federal que acompanha o caso, relata a dificuldade em expulsar de vez o garimpo do local. Entre os exemplos, ele cita uma pista de pouso reconstruída em poucos dias pelos invasores, após sua desativação pelas forças de segurança em julho. Marugal vê um saldo positivo nos seis meses da operação federal na terra indígena, mas cobra uma ação permanente. A primeira etapa do trabalho da força-tarefa, rememora, foi dividida em duas operações que atuavam de forma paralela. Agora, precisam agir de forma conjunta. “De um lado você tinha a desintrusão, uma operação policial para retirada de garimpeiros, e, de outro, uma operação propriamente humanitária, voltada a um atendimento de saúde, sanitário e de ações de segurança alimentar mediante a entrega de alimento. No atual momento, a operação entra numa segunda fase, marcada pelo restabelecimento do serviço de saúde. Até pouco tempo, diversos postos estavam fechados porque o garimpo ainda era uma ameaça significativa. A partir desse ponto, a operação de desintrusão precisa se alinhar mais com a operação humanitária, para restabelecer os serviços públicos no território.”
Ao cobrar uma atuação permanente, o procurador destaca o perfil epidemiológico dos indígenas. “Não se trata só de entregar alimentos nas comunidades, nem de apenas realizar atendimento emergencial para essa população, mas de refletir o que se espera de uma assistência básica, um atendimento permanente nas comunidades, na lógica da prevenção de doenças, promoção à saúde. Isso vai demandar um trabalho de estruturação de toda a saúde indígena. Vai exigir uma ação de médio e longo prazo.”
O Ministério Público elenca indícios de crimes contra a humanidade
Para Eugênio Pantoja, diretor de políticas públicas e desenvolvimento territorial do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, o efetivo da força-tarefa federal nos primeiros meses da operação foi importante, mas é insuficiente para reverter a crise humanitária na região. “É preciso, agora, que se ofereça um conjunto de políticas públicas que considerem toda a diversidade, as características étnicos-culturais desses povos, para também atender às necessidades básicas deles, ao mesmo tempo que possibilite outras condições de vivência, de bem-estar, de bem-viver, para as comunidades que ocupam há milênios essas áreas.”
Sobre as condições de vida dos povos indígenas, representantes de diversas etnias estiveram reunidos em assembleia, no sábado 5, em Belém, para discutir um modelo de desenvolvimento sem o garimpo ilegal e as grandes obras de infraestrutura. O evento antecedeu a Cúpula da Amazônia, que reuniu, entre os dias 8 e 9, chefes de Estado de países integrantes da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica. Guardiões da floresta, os indígenas foram excluídos da agenda oficial da cúpula, o que motivou protestos na capital paraense. Durante a assembleia, as lideranças aprovaram um documento, a ser entregue ao presidente Lula e demais líderes políticos, em que se cobra do governo brasileiro a demarcação de terras e a rejeição do marco temporal, tese esdrúxula inventada pela bancada ruralista. Inicialmente, o governo tinha anunciado a intenção de aproveitar o evento internacional para anunciar a demarcação das terras de Rio Gregório, em Tarauacá, no Acre, Cacique Fontoura, em São Félix do Araguaia, em Mato Grasso, e Acapuri de Cima, em Fonte Boa, Amazonas. O anúncio estava previsto para a quarta-feira 9, Dia Internacional dos Povos Indígenas. Estas e outras cinco áreas estão com a documentação pronta para a demarcação e aguardam apenas a assinatura do presidente Lula.
Protestos. Os indígenas reconhecem os avanços, mas reivindicam soluções permanentes na região – Imagem: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real
Apesar dos debates importantes em torno da preservação da maior floresta tropical do mundo, a Cúpula da Amazônia acabou marcada por uma polêmica. Embora o Ibama tenha publicado um laudo contrário à exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas, Lula não está convencido do voto e declarou que o Brasil deve continuar a sonhar com a extração. Para justificar a empreitada, cita a transição energética quando defende investimentos em energias de fontes fósseis. Presente no evento, o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, seguiu em outra direção, afirmou ser contra a exploração de petróleo na região e acusou os líderes progressistas de igualmente ignorarem os alertas a respeito da crise climática. “A direita tem um fácil escape, o negacionismo. Para os progressistas, gera outro tipo de negacionismo, que é falar em transições”, discursou. Além de Lula e Petro, participaram da cúpula os presidentes da Bolívia (Luis Arce) e Peru (Dina Boluarte), a vice-presidente da Venezuela (Delcy Rodríguez), o primeiro-ministro da Guiana (Mark-Anthony Phillip), e os ministros das Relações Exteriores do Equador (Gustavo Manrique Miranda) e do Suriname (lbert Randim). Ao fim do encontro, os representantes dos governos aprovaram uma série de compromissos e prioridades para garantir a preservação da floresta amazônica e os direitos dos povos originários.
Publicado na edição n° 1272 de CartaCapital, em 16 de agosto de 2023.
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