Política

cadastre-se e leia

Poder paralelo

Após a bárbara execução de três médicos e a rápida punição do “tribunal do crime”, o estado terá outra intervenção

As incursões militarizadas semeiam o terror nas comunidades – Imagem: Carl de Souza/AFP
Apoie Siga-nos no

O crime não ficará impune.” Apesar de recorrer a um surrado e quase sempre mentiroso clichê, uma vez que somente 16% dos casos de homicídio são solucionados no Rio de Janeiro, desta vez o secretário de Polícia Civil, José Renato Torres, tinha razão. Com ligeireza jamais vista, apenas 11 horas após a bárbara execução, na quinta-feira 5, de Marcos de Andrade Corsato, Diego Ralf Bonfim e Perseu Ribeiro Almeida – três médicos que participavam de um congresso de Ortopedia e inocentemente tomavam cerveja em um quiosque na orla carioca –, o caso estava solucionado. O problema é que a rápida “resolução” não derivou de um surto de eficiência da polícia fluminense. Quem prendeu, julgou, condenou e executou a sentença dos autores e do mandante do crime foi o “tribunal do tráfico”, em mais um episódio que desnuda a falência das políticas de segurança pública e o elevado grau de organização e ousadia do poder paralelo no Rio.

Trata-se de um território conflagrado, sobretudo na capital, hoje disputada bairro a bairro por traficantes e milicianos. A população, a depender de sua renda e localização geográfica, padece com a ausência, a ineficiência ou a truculência de um efetivo policial em muitos casos conivente com o crime. Nesse contexto, não cessa de crescer o mapa de confrontos violentos que envolvem diversas facções, dissidências e alianças – inclusive entre traficantes e milicianos – em um quadro complexo que desafia as autoridades estaduais. Estas, no caso dos médicos assassinados, acabaram expostas ao ridículo. Enquanto a cúpula da segurança, em rápido pronunciamento, sugeria que uma das vítimas poderia ter sido confundida com um miliciano e os homicídios cometidos por engano, a cúpula do poder paralelo já havia tomado a dianteira.

Em apenas 11 horas, o CV prendeu, julgou, condenou e executou a sentença de morte dos responsáveis pelo assassinato de três médicos na Barra

Na mesma madrugada do crime, seus autores, então escondidos na Cidade de Deus, na zona oeste da capital, foram levados à força pelos próprios comparsas para a favela Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, na Zona Norte. Na condição de réus, assistiram a uma videoconferência que reuniu virtualmente os principais líderes do Comando Vermelho, dentro e fora do presídio Bangu 3, e que teve como veredicto a pena de morte. A mesma sentença foi aplicada ao chefe da “Equipe Sombra”, Philip Mota Pereira, o Lesk, ex-miliciano que recentemente se aliou à maior facção criminosa do Rio na ­disputa territorial pelo bairro de Gardênia Azul, também na Zona Oeste. Informada somente após o desfecho do rápido julgamento, a polícia encontrou os quatro corpos dentro de dois veículos nos locais indicados pelos próprios traficantes. Talvez em consequência da perplexidade causada pela inusitada “colaboração” do crime organizado, o governador Cláudio Castro não escolheu bem as palavras. “Até eles se indignaram com a ação dos seus próprios e fizeram essa punição interna. O Estado não se abala absolutamente com nada pelo fato de que eles resolveram punir os seus”, disse. Indagado sobre a maior “eficiência” do poder paralelo, falou o óbvio: “A gente estava em um processo de investigação, e eles já sabiam quem eram”.

“Eles”, nas palavras do governador, são os traficantes. A realidade do crime no Rio, contudo, não é tão simples. São três facções criminosas de grande porte duelando entre si e dezenas de milícias organizadas, fragmentação ocorrida sobretudo após a saída de cena de milicianos como Wellington da Silva Braga, o Ecko, morto pela polícia em 2021, e Ricardo Teixeira Cruz, o Batman, que atualmente cumpre pena de 16 anos por homicídio cometido contra um motorista de transporte alternativo que não aceitava se submeter ao “imposto” cobrado pela milícia. O racha iniciado na ausência dos dois maiores líderes aproximou o então miliciano Lesk e os traficantes do CV na disputa pelas comunidades de Gardênia Azul e seu entorno.

Uma das vítimas, o médico baiano Perseu Almeida (de branco), foi confundido com um miliciano – Imagem: Redes sociais

Na noite da tragédia, olheiros de Lesk confundiram o ortopedista Perseu Almeida com o miliciano Taillon Barbosa, que dias antes deixara a cadeia e morava a 750 metros do quiosque. Tiveram a grande ideia de eliminar ali mesmo o rival. Na visão dos assassinos, seria uma bela vingança da morte de Paulo Aragão Furtado, o Vin Diesel, aliado de Lesk e, segundo a polícia, morto a mando do pai de Barbosa. Para o poder paralelo, foi uma ação destrambelhada e punida com base na lei do cão. Para os familiares das vítimas, uma desgraça que marcará para sempre suas vidas.

Em meio a tanta escuridão, é possível vislumbrar alguma luz? Para especialistas, passos iniciais óbvios precisam ser dados. “Um dos pontos principais que ficam sempre ausentes da discussão é o combate à corrupção e cooptação de agentes públicos. Não há como um grupo organizado se fortalecer dessa maneira e operar em tantas frentes, como tráfico de drogas, exploração ilegal de jogo, tevê a cabo, transporte clandestino, desvio de combustível e roubo de carga, sem que haja forte participação de agentes do Estado”, afirma Bruno Langeani, dirigente do Instituto Sou da Paz, entidade que organizou o estudo sobre os índices de resolução de homicídios nos estados brasileiros. No Rio, diz, há cooptação tanto de policiais ­estaduais quanto de forças federais, Judiciário e Legislativo: “Sem um grande plano de enfrentamento desta corrupção, é difícil gerar resultados de impacto”.

Em apenas 11 horas, o CV prendeu, julgou, condenou e executou a sentença de morte dos responsáveis pelo assassinato de três médicos na Barra

O antropólogo e escritor Luiz Eduardo Soares afirma que a corrupção policial deve “deixar de ser tratada cinicamente” pelas autoridades, que agem como se houvesse apenas casos de desvios de conduta individuais. Como estrutura dessa corrupção, Soares identifica quatro práticas amplamente disseminadas hoje no Rio: o “arrego”, tradicional acordo financeiro com traficantes; a presença de empresas ilegais de segurança privada criadas e geridas por policiais; o crescimento do número de policiais que atuam também como milicianos; e a projeção territorial e política dos interesses de milicianos e policiais: “Os quatro tópicos são fruto de uma só matriz, uma espécie de patologia que fere o espírito da Lei Maior: a autonomização alcançada pelas polícias, que as transformou em verdadeiro enclave institucional, refratário à autoridade política civil e ao Estado Democrático de Direito”. Daí, continua o especialista, vem “a majoritária adesão ideológica do setor ao fascismo bolsonarista”.

Presa a práticas do passado enquanto o crime se moderniza a cada dia, a polícia fluminense repetiu o tradicional repertório de retaliação aos criminosos. Na segunda-feira 9, ocupou a Cidade de Deus e os complexos da Penha, do Alemão e da Maré, este último prestes a sofrer uma ocupação permanente que contará com 300 homens da Força Nacional de Segurança e mobilizará um efetivo total de mil homens, segundo o governo do Rio. Batizado de Operação Maré, o ensaio desta semana repetiu os erros de planejamento de sempre e resultou em 69 escolas e cinco postos de saúde fechados, 35 mil estudantes sem aula e moradores apavorados com a troca de tiros entre traficantes em terra e policiais em um helicóptero. Apesar do manjado clima de vendeta, o objetivo alegado para a operação era cumprir 60 mandados de prisão nas comunidades. Apenas nove foram efetuadas, além da prisão de um terceiro-sargento da ativa da Polícia Militar, que tentava sair da Maré em um caminhão que transportava 150 quilos de pasta-base de cocaína. Repita-se: o Rio não é para principiantes.

Lesk, o mandante do crime mal planejado, foi encontrado morto no porta-malas de um automóvel

Também fiel ao script, Cláudio Castro elogiou as polícias Civil e Militar pela “grande ação” realizada nas comunidades. “Estamos libertando os moradores das amarras do tráfico e da milícia, demolindo barricadas em vias públicas e devolvendo o sagrado direito de ir e vir em paz. Isso é só o começo, não recuaremos um milímetro sequer”, disse o governador. Dias após afirmar que, na sua gestão, “é porrada na criminalidade”, Castro parece ter adotado de vez o tom bravateiro de seu antecessor, o cassado Wilson Witzel, aquele que celebrou como um gol a morte de um sequestrador na Ponte Rio-Niteroi e incentivou a polícia a “mirar na cabecinha” dos bandidos e atirar.

Na vida real, os 140 mil moradores da Maré se preparam para dias difíceis. Todos se lembram da ocupação de um ano e meio entre 2014 e 2015, consequência de uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que originou relatos e denúncias de diversas violações dos direitos humanos cometidas por agentes de segurança, de furtos a estupros. “É necessário refletir, de forma crítica e cautelosa, a partir do histórico das ocupações anteriores. É preciso criar alternativas às estratégias militares e belicistas”, afirmou, em nota, a organização Redes da Maré. Relatos locais dão conta de que vários moradores já estariam “escondendo” eletrodomésticos em casas de parentes fora da comunidade porque, da vez anterior, muitos teriam sido levados por policiais.

O ministro Flávio Dino lançou plano para enfrentar o crime organizado com uso de “força” e “inteligência” – Imagem: Isaac Amorim/MJSP

Desta vez, o Complexo da Maré foi escolhido após a exibição na televisão de imagens do que parecia ser um treinamento realizado por traficantes em um clube no meio da favela. Além do efetivo que incluirá agentes da Força Nacional, da PM, da Polícia Civil e da Polícia Rodoviária Federal, serão mobilizados exclusivamente para a operação três helicópteros, 12 veículos blindados (os populares caveirões) e 50 viaturas. Também está previsto o uso de drones com inteligência artificial e capazes de fazer o reconhecimento facial de criminosos procurados. Para Langeani, a operação “é mais do mesmo, sem grandes perspectivas de melhorias reais”. A experiência, diz, mostra que não há sucesso em ocupações de longo período: “Elas trazem pouca efetividade em termos de prisões de alto escalão ou grandes apreensões, além de gerar um grande prejuízo às populações locais, uma vez que fazem com que estas sejam privadas de usar equipamentos públicos como escolas, creches e postos de saúde. Isso impacta a capacidade de os moradores obterem renda para o seu sustento”.

Soares afirma que a busca por medidas imediatas como as ocupações “faz parte da tragédia do Rio” e apenas ecoa o discurso hegemônico de que é preciso agir com mais intensidade contra os bandidos. “Segundo essa visão, o que falta é força, violência, mais execuções extrajudiciais e mais encarceramentos em massa. É exigida uma solução imediata que, por ser absolutamente impossível ante um quadro tão complexo, acaba se tornando apenas uma autorização para pseudossoluções militarizadas como GLOs, ocupações e intervenções das Forças Armadas.” O especialista considera que o negacionismo é o primeiro obstáculo a ser vencido: “Já passou da hora de adotarmos uma perspectiva minimamente racional, o que nos levaria a reconhecer que as políticas e os métodos empregados até aqui não funcionaram. Ao contrário, seu fracasso tem agravado os problemas”.

As intervenções anteriores colecionam denúncias de violações aos direitos humanos nas favelas ocupadas

Com repercussão e impacto nacionais, o assassinato dos três ortopedistas no Rio recolocou em pauta a discussão sobre o desmembramento do Ministério da Justiça para a criação de um Ministério da Segurança Pública, promessa de campanha do presidente Lula que perdeu força após a nomeação de Flávio Dino para a pasta da Justiça: “É importante ter um ministério específico nessa área, para que se possa dedicar exclusivamente a montar uma estratégia conjunta de combate à criminalidade com as forças de segurança dos estados e municípios. À criação do Ministério da Segurança Pública deve seguir o anúncio de várias medidas articuladas com os governos estaduais”, diz o deputado federal Jilmar Tatto, do PT, um dos entusiastas da ideia.

Cotado para assumir o comando da nova pasta, caso ela venha mesmo a ser criada, Ricardo Capelli, atualmente secretário-executivo do Ministério da Justiça, se disse consternado pela barbárie carioca. Os sérios problemas de segurança vividos em diversos estados brasileiros, com destaque para o Rio e Bahia, tornam o enfrentamento ao crime organizado uma tarefa para ontem. “O Brasil tem leis e regras. Tem um Estado de Direito que precisa ser e será respeitado. Não tem cabimento organizações criminosas cometerem um crime e elas mesmas resolverem esse crime”, diz Capelli.

Capelli é cotado para assumir o Ministério da Segurança Pública após divisão da pasta da Justiça – Imagem: Tomaz Silva/ABR

Já Luiz Eduardo Soares avalia que o fato de o governo federal enviar ao Rio de Janeiro grupamentos da Força Nacional pode nada significar do ponto de vista prático, mas corresponderá ao estabelecimento de uma parceria de grande significado político. “O governo bolsonarista do Rio quer essa aliança para dividir os ônus do banho de sangue. Espero que o presidente Lula, cuja vitória já nos salvou do fascismo, recuse o abraço de afogado que poderia nos tragar para um naufrágio futuro. Não nos esqueçamos de que o Rio é o principal berço dos inimigos da democracia.” •

Publicado na edição n° 1281 de CartaCapital, em 18 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ”

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo