Justiça

Plano que livraria Bolsonaro da ação do golpe nasceu morto, mas força novo desgaste ao STF

A Corte barrará a artimanha e manterá o processo contra Ramagem (exceto por dois crimes) e os demais réus, inclusive o ex-capitão

Plano que livraria Bolsonaro da ação do golpe nasceu morto, mas força novo desgaste ao STF
Plano que livraria Bolsonaro da ação do golpe nasceu morto, mas força novo desgaste ao STF
O ex-presidente Jair Bolsonaro, em 4 de maio de 2025. Foto: Evaristo Sá/AFP
Apoie Siga-nos no

Sem surpresas, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, rejeitar a manobra da Câmara para livrar o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ) de toda a ação penal do golpe e, de quebra, lançar uma boia de salvação ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O julgamento terminou neste sábado 10.

Votaram nesse sentido os ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Flávio Dino, Luiz Fux e Cármen Lúcia.

Ao aprovarem, na última quarta-feira 7, uma proposta genérica que flertava com o cancelamento integral da investigação sobre a tentativa de golpe, os deputados dobraram a aposta em uma estratégia inviável, uma vez que o STF já havia deixado claro que não toleraria artimanhas.

Entenda, em resumo, a cronologia do caso:

  • 26 de março: o STF torna réus Ramagem, Bolsonaro e mais seis integrantes do “núcleo crucial” da trama golpista;
  • 1º de abril: o PL protocola na Câmara a proposta de sustar a ação penal contra Ramagem;
  • 24 de abril: Cristiano Zanin, presidente da Primeira Turma do STF, avisa à Câmara que ela não poderia sequer trancar na íntegra a ação contra Ramagem;
  • 7 de maio: A toque de caixa, a Comissão de Constituição e Justiça e o plenário da Câmara aprovam a proposta do PL, em um claro desafio ao STF;
  • 8 de maio: A Câmara comunica formalmente ao STF a aprovação do texto. Zanin marca uma sessão extraordinária para avaliar;
  • 9 de maio: A maioria da Primeira Turma rejeita a manobra da Câmara.

O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), não viu com bons olhos o envio do ofício por Zanin no fim de abril. Ele e outros deputados avaliaram se tratar de uma interferência indevida no Legislativo, uma vez que a Casa ainda não havia analisado a demanda do PL. A reação de Motta explica a aprovação-relâmpago, com poucas horas de diferença, na CCJ e no plenário.

A articulação do PL estava desde o início fadada ao fracasso jurídico porque a Constituição, por óbvio, não prevê a possibilidade de o Congresso Nacional paralisar por inteiro uma ação penal no STF que atinge outras pessoas além de parlamentares.

O que a Carta Magna autoriza é a suspensão de ações contra deputados ou senadores por crimes ocorridos após a diplomação. Não há aval, portanto, para interromper processos contra outras pessoas ou mesmo contra congressistas por crimes anteriores à diplomação.

Dos cinco crimes imputados a Ramagem pela Procuradoria-Geral da República, três teriam sido praticados antes da diplomação: organização criminosa, golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Ou seja, os deputados poderiam sustar a ação penal apenas em relação aos dois crimes restantes: dano qualificado e deterioração do patrimônio tombado, ambos relacionados aos atos de 8 de Janeiro de 2023.

Moraes votou tão logo o julgamento no plenário virtual começou. Em um documento com frases em negrito e reiterado uso de maiúsculas — como é de praxe em manifestações do ministro —, ele concluiu: “Os requisitos do caráter personalíssimo (imunidade parlamentar) e temporal (crimes praticados após a diplomação), previstos no texto constitucional, são claros e expressos, no sentido da impossibilidade de aplicação dessa imunidade a corréus não parlamentares e a infrações penais praticadas antes da diplomação”.

Flávio Dino não se limitou a seguir Moraes e publicou um voto incisivo, com recados diretos à Câmara:  “Somente em tiranias um ramo estatal pode concentrar em suas mãos o poder de aprovar leis, elaborar o orçamento e executá-lo diretamente, efetuar julgamentos de índole criminal ou paralisá-los arbitrariamente – tudo isso supostamente sem nenhum tipo de controle jurídico”.

Na prática, o Supremo derrubou parcialmente a proposta e autorizou somente a sustação da ação contra Ramagem pelos dois crimes supostamente cometidos depois da diplomação. O processo também prosseguirá normalmente contra todos os corréus.

Moraes teve de se pronunciar sobre os demais réus — entre eles Bolsonaro — porque o texto da Câmara era tão amplo que em momento algum limitava a Ramagem o benefício da suspensão do processo. A interpretação teratológica partiu do deputado Alfredo Gaspar (AL), da ala bolsonarista do União Brasil. “Não resta alternativa a esta Casa que não o sobrestamento da ação penal em sua integralidade”, dizia um trecho do parecer que o plenário, por 315 votos a 143, chancelou.

Ao abraçar uma proposta evidentemente inconstitucional, a Câmara, com o beneplácito de seu presidente, provocou mais uma dose de desgaste para o STF frente a uma parcela da política e da sociedade, posto que os ministros tiveram de invalidar, novamente, um ato do Legislativo. Isso serve para turbinar a versão bolsonarista de que a Corte invade as prerrogativas de deputados e senadores e persegue a extrema-direita.

O método é claro. Ainda na tarde desta sexta-feira, o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante (RJ), provocou o chefe da Casa: “Um ministro está se sobrepondo à vontade de toda a Câmara. Com a palavra, o presidente Hugo Motta. Vai defender a soberania do Parlamento ou assistir calado?”.

Na mesma linha, o líder da oposição, Luciano Zucco (PL-RS), sinalizou um incentivo à desordem institucional ao declarar que o Parlamento “não aceitará ser reduzido a um espectador passivo de suas próprias atribuições”.

Concluída a reação do Supremo ao estratagema da Câmara, começará a etapa de instrução criminal, com depoimentos de testemunhas e produção de provas. Depois, sem data definida, a Primeira Turma decidirá se condena ou absolve cada réu.

Em caso de condenação, os ministros terão de fixar a dosimetria das penas — ou seja, por quanto tempo os réus ficarão presos. Os crimes atribuídos a Bolsonaro pela PGR, por exemplo, totalizam 43 anos de prisão, mas no Brasil o tempo máximo de cumprimento efetivo da pena é de 40 anos.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo