Justiça
Plano que livraria Bolsonaro da ação do golpe nasceu morto, mas força novo desgaste ao STF
A Corte barrará a artimanha e manterá o processo contra Ramagem (exceto por dois crimes) e os demais réus, inclusive o ex-capitão


Sem surpresas, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, rejeitar a manobra da Câmara para livrar o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ) de toda a ação penal do golpe e, de quebra, lançar uma boia de salvação ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). O julgamento terminou neste sábado 10.
Votaram nesse sentido os ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Flávio Dino, Luiz Fux e Cármen Lúcia.
Ao aprovarem, na última quarta-feira 7, uma proposta genérica que flertava com o cancelamento integral da investigação sobre a tentativa de golpe, os deputados dobraram a aposta em uma estratégia inviável, uma vez que o STF já havia deixado claro que não toleraria artimanhas.
Entenda, em resumo, a cronologia do caso:
- 26 de março: o STF torna réus Ramagem, Bolsonaro e mais seis integrantes do “núcleo crucial” da trama golpista;
- 1º de abril: o PL protocola na Câmara a proposta de sustar a ação penal contra Ramagem;
- 24 de abril: Cristiano Zanin, presidente da Primeira Turma do STF, avisa à Câmara que ela não poderia sequer trancar na íntegra a ação contra Ramagem;
- 7 de maio: A toque de caixa, a Comissão de Constituição e Justiça e o plenário da Câmara aprovam a proposta do PL, em um claro desafio ao STF;
- 8 de maio: A Câmara comunica formalmente ao STF a aprovação do texto. Zanin marca uma sessão extraordinária para avaliar;
- 9 de maio: A maioria da Primeira Turma rejeita a manobra da Câmara.
O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), não viu com bons olhos o envio do ofício por Zanin no fim de abril. Ele e outros deputados avaliaram se tratar de uma interferência indevida no Legislativo, uma vez que a Casa ainda não havia analisado a demanda do PL. A reação de Motta explica a aprovação-relâmpago, com poucas horas de diferença, na CCJ e no plenário.
A articulação do PL estava desde o início fadada ao fracasso jurídico porque a Constituição, por óbvio, não prevê a possibilidade de o Congresso Nacional paralisar por inteiro uma ação penal no STF que atinge outras pessoas além de parlamentares.
O que a Carta Magna autoriza é a suspensão de ações contra deputados ou senadores por crimes ocorridos após a diplomação. Não há aval, portanto, para interromper processos contra outras pessoas ou mesmo contra congressistas por crimes anteriores à diplomação.
Dos cinco crimes imputados a Ramagem pela Procuradoria-Geral da República, três teriam sido praticados antes da diplomação: organização criminosa, golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Ou seja, os deputados poderiam sustar a ação penal apenas em relação aos dois crimes restantes: dano qualificado e deterioração do patrimônio tombado, ambos relacionados aos atos de 8 de Janeiro de 2023.
Moraes votou tão logo o julgamento no plenário virtual começou. Em um documento com frases em negrito e reiterado uso de maiúsculas — como é de praxe em manifestações do ministro —, ele concluiu: “Os requisitos do caráter personalíssimo (imunidade parlamentar) e temporal (crimes praticados após a diplomação), previstos no texto constitucional, são claros e expressos, no sentido da impossibilidade de aplicação dessa imunidade a corréus não parlamentares e a infrações penais praticadas antes da diplomação”.
Flávio Dino não se limitou a seguir Moraes e publicou um voto incisivo, com recados diretos à Câmara: “Somente em tiranias um ramo estatal pode concentrar em suas mãos o poder de aprovar leis, elaborar o orçamento e executá-lo diretamente, efetuar julgamentos de índole criminal ou paralisá-los arbitrariamente – tudo isso supostamente sem nenhum tipo de controle jurídico”.
Na prática, o Supremo derrubou parcialmente a proposta e autorizou somente a sustação da ação contra Ramagem pelos dois crimes supostamente cometidos depois da diplomação. O processo também prosseguirá normalmente contra todos os corréus.
Moraes teve de se pronunciar sobre os demais réus — entre eles Bolsonaro — porque o texto da Câmara era tão amplo que em momento algum limitava a Ramagem o benefício da suspensão do processo. A interpretação teratológica partiu do deputado Alfredo Gaspar (AL), da ala bolsonarista do União Brasil. “Não resta alternativa a esta Casa que não o sobrestamento da ação penal em sua integralidade”, dizia um trecho do parecer que o plenário, por 315 votos a 143, chancelou.
Ao abraçar uma proposta evidentemente inconstitucional, a Câmara, com o beneplácito de seu presidente, provocou mais uma dose de desgaste para o STF frente a uma parcela da política e da sociedade, posto que os ministros tiveram de invalidar, novamente, um ato do Legislativo. Isso serve para turbinar a versão bolsonarista de que a Corte invade as prerrogativas de deputados e senadores e persegue a extrema-direita.
O método é claro. Ainda na tarde desta sexta-feira, o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante (RJ), provocou o chefe da Casa: “Um ministro está se sobrepondo à vontade de toda a Câmara. Com a palavra, o presidente Hugo Motta. Vai defender a soberania do Parlamento ou assistir calado?”.
Na mesma linha, o líder da oposição, Luciano Zucco (PL-RS), sinalizou um incentivo à desordem institucional ao declarar que o Parlamento “não aceitará ser reduzido a um espectador passivo de suas próprias atribuições”.
Concluída a reação do Supremo ao estratagema da Câmara, começará a etapa de instrução criminal, com depoimentos de testemunhas e produção de provas. Depois, sem data definida, a Primeira Turma decidirá se condena ou absolve cada réu.
Em caso de condenação, os ministros terão de fixar a dosimetria das penas — ou seja, por quanto tempo os réus ficarão presos. Os crimes atribuídos a Bolsonaro pela PGR, por exemplo, totalizam 43 anos de prisão, mas no Brasil o tempo máximo de cumprimento efetivo da pena é de 40 anos.
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