Política
Pistas falsas
A PF mira os interessados em atrapalhar as investigações do assassinato de Marielle Franco


Enquanto espera baixar a poeira do vazamento de parte da delação premiada de Ronnie Lessa, a Polícia Federal atua para desvendar por quais razões as investigações sobre os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes foram tão atrapalhadas por pistas falsas, cascas de banana e tentativas de emplacar bodes expiatórios durante os cinco anos em que estiveram sob a batuta da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio de Janeiro.
Em um estado onde a milícia se infiltra progressivamente no Poder Público, trata-se de uma apuração de grande importância. As evidências da interferência de agentes de segurança de diversas esferas para manter o caso sem solução por todo esse tempo cresceram com a descoberta de que a estrutura paralela de arapongagem organizada na Agência Brasileira de Inteligência durante o governo Bolsonaro foi utilizada para montar dossiês ou coletar documentos sobre ao menos um delegado e uma promotora envolvidos nas investigações. Se a sabotagem parece evidente, agora o Brasil precisa saber quem exatamente a promoveu e por quais motivações.
Segundo a PF, agentes da “Abin paralela” coletaram e imprimiram arquivos sobre o caso entre 2019 e 2021. Os registros, descobertos pela Controladoria-Geral da União, mostram, entre outras, que em setembro de 2020 o policial federal Marcelo Bormevet imprimiu um relatório, de autoria ainda não identificada, sobre o delegado Daniel Rosa, à época coordenador das investigações sobre o crime na Polícia Civil, afastado do cargo no mesmo mês pelo então chefe da instituição, Allan Turnowski. Em junho do ano seguinte, outro policial federal, Felipe Arlotta, imprimiu um segundo relatório, desta vez sobre as movimentações daqueles que àquela altura pediam a federalização do caso. Tanto Bormevet quanto Arlotta chegaram à Abin pelas mãos do deputado federal Alexandre Ramagem, do PL, diretor-geral da agência no governo Bolsonaro e apontado como um dos organizadores da arapongagem presidencial.
Os federais querem saber: houve apenas negligência e incompetência ou algo pior?
Em relatório enviado ao Supremo Tribunal Federal, a CGU revela que, em dezembro de 2019, o próprio Ramagem “imprimiu diversas anotações” produzidas sobre o andamento das investigações. Dois meses antes, o então chefe da Abin utilizou seu computador para imprimir o currículo da promotora Simone Sibilio, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado. À frente do caso desde o dia do crime, Sibilio e sua colega Letícia Emile pediram afastamento em 2021, sob alegação de “pressões” que até hoje permanecem não esclarecidas. Às autoridades, Ramagem nega envolvimento. À GloboNews, o deputado disse “não saber como é possível” o documento ter sido impresso a partir de seu PC. “É o currículo da promotora e parece que é uma informação que circulou aí. A inteligência é a coleta de dados e informações. Tem que verificar quem o colocou no sistema e perguntar a essa pessoa o porquê.”
Descobrir se, de fato, houve algum tipo de ingerência por parte de Ramagem – e do governo Bolsonaro – na condução das investigações sobre o assassinato será salutar. E também esclarecer se houve interação entre o ex-diretor da Abin e Turnowski, outro filiado ao PL, ex-secretário de Polícia Civil do governador Cláudio Castro e candidato a deputado federal pelo partido nas últimas eleições. Detalhe: Turnowski, que não foi eleito, deixou a cadeia dias antes da disputa eleitoral por decisão do ministro Kassio Nunes Marques, do STF.
O delegado havia sido preso em setembro de 2022, acusado pelo Ministério Público fluminense de atrapalhar as investigações contra uma organização criminosa que agia em Petrópolis, na região serrana. A investigação revelou uma troca de mensagens entre Turnowski e o colega Maurício Demétrio, também réu no processo que corre na 1ª Vara Criminal Especializada em Organização Criminosa do Rio, na qual ambos debocham de Marielle, assim que foi confirmada a sua morte: “O enterro será no (Cemitério do) Caju, mas a comemoração alguém sabe onde será?”, escreveu Demétrio. Turnowski respondeu com emojis de carinhas com olhos em formato de coração. O diálogo foi revelado meses após Castro ter apresentado Turnowski à família de Marielle como seu “homem de confiança”, como relatou a CartaCapital a vereadora Monica Benicio, do PSOL, viúva de Marielle. Isso evidencia, diz a parlamentar, que o caso foi tratado com desinteresse. “Pior, que pode ter havido interferência para não chegarmos à sua elucidação.”
Pressão. Almada conduziu uma investigação da investigação. Rosa foi afastado do caso – Imagem: Tânia Rêgo/ABR e Fernando Frazão/ABR
A falta de confiança nas autoridades de segurança pública fluminense espalha-se na PF e também entre os executores de Marielle. Para aceitar a delação, Lessa pediu garantia de proteção para a mulher e filhos. O medo de uma possível queima de arquivo faz com que o ex-policial militar ainda relute sobre o pedido de transferência do presídio federal de Campo Grande e um eventual retorno ao Rio. Entre as autoridades federais, a desconfiança ficou explícita quando veio do Ministério da Justiça a ordem para que a delação de Lessa tramite sob os cuidados do Ministério Público Federal, e não mais da Procuradoria carioca.
Segundo o sociólogo Ignacio Cano, especialista em Segurança Pública da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o caso Marielle mostrou ser preciso federalizar algumas investigações. “A Justiça Federal reluta em federalizar os crimes. O protocolo manda que um caso só deve ser federalizado quando a Justiça Estadual não cumpre sua função, mas, considerando o funcionamento da Polícia Civil e do Ministério Público no Rio, e em um caso com tanta repercussão política, as investigações deveriam ter sido federalizadas antes. Perdeu-se tempo demais.”
Ao decidir entrar nas investigações, pela segunda vez, em fevereiro do ano passado, a PF apresentou como primeiro trunfo a delação premiada com o ex-policial militar Élcio de Queiroz, motorista do carro que conduziu Lessa no dia do crime. Em seu depoimento, Queiroz denunciou ter tomado conhecimento de tentativas de extorsão feitas por policiais civis ao atirador. “Como eu vou confiar em uma polícia que estava o tempo todo negociando com o Ronnie?”, perguntou, ao justificar seu longo silêncio.
“Quem se beneficiou com todo esse tempo em que passamos sem respostas?”, pergunta a vereadora Monica Benicio, viúva de Marielle
Além da denúncia de corrupção policial, Queiroz colocou a PF em pistas importantes negligenciadas nas investigações estaduais. Da longa lista de novidades surgidas em sua delação constam, por exemplo, peças importantes na compreensão da dinâmica do crime, como quem fez o contato inicial para a contratação de Lessa, quem cedeu o carro usado no dia da ocorrência e quem o descartou após o duplo assassinato. Só então surgiram os nomes do ex-policial Edimilson de Oliveira da Silva, o Macalé, intermediário da contratação de Lessa e executado em 2021, do ex-bombeiro Maxwell Simões Corrêa, o Suel, apontado como o homem que forneceu a arma e o carro no dia do crime, e do mecânico Edilson Barbosa, o Orelha, suposto responsável pelo desmanche do Cobalt usado pelos assassinos.
A própria rota de fuga só foi descoberta após a entrada da PF em cena. Apesar da dificuldade enfrentada pelas autoridades estaduais em conseguir essas informações, bastou as investigações mudarem de mãos para surgirem imagens de alguns pontos do percurso, inclusive o desembarque de Lessa e Queiroz em uma rua de grande circulação – e repleta de câmeras – no Méier, bairro da Zona Norte carioca. “Não tenho competência técnica para afirmar que houve sabotagem, mas que houve erros graves na investigação é público e notório”, diz Benicio.
Hoje superintendente da PF no Rio, o delegado Leandro Almada foi responsável em 2019 por produzir um relatório de mais de 600 páginas sobre a “efetividade” da polícia fluminense na elucidação do crime, naquilo que ficou conhecido entre os policiais federais como a “investigação da investigação”. Na ocasião, a PF desarticulou a farsa montada para tentar incriminar o então vereador Marcelo Siciliano e o miliciano Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, condenado a 25 anos de prisão em 2022 por outros crimes. O falso testemunho contra os dois foi dado pelo então policial militar Rodrigo Jorge Ferreira, o Ferreirinha, que responde por obstrução à Justiça. Antes, outra falsa acusação havia levado as autoridades a investigar o ex-vereador Cristiano Girão, apontado como chefe da milícia que domina o bairro de Gardênia Azul, na Zona Oeste do Rio, e condenado por formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.
Arapongagem. A promotora Sibilio foi alvo da “Abin paralela” de Bolsonaro – Imagem: Tânia Rêgo/ABR
Procurado pela reportagem, Almada afirmou, por intermédio de sua assessoria, que não quer se pronunciar sobre o andamento das investigações. Nos corredores da PF do Rio, comenta-se que o vazamento da informação de que Lessa teria apontado o conselheiro do Tribunal de Contas, Domingos Brazão, como mandante do crime causou uma mudança no ritmo do inquérito. “Os vazamentos atrapalharam o cronograma previsto”, resumiu uma fonte. A promotora Sibilio e o delegado Rosa, segundo as assessorias de seus respectivos órgãos de atuação, também não desejam se pronunciar neste momento.
Enquanto não surgem outras novidades sobre o caso, algumas pontas permanecem soltas. Uma delas diz respeito à suposta ligação de Macalé com o banqueiro do jogo do bicho Bernardo Bello, um dos maiores contraventores do Rio, atualmente foragido. “Há suspeitas de que algumas pessoas na Polícia Civil acobertavam grupos de assassinos de aluguel, e é por isso que durante tantos anos estes matavam, sob encomenda, sem o menor problema. É muito importante que se investiguem determinados circuitos dentro da polícia do Rio que permitiam o funcionamento impune desses grupos”, diz Cano.
Presidente da Fundação Marielle Franco, a deputada estadual gaúcha Luciana Genro afirma que chegar ao mandante do crime é importante, mas não suficiente. “Se houve obstrução nas investigações, significa que há tentáculos do crime organizado nas instituições do Estado. Isso precisa ser investigado e elucidado.” Monica Benicio afirma não acreditar que todo esse tempo sem respostas tenha sido ocasionado apenas por incompetência das autoridades envolvidas. “Faltou vontade política. Me pergunto: quem se beneficiou com todo esse tempo em que passamos sem respostas?” •
Publicado na edição n° 1297 de CartaCapital, em 14 de fevereiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Pistas falsas’
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