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Perigo sintético

Os efeitos devastadores das “drogas K” assustam profissionais da saúde e da segurança pública

Desinformação. Criada para simular o efeito da maconha, a substância é pouco consumida na Cracolândia, ao contrário do que afirmam certas reportagens – Imagem: 3Cia BPM/PMPR e Wagner Origines/SMADS/Prefeitura SP
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Preconceito e desinformação potencializam os danos de um novo entorpecente em circulação em São Paulo, mais intenso e letal do que o crack. Trata-se da K9, também chamada de K2, K4, “maconha sintética” ou spice. A fórmula é desconhecida e circulam informações equivocadas sobre o perfil dos consumidores. Eles não se concentram na Cracolândia, como se presumia, mas se espalham pelas periferias da cidade. Carlos Castiglioni, do Departamento de Investigação sobre Narcóticos de São Paulo, explica que as novas substâncias têm sido chamada pelos policiais de “drogas K”. “Existem dois tipos: a que nós chamamos de K2, e temos apreendido com mais frequência, consumida como um cigarro. A K4, ou K9, apresenta-se na forma líquida, e podemos dizer que é utilizada como LSD, ou seja, borrifada em papel e aplicada na língua.”

O preço baixo atrai usuários pobres, em especial jovens e adolescentes. Há poucos meses começaram a chegar pedidos de socorro dos Centros de Atenção Psicossociais, os CAPS, dos bairros periféricos. “A substância tem sido encontrada na Cracolândia, mas em menor escala, o foco está realmente nas periferias. Não é um produto que circula nas baladas de elite”, afirma Castiglioni. Produzida em laboratório, a droga busca reproduzir os efeitos da Cannabis e sua fórmula original veio da Índia ou da China, conforme levantamento do Instituto de Criminalística.

Policiais que trabalham em campo, e preferiram não se identificar, revelam que a intensidade e a letalidade têm levado traficantes a proibir a venda em certos pontos, como forma de evitar a exposição das “bocas de fumo”. Entre os efeitos colaterais estão a perda da consciência, náusea, vômito, hipertensão arterial, arritmia cardíaca, acidentes vasculares, insuficiência renal, contrações involuntárias dos músculos, tremores e dores difusas. Os sintomas residuais são ainda mais complexos: paranoia, ideação suicida, delírios, alucinações, crises de pânico e ansiedade, compulsões e agressividade. Os efeitos da substância no organismo a longo prazo ainda são desconhecidos.

Professor de História Moderna da Universidade de São Paulo, Henrique Carneiro é referência no debate a respeito da legalização dos entorpecentes e tem visto com preocupação o avanço das drogas K. “É um fenômeno análogo ao que ocorreu na Lei Seca, nos Estados Unidos. Quando se proibiu o álcool, houve uma enorme contaminação do álcool clandestino com metanol, o que levou à morte milhares de consumidores.” A proibição e a falta de controle favorecem a manipulação de substâncias químicas extremamente nocivas em laboratórios clandestinos. Assim nasceram a metanfetamina nos Estados Unidos e o Krokodil, na Rússia, este produzido a partir de resíduos da heroína.

Segundo Carneiro, a política de guerra às drogas, em vez de evitar, fomenta a criação de substâncias cada vez mais nocivas. “Um mercado clandestino é um mercado desregulado completamente, sem qualquer tipo de controle, inclusive de qualidade, de dosagem e de composição. Muitas mortes acontecem em razão dessa falta de informação”. O professor acrescenta: “A tendência ao consumo de drogas é universal e não vai desaparecer. O papel do Estado deve ser garantir a fiscalização, e isso é impossível se o mercado é clandestino. A saída seria a legalização das drogas. Uma vez que estamos distantes dessa possibilidade, um passo intermediário seria uma política pública para facilitar kits de testagem, que permitiriam ao usuário saber o que está consumindo”.

A fórmula é desconhecida. A substância ganha terreno nas periferias de São Paulo

As substâncias produzidas a partir de resíduos costumam ter valor baixo e são destinadas a um público de baixa renda, o que cria, segundo Carneiro, um apartheid farmacológico. “A elite cheira cocaína, os pobres consomem crack. A elite tem à sua disposição maconha produzida em estufa e fuma só as flores, enquanto a grande massa de consumidores é exposta a um produto de origem duvidosa, o chamado ‘prensado’, e a coisa fica ainda mais nociva quando vai para o campo dos sintéticos. É o que estamos vendo agora com esse K9.”

Para Ana Luíza Uwai, que atua no Centro de Convivência “É de Lei”, o debate sobre as drogas K lembra as discussões a respeito da maconha nos anos 1990 e, depois, do crack. “Essa forma sensacionalista só serve para estigmatizar os usuários, colocá-los em guetos, e muitas vezes impedi-los de buscar ajuda pela vergonha e o medo de represálias. Ou seja, não ajuda em nada.” Uwai prossegue: “Quando dizem que o K9 tem ‘efeito zumbi’, é uma forma de desumanizar o usuário. Sabemos que os maiores consumidores são os jovens da periferia. Eles são os principais alvos de abordagem policial abusiva, vítimas de violência, de racismo, de preconceito. Existe todo um contexto que faz esse público recorrer às drogas. E com o proibicionismo, fica mais difícil desenvolver uma política eficiente de redução de danos”.

Como a nova substância ainda tem fórmula desconhecida, aumentam os desafios de quem trabalha com redução de danos. “O que a gente tem feito? Não tem como impedir alguém de usar droga, então a gente orienta para que isso seja feito em condições de segurança.” E quais são? Estar acompanhado de pessoas de confiança, alimentar-se bem, beber água e sempre experimentar qualquer substância em pequenas quantidades para ver como o organismo vai reagir. “A gente sabe que só dizer que não pode usar porque é proibido não impede ninguém. Então, o trabalho da redução de danos é conseguir falar abertamente sobre os efeitos e as consequências, mas a criminalização tem dificultado até isso.” •

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Perigo sintético’

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