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Perdeu, mané!

Desprezado até por aliados, Bolsonaro só conta com o apoio de seus radicais seguidores. Quando a lona do circo vai cair de vez?

Perdeu, mané!
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A matilha bolsonarista faz súplicas por uma “intervenção federal“ das Forças Armadas, eufemismo para golpe de Estado. Sem poder e traído até por aqueles que usaram seu prestígio para se eleger, o “Mito” se isola no palácio e mantém a boca fechada. Eis a primeira grande realização de Lula - Imagem: Tércio Teixeira/AFP e Alan Santos/PR
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De joelhos no chão, com os olhos cerrados e as mãos espalmadas sobre a parede, os fiéis oram por uma intervenção divina. A genuflexão evoca a lembrança do Muro das Lamentações, em Jerusalém, onde os judeus também se reúnem para adorar a Deus diante de um paredão, embora os religiosos de rótulas calejadas prefiram levar uma cadeira para cumprir o ritual. Essa não é, porém, a única diferença. Em Israel, os hebreus vestem roupas sóbrias, normalmente na cor preta, e guardam um sepulcral silêncio diante da estrutura sagrada, único vestígio do Templo de Herodes. Por aqui, os devotos vestem roupas com cores extravagantes e o Pai-Nosso é interrompido aos gritos dos vendedores ambulantes: “Olha a bandeira, olha a bandeira, olha a bandeira!”

A corrente de orações foi registrada em vídeo gravado no entorno do Comando Militar do Sudeste, em São Paulo, durante a celebração da Proclamação da República, mas tornou-se corriqueira nas instalações militares por todo o País. Os fiéis da seita bolsonarista também cultuaram os muros do Quartel-General do Exército, em Brasília, e do Comando da Artilharia Divisionária da 1ª Divisão do Exército, em Niterói. No interior do Paraná, manifestantes chegaram a cantar o Hino Nacional para um pneu de trator. Convencidos por relatos nas redes sociais de que as eleições foram fraudadas, os devotos não estão interessados em curas milagrosas ou auxílio celestial nos negócios. Em vez de pedidos pessoais, clamam por “intervenção federal” das Forças Armadas, eufemismo para golpe armado. Cansado de não ter as súplicas atendidas, um deles chegou a pular de uma ponte em Juiz de Fora, na Zona da Mata Mineira, após gritar: “Exército, salve o Brasil!”

O silêncio do capitão cumpre o objetivo de manter acesa a chama golpista, sem o risco de ser acusado pelo crime

Aparentemente, os fardados querem salvar o próprio sossego. Recentemente, o Exército solicitou apoio da polícia do Distrito Federal para conter os manifestantes mais exaltados na porta do QG, em Brasília. Apesar de conter uma série de ilações sobre a suposta “vulnerabilidade das urnas”, o relatório de auditoria das Forças Armadas não identificou fraude alguma nas eleições. A vitória de Lula foi referendada pelo Tribunal Superior Eleitoral, por observadores internacionais, por chefes de Estado de todos os continentes e até mesmo por aliados de Bolsonaro, a exemplo do presidente da Câmara, Arthur Lira, um dos primeiros a parabenizar o líder petista e hoje empenhado nas negociações da PEC da Transição, a prever 175 bilhões de reais para custear o Bolsa Família nos próximos quatro anos, fora do teto de gastos. Seu ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, incumbiu-se da tarefa de passar todas as informações para Geraldo ­Alckmin, novo vice-presidente e coordenador da equipe de transição. Antes mesmo de receber a faixa presidencial, o “descondenado”, como os acólitos do capitão chamam Lula, representou o Brasil na 27ª Conferência do Clima da ONU, no Egito.

Tratado com indiferença até por quem se beneficiou de seu prestígio para se eleger, Bolsonaro mantém-se em silêncio, em uma espécie de autoexílio. Desmarcou compromissos internacionais, não participa mais de eventos oficiais, só é visto caminhando solitariamente pelos corredores do Palácio do Planalto – quando dá as caras por lá. Os perfis do capitão no Twitter, no Facebook e no ­Instagram, gerenciados pelo filho Carlos Bolsonaro, estão às moscas. Somente por aplicativos de mensagens, como ­WhatsApp e ­Telegram, ele ainda se comunica com seus eleitores, quase sempre para divulgar benfeitorias de seu governo. “Há uma dupla estratégia por trás desse silêncio. Primeiro, Bolsonaro pretende manter acesa a dúvida de uma fraude eleitoral, para que seus seguidores não se desmobilizem. Seria uma espécie de protesto silencioso. Ao mesmo tempo, ele corre menos risco de ser acusado de incitação a um golpe, como ocorreu com Trump nos EUA”, observa o cientista político Cláudio ­Couto, da FGV de São Paulo.

Barroso perdeu a paciência com bolsonaristas que o abordaram nas ruas de Nova York. “Não amola”. Ministro de Bolsonaro, Ciro Nogueira incumbiu-se da tarefa de conduzir a transição com Alckmin – Imagem: Lula Marques/PT na Câmara e Vanessa Carvalho/LIDE

Não bastasse a debandada de aliados, Bolsonaro corre sério risco de ter os malfeitos do governo novamente expostos em praça pública. A pedido de Alckmin, o Tribunal de Contas da União produziu um relatório sobre a situação de obras em andamento e paralisadas no País, além de apontar 29 “áreas críticas” do governo, com riscos de fraudes e outras irregularidades. O documento, entregue na quarta-feira 16, constata que houve concessão irregular do Auxílio Brasil a 2,4 milhões de cidadãos que não preenchiam os requisitos do programa. Os pagamentos indevidos geraram rombo aos cofres públicos de 5,6 bilhões de reais. Além disso, a União abriu mão de 329,4 bilhões de reais em renúncias fiscais somente em 2021, o equivalente a 3,8% do PIB, mas não houve estudos prévios dos impactos da desoneração e tampouco avaliação periódica dos seus resultados. As revelações certamente serão exploradas pelo governo Lula, que terá de pagar pela gastança de Bolsonaro na tentativa da reeleição. “Vamos fazer pente-fino (nas contas) e mostrar à sociedade o que encontramos”, afirma Gleisi Hoffmann, presidente do PT e responsável pela articulação política na equipe de transição.

O capitão também não tem como escapar, a partir do próximo ano, do acerto de contas com a Justiça. Por ora, ele ainda conta com o manto protetor de Augusto Aras, o procurador-geral da República, que não quis investigar as nove condutas criminosas atribuídas a Bolsonaro pela CPI da Covid e que está com as gavetas abarrotadas de denúncias arquivadas. Mas nada garante que Aras manterá a lealdade após Lula se acomodar na cadeira presidencial. Mesmo que isso ocorra, em meados de 2023 o líder petista poderá indicar outro nome para o cargo. Detalhe: em momento algum da campanha o presidente eleito se comprometeu a referendar o procurador mais votado pela categoria na lista tríplice encaminhada ao chefe do Executivo.

“Os extremistas antidemocráticos merecem e terão a aplicação da Lei Penal”, promete Moraes, do STF

Os crimes em série cometidos por Bolsonaro em seus quatro anos à frente da Presidência da República, da negligência na pandemia de Covid-19 à promíscua relação com os pastores lobistas que saquearam o Ministério da Educação, não serão esquecidos em processos que nos próximos meses mobilizarão desde a Justiça de primeira instância até o Supremo Tribunal Federal. Principal figura do enfrentamento institucional aos crimes bolsonaristas, Alexandre de Moraes anunciou recentemente a criação de uma nova linha de investigação no inquérito sobre os atos antidemocráticos promovidos por extremistas. O magistrado decidiu incluir, entre os alvos da apuração, os empresários que financiaram os bloqueios de estradas logo após as eleições. “O Brasil merece paz, serenidade, desenvolvimento e igualdade social. E os extremistas antidemocráticos merecem e terão a aplicação da lei penal”, afirmou em Nova York, na segunda-feira 14.

Três dias depois, Moraes encaminhou à PGR uma representação do deputado Marcelo Calero, do PSD, na qual ele pede o afastamento do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, por conta das recorrentes manifestações do general colocando em dúvida a lisura do processo eleitoral. O ministro do STF deu prazo de cinco dias para Aras se manifestar. Na quinta-feira 17, o magistrado ordenou o bloqueio das contas bancárias de 42 empresas acusadas de financiar os atos golpistas.

O governo pagou benefícios indevidos e gerou rombo de 5,6 bilhões de reais, atesta o TCU – Imagem: Luis Alvarenga/AFP

“Bolsonaro está apavorado, querendo uma anistia, um acordo de não punição”, afirma o senador Renan Calheiros, do MDB de Alagoas, influente aliado de Lula no terceiro mandato. “Mas isso, na circunstância em que ele criou no Brasil, é difícil de acontecer”, acrescentou, em recente entrevista ao portal UOL. A ideia de perdoar os crimes do atual ocupante do Palácio do Planalto foi aventada por ­Michel Temer, o surfista do golpe de 2016, antes do primeiro turno das eleições. Mas o capitão não tem mais os amigos que o cercavam quando tinha o poder de distribuir recursos do orçamento secreto. Quem torce pela sua iminente prisão pode, porém, ficar frustrado com o ritmo do Judiciário nativo. Ainda que sofra uma condenação, provavelmente ele poderá recorrer da sentença em liberdade. Isso, se forem respeitados os direitos ao devido processo legal e à ampla defesa – o que foi negado a Lula pela República de Curitiba e pelos lavajatistas das cortes superiores.

Os órfãos do capitão não se conformam com a derrota e o isolamento do “Mito”. A cada dia que passa, tornam-se mais agressivos, embora careçam de coragem nos momentos decisivos. Em ­Nova York, onde participou de debate sobre o “respeito à liberdade e à democracia” no Brasil, organizado pelo Grupo Lide de João Doria e mediado pelo “imortal” Merval Pereira, o ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, foi alvo de um desses radicais, enquanto aguardava o jantar. Do lado de fora do restaurante, o valentão o provocava com um celular na mão, acusando o magistrado de “gastar dinheiro do povo brasileiro” na visita aos EUA. “Come on outside!”, insistiu o bolsonarista, ao desafiá-lo para um embate. Sangue na calçada? Nem perto disso. Bastou o ministro levantar da cadeira para o fanfarrão empreender fuga com a esposa. “Não deixe ele tocar em você”, alertou à mulher enquanto recuava. Palestrante desse mesmo evento, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, foi importunado por bolsonaristas enquanto caminhava pelas ruas de Manhattan. Na primeira vez, cobrou respeito: “Não seja grosseira, senhora”. Na segunda, resumiu o sentimento da maioria dos brasileiros pós-eleições: “Não amola, mané, perdeu”.

Bolsonaristas invadiram uma escola do MST e picharam as paredes com suásticas e a palavra “mito”

Nem todos os seguidores da seita bolsonarista são assim, inofensivos. Desde o término da apuração, foram registrados numerosos casos de agressões físicas e depredações por parte de radicais inconformados com a vitória de Lula, sem mencionar os bloqueios que paralisaram as rodovias federais por uma semana, sob a criminosa conivência do diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal. No dia da votação derradeira, Silvinei Vasques desrespeitou uma decisão do TSE e ordenou a realização de centenas de blitze nas rodovias do Nordeste, com o claro objetivo de dificultar o transporte de eleitores de Lula. Agora, é alvo de um inquérito da Polícia Federal e corre o risco de perder o cargo antes da posse do petista. Na terça-feira 15, o procurador Eduardo Santos de Oliveira Benones, do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro, solicitou o “imediato afastamento cautelar” do policial por 90 dias, para resguardar as investigações.

O comportamento dos radicais bolsonaristas, por vezes assemelhado ao de seguidores de uma seita religiosa, não pode ser explicado somente pela psicanálise, mas também pela luta de classes, afirma a psicanalista Maria Rita Kehl, referência na área e autora do livro O Tempo e o Cão: A Atualidade das Depressões (Editora Boitempo), consagrado com o prêmio Jabuti de não ficção em 2010. “Parte dos bolsonaristas simplesmente não suporta a ideia de dividir espaço no avião ou nas universidades com pobres, nutre um ressentimento em relação à perda relativa de status durante o governo Lula”, avalia. “Por outro lado, a psicologia das massas de Freud talvez ajude a explicar esse delírio coletivo. Ele buscou entender a adesão de tantos alemães a Hitler. Segundo Freud, diversos fatores contribuíram para o fenômeno. Um deles seria o desejo dos indivíduos de terem um pai muito poderoso, um pai onipotente, para não se sentirem desamparados. Além disso, no processo de formação da massa, muitos perdem a individualidade. Você deixa de ser responsável por você mesmo. Tanto que Freud observa que o indivíduo, em grupo, faz coisas que jamais faria sozinho. O indivíduo se sente encorajado.”

Em grupo, o indivíduo é capaz de fazer coisas que jamais faria sozinho, diz Maria Rita Kehl – Imagem: Marcus Leoni/Folhapress

Paralelamente aos atos golpistas, grupos fascistas continuam agindo contra militantes e movimentos de esquerda. Na madrugada do sábado 12, uma unidade de formação do MST em Pernambuco, o Centro Paulo Freire, localizado no Assentamento Normandia, na cidade­ de Caruaru, foi atacado por um grupo extremista. Segundo testemunhas, quatro homens, uniformizados com camisas amarelas, invadiram o local, picharam paredes com a suástica nazista e com a palavra “Mito”, além de terem ateado fogo na residência da coordenadora do centro. O fogo foi controlado, mas parte da casa foi destruída, como o telhado, móveis e pertences pessoais.

“O Brasil e o povo brasileiro clamavam por atitudes e empenho para resgatar a democracia, os preceitos constitucionais do Estado Democrático de Direito e uma postura enérgica contra a fome, contra a violência, contra o ódio e contra todos os tipos de preconceitos. Os bolsonaristas foram derrotados nas eleições, mas uma minoria, movida por intolerância, preconceito, ódio de classe, de raça e gênero, não aceitou os resultados da democracia e está querendo nos impor um terceiro turno”, diz nota publicada pelo MST. “Felizmente, desta vez, ninguém se feriu. Os danos materiais a gente resolve, mas fica mais uma vez a lição de que não podemos baixar a guarda.” Nem por um segundo. •


*Colaborou Mariana Serafini.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1235 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Perdeu, mané!”

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