Política
Os corruptos eram eles
A operação comandada por Sergio Moro destruiu empresas, perseguiu inimigos políticos e curvou-se aos interesses dos EUA


Em 17 de março de 2014, a Operação Lava Jato foi às ruas pela primeira vez. O enredo de dez anos atrás estava desenhado há 20. Em 2004, Sergio Moro tinha publicado uma análise da Operação Mãos Limpas, caso rumoroso de corrupção na Itália na década de 1990. Tudo da Lava Jato estava ali. Para combater os “corruptos”, o então juiz defendia o uso à beira do abuso do poder de magistrados e procuradores e que prisões preventivas serviam para arrancar delações. Defendia ainda o “largo uso da imprensa” em investigações, para desmoralizar políticos. Condená-los na mídia facilitaria sentenciá-los na Justiça ou funcionaria como substituto das sentenças.
A percepção atual dos brasileiros mostra que a Lava Jato foi eficaz na disputa pela mídia e, por tabela, da opinião pública. Segundo uma pesquisa Genial/Quaest do início do mês, 50% acham que a operação fez mais bem do que mal ao Brasil (28% veem o contrário), enquanto 49% acreditam que ajudou a enfrentar a corrupção (37% não). Quanto aos dois protagonistas da história, o País é bastante dividido: 44% desaprovam o trabalho de Moro como juiz (40% aprovam), 43% consideram Lula inocente (índice igual pensa o contrário). “A Lava Jato criou relação com a sociedade, havia camiseta, jogo de tabuleiro, quarto de motel em Brasília com o nome dela”, afirma Fábio Sá e Silva, que desde 2016 faz pesquisas sobre a operação na Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos. “A crítica ao que se chama de corrupção do PT encobre o descontentamento com as políticas públicas e sociais defendidas pelo partido. A aprovação à Lava Jato tem esse elemento.”
Guarida. Janot criou a força-tarefa e embarcou na onda, muito lucrativa – Imagem: Ares Soares/Universidade de Fortaleza
Messianismo, violação das leis e emparedamento de quem se colocava no caminho da operação: eis as principais características da Lava Jato, conforme dois estudos de Sá e Silva a partir de entrevistas e comentários no Facebook vocalizados pelos procuradores mais destacados da operação em seus primórdios, Deltan Dallagnol e Carlos Fernando dos Santos Lima. “Tenho dificuldade de ver um papel positivo”, diz o pesquisador. Jair Bolsonaro chegou ao poder no embalo do moralismo da operação. A economia perdeu bilhões de reais e milhões de empregos. No Ministério Público e na Polícia Federal, o espírito lavajatista segue vivo, embora adormecido. Desafios que o País ainda tem de enfrentar, e não por acaso há quem, no Supremo Tribunal Federal, defenda uma “comissão da verdade” para a Lava Jato, caso de Gilmar Mendes, ele próprio um ex-lavajatista.
Não há tal comissão, mas Moro tem sido castigado. Bolsonaro não o indicou para o Supremo, e agora o ex-juiz está com a cabeça de senador a prêmio. Em 1° de abril, a Justiça Eleitoral do Paraná começará a julgar dois processos que podem levar à sua cassação. As ações são do PT e do PL do capitão. Apontam abuso de poder econômico e caixa 2 na campanha de 2022. O plano de Moro era ser presidente. Gastou fundos de um partido (Podemos) para promover-se. No fim, concorreu por outro (União Brasil) a senador. Os gastos da fase de presidenciável o ajudaram a chegar ao Senado e não foram declarados à Justiça Eleitoral. É o que apontam as ações. Em 2019, o Tribunal Superior Eleitoral cassou pelo mesmo motivo a ex-juíza Selma Arruda, eleita senadora no ano anterior por Mato Grosso com o slogan “Moro de saia”. Rosângela Moro mudou o domicílio eleitoral para o Paraná. Elegeu-se deputada federal por São Paulo em 2022 e está de olho na vaga que a cassação do marido pode vir a abrir. O PT tenta reverter na Justiça a mudança.
Revisão. Toffoli agora demole os acordos de leniência – Imagem: Alessandro Dantas/PT no Senado
Dallagnol é outro enrolado que tenta usar a lei como lhe convém. O TSE cassou, em 2023, seu mandato de deputado pelo Paraná. Motivo: uma manobra jurídica para escapar de punições no Ministério Público que o impediriam de concorrer em 2022. Mesmo cassado, está disposto a concorrer a prefeito de Curitiba em outubro. Não se considera inelegível. Neste caso, ressalte-se que o TSE não deixou claro se ele está ou não proibido de disputar.
Foi o telefone de Dallagnol que mudou o destino da Lava Jato. Em junho de 2019, começaram a vir à tona conversas escritas no aplicativo Telegram entre Moro, Dallagnol e cia. Liderada pelo site The Intercept Brasil, a “Vaza Jato” expôs o conluio entre juiz e acusadores. Moro era o chefe da força-tarefa. Não havia chance para os investigados, todos estavam pré-condenados. “Não é muito tempo sem operação?”, perguntava o então juiz a Dallagnol em agosto de 2016. As fases, ou operações, da Lava Jato, eram uma forma de fazer “largo uso da imprensa”. Foram 80 ao todo, a última em fevereiro de 2021, mês em que o grupo em Curitiba foi dissolvido pelo então procurador-geral da República, Augusto Aras, indicado de Bolsonaro.
Os diálogos capturados pelo hacker Walter Delgatti Jr. não deixam dúvida sobre a manipulação da Lava Jato
A força-tarefa havia sido criada em abril de 2014 pelo “xerife” da época, Rodrigo Janot. Em agosto de 2015, Janot encabeçou de novo a lista tríplice elaborada pelos colegas para ser entregue à então presidente Dilma Rousseff e, por indicação da petista, seguiu no posto por mais dois anos. “Janot gastou dinheiro do bolso na campanha e fez uma gestão corporativa”, diz Eugênio Aragão, subprocurador-geral aposentado e último ministro da Justiça de Dilma. “A corporação Ministério Público adquiriu musculatura e fez uso político dela a partir da derrubada da PEC 37 em 2013.” A PEC alterava a Constituição para que investigações criminais ficassem só com a polícia. Ao MP caberia examinar as conclusões policiais e decidir denunciar alguém à Justiça. A bandeira anti-PEC surgira nas ruas em junho de 2013. “O espírito lavajatista continua vivíssimo no MPF, ninguém fez mea-culpa. Aras saiu da corporação repudiado internamente. Ele não fez nada para mudar estruturalmente o Ministério Público”, diz Aragão.
Um delegado da PF situado em posição privilegiada na aurora da Lava Jato tem visão idêntica da própria corporação. Seu nome será preservado. “O lavajatismo está vivíssimo na PF. Até hoje ninguém foi punido”, diz. “O policial tem no DNA o pré-julgamento, é justiceiro, quer destruir a vida de uma pessoa na mídia porque acha que não vai conseguir condenação judicial.” A condução coercitiva de Lula em março de 2016 é uma demonstração da tentativa de destruir e, na visão do delegado, deixou claro que os alvos da operação eram Lula e o PT. O governo Dilma estava nos seus estertores. Duas semanas depois, Moro divulgava ilegalmente um grampo também ilegal de um telefonema de Dilma para Lula, cujo teor levaria Gilmar Mendes a proibir a presidente de nomear o antecessor para a Casa Civil. Moro jamais foi punido. Dilma foi afastada em abril de 2016 e cassada de vez quatro meses depois.
No mês seguinte ao impeachment, houve uma conversa entre procuradores da Lava Jato que um colaborador lulista considera a prova mais contundente de perseguição e violação do devido processo legal. “Pessoal, especialmente Deltan, temos que pensar bem se vamos utilizar esse diálogo da Mariuza, objeto da interceptação. O diálogo pode encaixar na tese do Lula de que não quis o apartamento. Pode ser ruim para nós”, escreveu Athayde Ribeiro Costa em um grupo de Telegram em 13 de setembro de 2016. Mariuza Marques era da OAS, a empreiteira do tríplex do Guarujá. O grampo do telefone dela jamais foi encontrado nos autos do processo. “Concordo com Athayde. eu não usaria esse dialogo [sic]. ao menos nao [sic] na denuncia”, respondeu Jerusa Viecili. Que indagou a Julio Noronha: “vamos tirar o dialogo [sic] da Mariuza ne?”. O diálogo foi revelado em 1º de março de 2021, pelo UOL, e consta da papelada da Operação Spoofing.
No surgimento da Vaza Jato, Moro era ministro da Justiça e mandou a PF ir atrás das fontes do Intercept. A polícia prendeu Walter Delgatti Jr., responsável por invadir o celular de Dallagnol e obter as mensagens de Telegram. Com ele e seus parceiros presos na Spoofing, Moro queria destruir o material apreendido, ou seja, as mensagens. O Supremo proibiu. A jogada do ex-magistrado foi um de seus maiores erros. O então ministro da Justiça legalizou o material hackeado, botou-o dentro do sistema. A legalização permitiu à defesa de Lula pedir acesso ao conteúdo em novembro de 2020. O escrutínio da equipe do advogado Cristiano Zanin, hoje no STF, ajudou a extrair do material e divulgar na mídia mensagens inéditas, caso daquela sobre Mariuza. Em março de 2021, três meses após Zanin conseguir o material, Edson Fachin, do Supremo, anulava todas as decisões de Moro contra Lula.
Em derrota de Fachin, a Corte foi mais longe e dias depois decretou que o ex-juiz havia sido “parcial” com Lula. Era uma alegação feita pela defesa do petista antes da Vaza Jato: em novembro de 2018, assim que o ex-magistrado topou ser ministro do então recém-eleito Jair Bolsonaro. “Moro cometeu um crime de corrupção clássico ao aceitar ser ministro da Justiça daquele que ele havia beneficiado, é uma definição clássica de corrupção. O ato de ofício (do Moro) é a (do Lula) prisão e o benefício (para ele) foi o Ministério da Justiça”, diz o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, experiente em Brasília e em casos no STF. Cargo que Moro via como trampolim para chegar ao Supremo. “A Lava Jato serviu para destruir parte das empresas brasileiras, para influenciar na política de forma negativa e criminosa e para desacreditar o Poder Judiciário, porque o Moro, com apoio da mídia, se tornou herói nacional”, completa.
O estrago na economia foi de 3,6% do PIB. É a conclusão de uma análise de 2021 do Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos, o Dieese. A estimativa tomou como ponto de partida o cancelamento de investimentos da Petrobras e de empreiteiras entre 2014 e 2017. Os planos somavam 172 bilhões de reais. Teriam gerado 4,4 milhões de empregos. A Petrobras e a Odebrecht foram as companhias que mais sentiram o baque, e aqui se abre o capítulo “Tio Sam” deste enredo. O fator “geopolítico” que Aragão destaca como um dos pilares da Lava Jato.
O STF está propenso a rever os acordos de leniência que puseram de joelhos as empreiteiras
Petrobras e Odebrecht foram investigadas nos Estados Unidos com base numa lei, a FCPA, cujo propósito é usar o tema “corrupção” para defender o interesse norte-americano. Caso haja uma empresa a incomodar Tio Sam e esteja metida em corrupção, FCPA nela. A Odebrecht selou um acordo de 2,5 bilhões de dólares com o Departamento de Justiça dos EUA em dezembro de 2016. A preço de hoje, 12,5 bilhões de reais. O trato abrangia subornos pagos desde 2001, tempos do governo FHC. Na gestão Lula, a Odebrecht encorpou no exterior, ganhou licitações para, entre outras obras, erguer o Porto de Mariel em Cuba. Era, e é, parceira de uma estatal francesa na construção do submarino nuclear brasileiro. O pai do programa nuclear brasileiro, almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, ex-presidente da Eletronuclear, foi condenado a 43 anos de prisão em 2016 pela Lava Jato carioca, aquela do ex-juiz Marcelo Bretas, pena reduzida a quatro anos em 2022. De 2014 a 2017, a presença internacional da Odebrecht caiu de 27 para 14 países.
Em setembro do ano passado, o juiz José Dias Toffoli, do Supremo, anulou todas as provas obtidas pela Lava Jato a partir de material interno da Odebrecht. No despacho, definiu assim a operação: “Tratou-se de uma armação fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado por meios aparentemente legais, mas com métodos e ações contra legem”. Toffoli, ressalte-se, migrou de uma posição inerte sobre a Lava Jato para a que manifesta agora, a exemplo de Gilmar Mendes.
Em setembro de 2018, foi a vez de a Petrobras selar um acordo nos EUA. Desembolsaria 853 milhões de dólares, ou 4,2 bilhões ao dólar de hoje. A verdadeira vitória norte-americana contra a Petrobras havia sido, no entanto, a queda de Dilma e a ascensão de Michel Temer em 2016. Com o emedebista, o Congresso aprovou uma lei que acabava com a presença obrigatória da petroleira nos campos do pré-sal. No mês da sanção da lei por Temer, novembro de 2016, o cineasta Oliver Stone veio ao Brasil divulgar um filme sobre Edward Snowden, que, em setembro de 2013, revelara ao mundo a espionagem da NSA, a agência de arapongagem dos EUA, contra Dilma e a Petrobras, entre outros. A Lava Jato estrearia nas ruas seis meses depois. “Essa informação (obtida pela NSA) vai para algum lugar, não fica lá guardada. É usada para destruir, mudar governos, grandes empresas, a Petrobras, a empresa petrolífera da Venezuela. Isso pode levar à guerra”, afirmou Stone no Brasil.
Comando. A Lava Jato atuou como um braço do Departamento de Estado norte-americano – Imagem: Arquivo/Departamento de Estado dos EUA
A colaboração norte-americana com a Lava Jato ficou clara em 2015. Em fevereiro daquele ano, Rodrigo Janot foi aos EUA com Dallagnol e Santos Lima. Não aceitou que a Advocacia-Geral da União, órgão do governo, enviasse um emissário. Oito meses depois, enviados de Washington iam a Curitiba, para conversas de teor exato desconhecido. Nas duas ocasiões, foi firmado, certamente, algum pacto de colaboração. Em bases ilegais. “Deltan, como já conversamos, essa investigação dos americanos realmente me preocupa. Fiquei tranquilo quando vc garantiu que esse grupo de americanos não fez investigações em Curitiba quando esteve aí. O MPF e a SCI não podem permitir isso”, escreveu a Dallagnol, em outubro de 2015, um dos homens de Janot na época, Vladimir Aras, então chefe da SCI, a Secretaria de Cooperação Internacional do MPF.
Com apoio dos EUA, a investida da Lava Jato contra empreiteiras obrigou-as a selar com o Ministério Público Federal acordos de leniência, espécie de delações de pessoas jurídicas. Acordos sem amparo legal. Pela lei, quem tem autorização para negociar são a Controladoria-Geral da União e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade. “A legislação diretamente não nos dava esse papel (na Lava Jato), mas era possível construir dentro do sistema uma interpretação de que nós tínhamos um papel primeiro nas colaborações de colarinho-branco e agora na leniência.” Palavras de Santos Lima em uma entrevista de 22 de outubro de 2018 para uma tese de doutorado em Direito na USP de autoria de Raquel Pimenta.
Na terça-feira 12, houve uma reunião em Brasília de oito empresas com a CGU, para renegociar acordos de leniência firmados com o órgão. O juiz André Mendonça, do Supremo, aceitou o argumento de que as companhias estão em dificuldades financeiras para honrar o compromisso. Elas ainda devem 11 bilhões de reais. Há quem acredite que a renegociação acabará por expor a ilegalidade dos acordos feitos pelo Ministério Público, da ordem de 6 bilhões de reais, valor até hoje alardeado pelas viúvas da Lava Jato como resultado das investigações.
A 13ª Vara Federal de Curitiba também está sob fiscalização especial do CNJ. O que ainda será descoberto?
Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.
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