Política

Operação baixaria

Acossado por denúncias e atrás nas pesquisas, Bolsonaro agora tenta ligar o PT ao PCC

A três meses das eleições, Marcos Valério volta à ribalta. O publicitário ressuscita o caso Celso Daniel e liga o assassinato à facção criminosa - Imagem: Marcelo Prates/Hoje em Dia/Estadão Conteúdo e Itamar Miranda/Estadão Conteúdo
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Jair Bolsonaro começou a semana de 27 de junho, uma segunda-feira, encrencado. Cinco dias antes, Milton Ribeiro, seu ex-ministro da Educação, havia sido preso nas investigações sobre os pastores lobistas propineiros. A rápida soltura de Ribeiro não desmontara a bomba pronta para estourar no colo do capitão na eleição. O líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues, havia voltado a colher assinaturas para uma CPI do MEC e obtido o mínimo necessário para dar entrada no pedido em 28 de junho. Na véspera de o senador protocolar o requerimento da CPI, chegou ao Supremo Tribunal Federal a solicitação a respeito do caso que corre em sigilo, a delação de 2017 do empresário Marcos Valério, aquele dos “mensalões” do PT e PSDB. Como a colaboração premiada está sob segredo de Justiça, não se sabe quem solicitou o quê ao Supremo. Certo é que, em 29 de junho, o juiz responsável pelo processo da delação, ­Kassio Nunes Marques, nomeado por Bolsonaro, deu ao procurador-geral da República, Augusto Aras, outro indicado pelo presidente, acesso à papelada.

O material voltou ao juiz em 4 de julho. Antes, no dia 1°, entre a saída e o retorno da papelada ao tribunal, alguns vídeos dos depoimentos de Valério à Polícia Federal em Minas Gerais foram parar no site da revista Veja. Neles, Valério, a cumprir pena de 53 anos pelos “mensalões”, diz que, no passado, candidatos do PT a vereador e a deputado tiveram campanhas irrigadas por grana de bingos que lavavam dinheiro do PCC, a poderosa facção criminosa paulista. Os recursos, segundo o publicitário, seriam recolhidos pelo empresário Ronan Maria Pinto, uma das personagens do caso Celso Daniel, prefeito petista de Santo André assassinado em 2002. Daniel, afirma Valério, teria feito um dossiê com o nome de colegas de partido beneficiados com repasses dos bingos, por discordar do vulto que o financiamento ilegal tinha atingido. Esse enredo, o mineiro afirma ter escutado de Silvio Pereira, secretário-geral do PT nos tempos do “mensalão”.

CINCO ANOS DEPOIS, A DELAÇÃO DE MARCOS VALÉRIO, EM SEGREDO DE JUSTIÇA, VAZOU À VEJA

“Quem conhece a história do Marcos Valério sabe que ele não conhece as entranhas do PT, que ele não tem como ter informações sobre a vida interna do PT, a origem dele é o PSDB de Minas”, diz o deputado federal Rogério Correia, petista mineiro que escarafunchou a trajetória do empresário. No relato recente de Veja, e isso não se vê nos vídeos divulgados, Ronan Pinto teria chantageado Lula com a história do tal dossiê, algo que Valério alega ter sabido igualmente por meio de Pereira. Há dez anos, em novembro de 2012, a revista havia publicado que Valério tinha ido semanas antes ao então procurador-geral da República, Roberto Gurgel, e dito que o PT queria que ele, Valério, comprasse o silêncio do empresário. No mês seguinte, circulava no noticiário o suposto valor do cala-boca, 6 milhões de reais. O publicitário teria se negado a tomar parte na história.

Naquele momento, fins de 2012, o mineiro estava cheio de motivos para tentar incriminar petistas. O julgamento do “mensalão” havia começado em agosto no Supremo. Era de seu interesse conseguir uma pena menor, uma prisão domiciliar. Denunciar outros poderia lhe ser útil. No mesmo ano, aconteceu também o tribunal do júri dos acusados pela morte de Daniel, uma oportunidade para Valério apontar o dedo ao PT. O júri condenou três réus em maio, um em agosto e o último, em novembro. “As investigações do caso Celso Daniel concluíram de forma cabal que não foi um crime político, que não houve participação do PCC, que foi um sequestro que deu errado. Os autos do processo têm manifestações sobre isso da Polícia Civil, da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Um único promotor do MP de São Paulo fala em crime político, o (Roberto) Weder (Filho)”, diz Jacob Filho, advogado de um dos condenados, Itamar Messias dos Santos.

Ao acertar a delação com a PF em julho de 2017, Valério foi transferido de uma penitenciária comum na Grande Belo Horizonte para uma unidade prisional mais, digamos, tranquila em Minas, a Apac, Associação de Assistência e Proteção ao Condenado, na cidade de Sete Lagoas. A existência da delação emergiu na reta final da última eleição. Em 3 de outubro de 2018, cinco dias antes do primeiro turno, o G1, portal de notícias do Grupo Globo, noticiou que o acordo tinha sido “parcialmente” homologado em setembro pelo ministro Celso de Mello. Aposentado em 2020, Mello foi substituto por Nunes Marques, que herdou os processos em tramitação do antecessor. O então decano tinha decretado sigilo dos depoimentos, inclusive daqueles que acabam de ser divulgados pela Veja. Após a chancela do Supremo ao acordo, Valério prestou novos testemunhos à PF em Minas e, em ao menos um deles, de 8 de novembro de 2018, Weder Filho compareceu. O promotor havia reaberto o caso Celso Daniel por causa da delação do empresário.

Nunes Marques compartilhou o inquérito com Aras. Nesse meio-tempo, vazou o que corria em segredo de Justiça. Eduardo Bolsonaro quer ouvir Valério – Imagem: Edilson Rodrigues/Ag.Senado, Rosinei Coutinho/STF e José Cruz/ABR

O que se dizia na eleição de 2018 era que a delação implicava Lula nas investigações da Operação Lava Jato. A então chefe da Procuradoria-Geral da República, Raquel Dodge, antecessora de Aras, era contra o acordo com Valério. Para Dodge, as afirmações do mineiro “não apresentam, sob aspecto da utilidade (…), a mínima viabilidade de ensejar sequer a deflagração de outras medidas investigativas”. Não importa: a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, dominada pela Bancada da Bala e o bolsonarismo, acaba de convidar o publicitário para falar na quinta-feira 14, penúltimo dia de trabalho parlamentar antes das férias. Dar-lhe palco é uma tentativa de aumentar a visibilidade das alegações recém-divulgadas pela Veja. (Nota da redação: após o fechamento desta edição, a comissão cancelou a audiência pública). A ideia de uma sessão da comissão partiu de um dos filhos do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, do PL paulista. No dia do convite, Eduardo ressuscitou nas redes sociais um vídeo da Record de 2019 sobre as imputações de Valério a respeito do caso Celso Daniel.

Exumar o empresário e suas velhas alegações sem provas faz parte de uma operação eleitoral do bolsonarismo e seus aliados nas forças de segurança. O capitão vai mal nas pesquisas, perderia de 45% a 31% para Lula no primeiro turno e de 53% a 34% no segundo, informou um levantamento Genial/Quaest da quarta-feira 6. Fabio Wajngarten, um dos cabeças do comitê de Bolsonaro, tuitou: “Vamos falar de PT e PCC ou seremos acusados de propagar fake news?”. Ele foi secretário de Comunicação Social da Presidência até maio de 2021. Quando saiu, era investigado por possuir uma consultoria cuja clientela incluía tevês beneficiadas com dinheiro de propaganda oficial que ele controlava no governo. O deputado Carlos Sampaio, do PSDB de São Paulo, propôs uma CPI para averiguar as alegações de Valério sobre PT, PCC e Celso Daniel. Idem Filipe ­Barros, do PL do Paraná. Recorde-se: Barros ajudou o presidente a vazar, em agosto de 2021, um inquérito sigiloso da PF sobre um ataque hacker ao Tribunal Superior Eleitoral na eleição de 2018.

Na quarta-feira 6, à noite, o PT emitiu um comunicado no qual aponta “armação” por trás “de um vazamento ilegal e parcial de depoimento mentiroso do condenado Marcos Valério”. Trata-se, diz a nota, “de manipulação política e péssimo jornalismo”. Para o partido, as “notórias conexões com o processo eleitoral e a desesperada campanha do bolsonarismo para difamar o PT” impõem que o vazamento seja esclarecido. Os petistas cobram providências do Supremo e da Procuradoria-Geral para descobrir como “um processo sob segredo de Justiça” veio a público justamente depois de ter transitado “entre as duas instituições na semana em que foi divulgado”.

UM CONTADOR QUE PRESTOU SERVIÇOS AO EX-PRESIDENTE É ACUSADO DE LIGAÇÕES COM A FACÇÃO CRIMINOSA

No comitê de Lula, há quem veja a operação bolsonarista como o assunto mais importante a esta altura da pré-campanha. Associar o PT à corrupção, diz um estrategista lulista, não colaria no eleitor após a anulação dos processos do ex-presidente na Lava Jato e, também, por causa de certos enroscos do capitão nessa seara, como os pastores lobistas do MEC e as “rachadinhas” de Flávio Bolsonaro. Vincular o PT ao crime organizado, sim, seria perigoso para Lula. E há acontecimentos recentes capazes de alimentar a operação, como investigações da Polícia Civil paulista sobre o líder do PT na Câmara de Vereadores da capital, Senival Moura, e um contador que fez declarações de Imposto de Renda de Lula, João Muniz Leite, ambos alvos de decisões judiciais em junho.

“Não há dúvidas de que o crime tem Lula como aliado e a mim como inimigo, o que muito me orgulha. Com ele eram diá­logos cabulosos. Comigo são recordes de apreensão de drogas e prejuízos às facções. Ele quer esses ‘jovens’ soltos. Eu quero que esses bandidos apodreçam na cadeia”, tuitou Bolsonaro logo após a divulgação dos vídeos de Valério pela Veja em 1º de julho. “Diálogos cabulosos” é uma expressão que veio à tona em agosto de 2019, durante operação da PF contra as finanças do PCC, batizada de Cravada. Foi usada em um telefonema por um investigado para descrever como seria a relação da facção com o governo no tempo do PT. Na ocasião, o promotor do MP de São Paulo tido como o maior investigador do PCC, Lincoln Gakiya, disse ao UOL: “Não há nenhum indicativo de negociação do governo do PT com o PCC. Aliás, é bom que se diga que os presos não foram transferidos em décadas de governos do PSDB em São Paulo”.

A Operação Cravada teve uma nova fase um ano depois, a Caixa Forte, e dela fez parte o delegado Alexsander Castro Oliveira, na ocasião chefe da Força Integrada de Combate ao Crime Organizado de Minas. Oliveira acaba de ser designado pela PF para comandar a área operacional da segurança de Lula na campanha, proteção à qual todos os candidatos têm direito e que foi negociada por eles com os federais.

São as finanças de um integrante do PCC, como aquelas averiguadas por Oliveira, que levaram ao bloqueio judicial de 45 milhões de reais do contador Leite e de sua esposa em 16 de junho. Decisão da 1ª Vara de Crimes Tributários, Organização Criminosa e Lavagem de Dinheiro, repartição da Justiça de São Paulo, tomada por requisição do delegado da Polícia Civil de São Paulo Fernando Santiago, do Departamento de Investigações sobre Narcóticos, o Denarc. Leite fez o Imposto de Renda de Lula no início dos anos 2010. Prestava serviços contábeis a empresas de um advogado amigo do ex-presidente, Roberto Teixeira, motivo para ter sido interrogado pelo então juiz Sergio Moro, em 2017.

Santiago desconfia de que o contador lave dinheiro do PCC. Chegou a essa hipótese no rastro das apurações sobre um traficante da facção criminosa assassinado em dezembro passado. Anselmo Becheli Santa Fausta, o Cara Preta, foi morto na cidade paulista de Taubaté juntamente com seu braço direito, Antonio Corona Neto, o Sem Sangue. Ambos foram baleados em um carro por um atirador que estava ao lado em outro veículo. O suspeito do homicídio, Noé Alves Schau, teve o mesmo destino um mês depois. Segundo Santiago, o contador dividiu com Cara Preta um prêmio de loteria no valor de 16 milhões de reais. Leite e a esposa teriam ganhado 55 vezes na loteria em 2021. Apostavam alto, mesmo se perdessem. Os lucros seriam usados para mascarar a origem de recursos obtidos pelo PCC com a venda de drogas. Curiosidade: um policial civil paulista teria ajudado o traficante a conseguir um RG falso, caso na mira da Corregedoria.

AS NOTÍCIAS REQUENTADAS INDICAM: AS ELEIÇÕES DE 2022 TENDEM A SER TÃO BAIXAS QUANTO A DISPUTA DE 2018

Uma semana antes do bloqueio de bens do contador, a Polícia Civil, via Departamento Estadual de Investigações Criminais, o Deic, havia feito uma batida contra o vereador Moura. Era um capítulo de uma investigação sobre o PCC iniciada por causa de outro assassinato. Adauto Soares Jorge foi executado em março de 2020 em uma padaria na Zona Leste de São Paulo. Era uma espécie de sócio de Moura em uma empresa de transporte público via ônibus, a Transunião, fundada pelo vereador, perueiro no passado. Jorge seria, na verdade, “laranja” de Moura, segundo o diretor do Deic, o delegado Fábio Pinheiro Lopes. No dia da batida, a polícia achou cheques de Jorge em um escritório de Moura. Na versão do delegado, a Transunião lava dinheiro do PCC. Jorge teria morrido por deixar de repassar à facção a quantia devida. Moura teria escapado do mesmo fim por ter feito um acordo com os criminosos. À época, o vereador requereu escolta da Polícia Militar.

CartaCapital teve acesso a 859 páginas dos autos da investigação, uma papelada densa, recheada de grampos telefônicos e trocas de mensagens. Um delator, de codinome Guilherme, incrimina o vereador. Moura teria topado lavar dinheiro da facção em troca de apoio financeiro para suas campanhas, segundo Guilherme. A Polícia Civil queria a prisão do parlamentar, mas a Justiça não autorizou. No PT, há quem pergunte: e se a Justiça mudar de ideia no meio da campanha presidencial? Em nota no dia da batida policial, o vereador disse: “Não tenho nenhum envolvimento com as ações (morte de Jorge e ligação com o PCC)”. Procurado agora pela reportagem, o gabinete do vereador não respondeu às perguntas enviadas. Moura está em silêncio por orientação dos advogados. A propósito, em 2014, seu irmão Luiz era deputado estadual em São Paulo pelo PT e foi expulso do partido após a revelação de que participara de uma reunião com integrantes do PCC em uma garagem de ônibus.

Coautora do livro A Guerra – A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil, de 2018, a socióloga Camila Nunes Dias, professora da UFABC e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP, diz que grupos criminosos como PCC podem ter relação com políticos de quaisquer partidos, em busca de vantagens financeiras e políticas. A pesquisadora cita o caso do prefeito Ney Santos, de Embu das Artes, na Grande São Paulo, reeleito em 2020. Santos é do Republicanos, sigla da base governista de Bolsonaro em Brasília. Teve a prisão decretada em dezembro de 2016, na Operação Xibalba, do MP paulista, acusado de tráfico, ligação com o crime organizado e lavagem de dinheiro do PCC. Havia acabado de se eleger prefeito pela primeira vez, por outra legenda, o PRB, e sua vitória encerrara uma hegemonia de anos do PT na cidade. O elo com o PCC teria nascido quando de sua passagem por presídios de 2003 a 2005, acusado de roubo. Santos e o então deputado Jair Bolsonaro pertenceram ao mesmo partido, o PSC, por duas semanas, em março de 2016.

É bom Lula se preparar para os golpes baixos da campanha – Imagem: Ricardo Stuckert

Na visão da acadêmica, a mídia e o mundo político tratam de maneira distinta um acontecimento que aproxime o PCC de alguém do PT e quando essa proximidade se dá com alguém de outro partido. No caso de um petista em cena, a descrição dos fatos aponta elos carnais, estruturais com o PCC, não como algo pontual. Com políticos de outras agremiações dá-se o inverso. Para a socióloga, é evidente que a tentativa bolsonarista de requentar alegações antigas de Marcos Valério para vincular o PT ao PCC é consequência das dificuldades do capitão nas pesquisas.

No petismo, há quem veja outra peça dessa engrenagem a ser preparada e se preocupe: Hugo Carvajal, general do Exército venezuelano preso em Madri no ano passado. O militar foi do Serviço de Inteligência da Venezuela nos tempos de Hugo Chávez. Os Estados Unidos querem sua extradição, sob a acusação de narcotráfico. Depois da prisão, o general apresentou um documento à Justiça no qual diz que o chavismo financiou campanhas pelo mundo. Entre elas, a de Lula. Se Carvajal tornar-se personagem da eleição brasileira, será a confirmação do que o lulista Flávio Dino, ex-governador do Maranhão, diz: a campanha deste ano será a mais suja da nossa história. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1216 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Operação baixaria”

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