Política
Opção da terceira via, Leite deixa legado privatista desastroso no Rio Grande do Sul
Governador é visto como uma espécie de Paulo Guedes dos Pampas


De malas prontas, o governador gaúcho Eduardo Leite está a um passo de deixar o PSDB e migrar para o PSD de Gilberto Kassab. Derrotado nas prévias tucanas por João Doria, ele ainda sonha com a possibilidade de disputar a Presidência da República por um partido bem estruturado. Caso levasse em conta apenas a identificação programática, seu destino natural provavelmente seria o Novo, privatista até a medula.
Em sua sanha antiestatal, Leite entregou a Companhia Estadual de Energia Elétrica por míseros 100 mil reais, valor médio de dois carros populares, mais o repasse das dívidas da empresa. A Companhia de Gás do Estado foi rifada, sem concorrência, pelo preço mínimo de 927,8 milhões de reais. Um ano antes da venda, a Sulgás obteve um lucro de 79,4 milhões de reais, além de realizar investimentos da ordem de 41,5 milhões. Agora, insiste em leiloar a Corsan, a companhia de saneamento do Estado.
Visto como uma espécie de Paulo Guedes dos Pampas, Leite possui pendor privatista desde sempre. Quando foi prefeito de Pelotas, tentou derrubar uma cláusula da Lei Orgânica do Município a prever a necessidade de plebiscito para qualquer privatização. Leite queria vender a Sanep, autarquia municipal de água e saneamento, mas acabou derrotado pelos vereadores da oposição. Uma vez instalado no Palácio Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul, não perdeu tempo. Mobilizou a sua base na Assembleia Legislativa para a derrubada do mesmo veto existente na Constituição gaúcha. Com a porteira aberta, veio o estouro da boiada.
Para obter um bilionário superávit nas contas do estado em 2021, outra obsessão neoliberal, Leite tampouco mediu esforços. Além de rifar as empresas públicas, promoveu uma reforma da Previdência que, segundo o Dieese, confiscou até um salário por ano dos servidores aposentados. Mudou alíquotas, elevou a idade de acesso aos benefícios e aumentou o tempo de contribuição. Alterou ainda o Plano de Carreira do Magistério. A maioria dos servidores não tem reposição salarial desde 2015.
Aproveitando-se da crise causada pela pandemia, o governador não pagou as dívidas com a União e renegociou o que devia junto aos organismos internacionais. Até o ano passado o governo operou com alíquotas majoradas de ICMS. Os gaúchos pagaram 30% sobre combustíveis, energia e comunicações. Tudo isso, associado ao aumento da inflação no período, alavancou os resultados positivos das contas públicas, uma vez que as receitas acompanharam a elevação dos preços.
Há poucos dias, o tucano celebrou o resultado do PIB gaúcho de 2021. O crescimento de 10,4% ficou muito acima da média nacional, de 4,6%. Mas isso se traduziu em melhora das condições de vida da população? “Absolutamente, não”, responde sem hesitar Anelise Manganelli, mestre em Economia pela PUC do Rio Grande do Sul e técnica do Dieese. “O resultado foi fortemente influenciado por um único setor, o agropecuário, que cresceu 67,5%, graças à valorização da soja e do trigo no mercado internacional.” Ou seja, quem ganhou foi o agronegócio. O estado encerrou 2021 com 500 mil trabalhadores desocupados. E os empregados tiveram uma redução no rendimento médio real de -7,4%, atesta o IBGE.
A fúria antiestatal de Eduardo Leite deixou marcas em muitas áreas. A educação, por exemplo, vive uma crise profunda. “O governador é um grande marqueteiro”, resume a professora Helenir Aguiar Schürer, presidente do CPERS, o sindicato dos professores gaúchos. Recentemente, o governador anunciou com alarde um reajuste de 32% no salário dos professores. “Não é verdade. Apenas 14% deles, que estão em início de carreira, tiveram esse porcentual”. Em torno de 31 mil professores aposentados receberam um reajuste de 5,53%, abaixo da inflação, e 12 mil profissionais da educação, como as faxineiras e merendeiras, ficaram de mãos abanando.
“Não aceitar (as prévias do PSDB) é coisa de menino mimado”, dispara Arthur Virgílio
Além disso, o plano de carreira do magistério previa o pagamento de uma gratificação de 5% a cada triênio. Como o governo federal acabou com esse benefício, Leite simplesmente utilizou o recurso para completar o piso. Ou seja, quem pagou pelo “aumento” foram os próprios professores. “Seria como o patrão prometer aumentar o salário de seus empregados em 100. Só que ele retira esse valor do vale-transporte para incorporar ao salário”, exemplifica Schürer. “Não houve ganho algum.”
Com a merenda escolar, a história se repetiu. O governo anunciou um aumento de 186% na verba. Leite chegou a visitar uma escola e posou para fotografias ao lado de uma funcionária, sem reajuste há sete anos. O governador só não explicou que esse porcentual recai sobre um valor ínfimo. A contrapartida do estado por aluno/dia passou 30 para 80 centavos. Não bastasse, grande parte das escolas encontra-se em situação precária. Prédios sem manutenção, com equipamentos quebrados, perigosos improvisos na rede elétrica, banheiros e salas de aula em condições lastimáveis… A situação nas escolas rurais é ainda pior. Segundo o CPERS, em 27 municípios não existe sequer transporte escolar.
O abandono está refletido no Censo Escolar de 2021, divulgado pelo Inep. No Rio Grande do Sul, o número de matrículas registrou queda de 5,4%. Entre 2016 e 2021, 171 escolas deixaram de funcionar. A desvalorização profissional fez com que, nestes mesmos cinco anos, 11 mil professores deixassem as salas de aula, quase um quarto do total.
O Instituto de Previdência do Estado, autarquia responsável pela assistência médica de mais de 1 milhão de funcionários públicos e seus familiares, está à beira da falência. A dívida é superior a 1 bilhão de reais e os atrasos no pagamento de honorários levou ao descredenciamento em massa de médicos e hospitais. O motivo da crise é cristalino. Os servidores contribuem com 3,1% de seus salários, mas a parcela que cabe ao governo gaúcho não vem sendo depositada. “Não tenho dúvidas que deixar o IPE sangrar faz parte do projeto de privatização. Leite fez o mesmo com a companhia de energia. Inviabilizou a empresa para justificar a venda”, diz o deputado estadual Jeferson Fernandes, do PT.
Por meio de nota, a assessoria de comunicação de Leite diz que o governo trabalha para fortalecer o IPE Saúde, “cujas dificuldades são históricas”. E negou ter interesse em privatizar a autarquia.
O modelo gaúcho de gestão é o cartão de visitas que Eduardo Leite pretende apresentar na corrida presidencial. Nas pesquisas, seu nome não empolga, ele figura com 2% a 3% das intenções de voto. Para Arthur Virgílio Neto, ex-prefeito de Manaus, também derrotado nas prévias tucanas, a saída do governador do PSDB só vai minar a sua credibilidade. “Cresça ou não, Doria foi o escolhido. Não aceitar isso é coisa de menino mimado.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Mais do mesmo”
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